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Nova Embrapa assusta pesquisadores

OESP, Nacional, p. A8-A9
Autor: CAMPANHOLA, Clayton
15 de Fev de 2004

Nova Embrapa assusta pesquisqadores
Petistas e sindicalistas ocupam cargos técnicos; empresa se engaja no Fome Zero e coloca oficialmente agronegócio em segundo plano

Lourival Sant'Anna
Enviado especial

Logo que assumiu a presidência da Embrapa, no início do ano passado, Clayton Campanhola chamou os chefes das unidades centrais da empresa para contarem o que faziam. Numa dessas sessões - luzes apagadas, retroprojetor ligado -, os especialistas da Secretaria de Propriedade Intelectual discorriam sobre suas conquistas: mais de 140 patentes registradas nos Estados Unidos e na Europa, 250 variedades protegidas no Brasil e nos países vizinhos, 2 mil contratos firmados com produtores de sementes, e assim por diante.
Tudo recheado de milhões de dólares: as empresas que queiram comercializar sementes desenvolvidas pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) têm de pagar, em média, 3% de royalties sobre as vendas. No caso da soja desenvolvida com gene da Monsanto, se o empreendimento não tivesse sido declarado ilegal pela Justiça, deflagrando a pirataria desenfreada no País, a comercialização das sementes teria rendido à Embrapa de 6% a 10% em royalties.
Quando olharam para o presidente, contam os técnicos, Campanhola havia adormecido.
Desde então, o presidente não deu mostras de recobrar o entusiasmo pela biotecnologia e pelo agronegócio. Em memorando distribuído no dia 10 de fevereiro de 2003, Campanhola "resolve definir, como primeira vertente prioritária da Embrapa, atividades de pesquisa e desenvolvimento direcionadas aos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e pequenos empreendedores rurais".
O agronegócio aparece, literalmente, em segundo plano, no item 2 do comunicado: "Fortalecer, como segunda vertente prioritária, atividades de pesquisa e desenvolvimento voltadas para as cadeias do agronegócio, desenvolvendo sistemas competitivos que amparem os segmentos exportadores e do mercado interno, agreguem valor aos produtos primários, gerem emprego e desenvolvam tecnologias ambiental e socialmente éticas."
Os sinais foram se avolumando. Indicado para o cargo pelo ex-ministro da Segurança Alimentar José Graziano, que orientou seu pós-doutorado na Unicamp, Campanhola manifestou o intuito de engajar a Embrapa no Programa Fome Zero. E abriu espaço para os movimentos sociais, incluindo o MST, nas discussões sobre as políticas de pesquisa e nas bancas de seleção dos chefes de unidade.
Poder - O Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf) também ganhou espaço. A maioria dos assessores do presidente é oriunda do sindicato e pertence ao PT.
Seguindo o padrão de administração do PT, que reserva ao partido os cargos de confiança, a equipe não foi formada por Campanhola. Dos três diretores-executivos, dois foram indicações políticas: Herbert Lima, cunhado da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e ex-presidente do Sinpaf, representa os interesses de ambos - freqüentemente convergentes. Gustavo Chianca, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro, foi indicado pela ex-ministra da Assistência Social Benedita da Silva.
Ao longo do último ano, Campanhola foi a campo e trocou 19 dos 37 chefes de centros de pesquisa da Embrapa. Outros 9 estão em processo de escolha. Boa parte deles teve o mandato interrompido pelo presidente.
Desde 1995, a Embrapa tem um sistema de seleção pública dos chefes de unidade, cujos currículos e projetos de gestão são examinados por uma banca composta de especialistas de dentro e de fora da empresa. Pesquisadores de fora também podem concorrer.
O presidente da Embrapa tem de escolher um nome na lista de aprovados, que tem pontuação mínima. O mandato é de dois anos, renováveis por mais dois, se as metas da primeira metade tiverem sido cumpridas. E havia a possibilidade de um segundo mandato. O presidente demitiu os chefes em segundo mandato, sob o argumento de que lhes faltaria motivação. Campanhola, que exerceu dois mandatos de chefe na Embrapa Meio Ambiente, em Jaguariúna (SP), diz que se inspirou no próprio exemplo: "Aos sete anos, pedi para sair, porque considerei que minhas contribuições estavam esgotadas".
Dos 19 novos chefes de unidades, pelo menos 10 pertencem ao PT e ao Sinpaf. Desconfiados de que os processos de seleção serviriam apenas para legitimar indicações políticas, vários centros de pesquisa apresentaram apenas um candidato a chefe.
O sindicato, dominado por petistas, assumiu o papel de fiscal da execução das políticas do governo na Embrapa. Signatário do Manifesto por Um Brasil Livre de Transgênicos, o sindicato faz marcação cerrada sobre os pesquisadores mais proeminentes e sobre a direção da empresa.
Se algum cientista é flagrado defendendo a pesquisa com transgênicos, é execrado nos comunicados do Sinpaf, que os acusa de ignorar "a postura do novo governo" e exige providências para calar o transgressor. Diante disso, muitos cientistas interpretam que haja uma "lei de silêncio" na Embrapa acerca do tema.
Campanhola tem titubeado em relação aos transgênicos, o grande nicho da pesquisa de ponta na Embrapa. Durante encontro com líderes de "movimentos sociais", ele enfatizou as incertezas que cercam as pesquisas dos transgênicos, que qualificou de um "abacaxi" herdado por sua gestão. A conversa foi filmada e vazou.
Quando a Lei de Biossegurança entrou em votação na Câmara, no início do mês, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o mais importante defensor dos transgênicos no governo, pareceu virtualmente desamparado, no embate com Marina Silva. Os assessores do Ministério do Meio Ambiente, em parceria com os ativistas, fizeram lobby ostensivo, enquanto um par de pesquisadores da Embrapa visitava alguns deputados, por iniciativa própria, e quase clandestinamente.
O resultado foi a aprovação de um texto que confere ao Ibama o poder de obstruir a comercialização de produtos, não só vegetais, mas também animais e farmacológicos, além de alterar a composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), dificultando a aprovação de decisões.
Armadilha - Tudo isso tem preocupado pesquisadores de ponta na Embrapa, que preferem não ter o nome publicado, para não sofrerem represálias. "Há muita ansiedade e perplexidade", diz um cientista da instituição. A sensação, entre os pesquisadores, é a de que a empresa caiu na armadilha da política e da ideologia, mortal para quem trabalha com inovação tecnológica aplicada à produção.
Coisas caras aos cientistas, como a meritocracia na empresa, a relativa proteção frente às pressões políticas, a liberdade para trabalhar, a motivação, enfim, um conjunto de características que, para eles, explica o êxito e o prestígio da Embrapa, parecem correr sério risco.
Os cientistas temem que a Embrapa perca o foco e se torne um órgão burocrático e irrelevante, como o Ibama. Ou que o governo queira usar a Embrapa para suprir as deficiências de extensão rural do País, ocupando uma rede de 2.221 pesquisadores, 53% deles com doutorado, na solução de problemas prosaicos de pequenos agricultores e assentados, que precisam de um agrônomo ou um veterinário, não de um cientista.
A equipe da Secretaria de Propriedade Intelectual, com sua experiência na negociação de contratos e na obtenção de patentes, praticamente se desfez. Isso, num momento em que a Embrapa parecia criar uma oportunidade histórica. "O que mais me entristece nisso tudo é que pela primeira vez o Brasil tinha chance de ser liderança em tecnologia", diz uma pesquisadora. "Podemos exportar tecnologia na área agrícola para todos os países tropicais do mundo."

