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Nova Época?

Valor Econômico, Opinião, p. A11
Autor: VEIGA, José Eli da
22 de Dez de 2016

Nova Época?

José Eli da Veiga

Nesta virada de ano pode ser oportuno pensar nas convenções que subdividem o tempo histórico. Um tema muito mais atual do que parece, como revela a controvérsia científica sobre o advento do Antropoceno, a Época em que a humanidade teria se tornado o vetor mais determinante da evolução ecossistêmica.
Desde meados do século XX os humanos passaram a exercer pressões excessivas sobre alguns dos mais cruciais ciclos biogeoquímicos, como, por exemplo, os do carbono e do nitrogênio. Ao mesmo tempo em que ocorria inédita escalada geral de outros impactos antrópicos sobre a biosfera. Talvez baste lembrar que foram emitidos apenas nos últimos setenta anos três quartos do dióxido de carbono atribuível às atividades humanas hoje estocado na atmosfera.
Nesse piscar de olhos histórico em que viveram as três últimas gerações, o número de veículos motorizados passou de quarenta milhões para 850 milhões. A produção de plásticos de um milhão de toneladas para 350 milhões de toneladas. A quantidade de nitrogênio sintético (principalmente para fertilização agrícola) foi de quatro milhões de toneladas para mais de 85 milhões de toneladas. Somados à erosão da biodiversidade e à acidificação dos oceanos, esses rapidíssimos saltos caracterizam o que está sendo cada vez mais entendido como a "A Grande Aceleração".
Claro, trata-se de um fenômeno que não poderá continuar por muito tempo. Aliás, alguns poucos avanços da governança ambiental global já permitiram estancar tendências, entre as quais se destaca a perda de ozônio estratosférico. Também diminui a construção de novas grandes barragens para a geração de eletricidade e parece recuar a exploração total de recursos pesqueiros.
Todavia, por mais próximo que pudessem estar no fim de sua escalada degradadora, os humanos continuariam a exercer fortíssimas e inéditas pressões sobre os ecossistemas. E, como no âmbito das ciências humanas inexistem critérios bem definidos sobre o que deve ser chamado de época, período, era, idade, fase, etapa, etc., os pesquisadores das humanidades imediatamente assimilaram a proposição de que o Antropoceno já começou.
A dificuldade é que o contrário ocorreu no âmbito das ciências nas quais tal proposta surgiu. É bom lembrar que a divisão da história da Terra em Eras, Períodos e Épocas foi há muito tempo estabelecida pela ciência geológica com base em marcadores fósseis. E desde então foi muito bem acolhida pelas demais ciências naturais, com destaque para a paleontologia e a biologia evolucionária. Por esse esquema de interpretação, estamos há quase doze milênios no Holoceno, Época que pertence ao período Quaternário da Era Cenozóica.
A iniciativa de propor o Antropoceno coube a Paul Crutzen, que em 1995 recebera o prêmio Nobel de química por trabalhos sobre a camada de ozônio. A rigor ele relançou em 2000 a mesma conjectura que o geólogo armênio George Ter-Stepanian já havia chamado doze anos antes de "Tecnoceno". Mas nenhum dos dois chegou a imaginar que essa ideia demoraria tanto para ser aceita por seus pares.
O 35o Congresso Internacional de Geologia, realizado entre o fim de agosto e o início de setembro em Cap Town, África do Sul, esteve bem longe de acatá-la. Frustrou as expectativas dos que supunham que a discussão seria mais sobre as diversas possíveis datações para o início de uma nova Época. Em direção diametralmente oposta, esse conclave rejeitou o fim do Holoceno.
O argumento essencial dos cientistas que contestam a necessidade de alterar a escala do tempo geológico é que os registros estratigráficos apresentados pelos já adeptos da conjectura de Crutzen são apenas "potenciais". Admitem que até poderão vir a se confirmar no futuro, mas que, por enquanto, só se baseiam em previsões. Por isso, afirmam que oficializar agora essa nova Época seria uma "atitude política", em vez de uma "decisão científica".
Esse argumento não é aceito por amplo grupo de geocientistas, segundo os quais a distinção entre Holoceno e Antropoceno já estaria claramente estabelecida. Só que, por enquanto, essa turma não conseguiu convencer a Comissão Estratigráfica Internacional (ICS), composta de dezesseis subcomissões, cada uma com vinte votos, e dirigida por um comitê executivo de apenas três pesquisadores. Então, oficialmente não estamos no Antropoceno.
No entanto, como foi há doze mil anos que a espécie humana começou a praticar atividades agrícolas, é muito provável, ou quase certeza, que sua longa evolução cultural - com tantas ascensões e quedas de civilizações - tenha sido favorecida pelas condições naturais - e principalmente climáticas - que caracterizaram o Holoceno. E que "A Grande Aceleração" das agressões humanas à biosfera esteja mesmo marcando uma ruptura suficiente para que seja razoável admitir o advento do Antropoceno.
Pelo sim e pelo não, a ideia de que o mundo já entrou numa nova Época dificilmente poderá ser afastada do debate público, por mais que as geociências e a paleontologia continuem a ela resistir.

José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e autor de "Para entender o desenvolvimento sustentável" (Editora 34, 2015). Página web: www.zeeli.pro.br

Valor Econômico, 22/12/2016, Opinião, p. A11

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