'Não atropelamos nada', diz presidente
Segundo Campanhola, programa de pesquisas e critérios de seleção vão continuar

As pesquisas voltadas para o agronegócio continuarão absorvendo a maior parte dos recursos de custeio da Embrapa, orçados este ano em R$ 224 milhões. Não haverá descontinuidade no programa de pesquisas, apenas uma ênfase gradual no pequeno produtor. É o que garante o presidente da Embrapa, Clayton Campanhola.
Estado - Como a reorientação de prioridade do agronegócio para o pequeno produtor deve ser posta em prática no nível da pesquisa na Embrapa, que já beneficiava a agricultura familiar?

Clayton Campanhola - A Embrapa é uma empresa extremamente estruturada e que dá certo. Não vamos mexer na programação da Embrapa. Em nenhum momento nos propusemos a não honrar todos os projetos em andamento. Não faz sentido a Embrapa abrir mão daquilo que conquistou ao longo da sua história, que é a competência no agronegócio, na inovação tecnológica. Você está correto: a Embrapa já gera tecnologia para diferentes públicos. Vamos trabalhar com muito cuidado ao reforçar as linhas de ação que a Embrapa precisaria reforçar. No nosso plano plurianual de 2004 até 2007, que apresentei hoje no Conselho de Administração, neste ano ainda estão indo R$ 137,5 milhões para pesquisa e desenvolvimento para competitividade e sustentabilidade do agronegócio. E 30% desses recursos vão para biotecnologia. Para essa nova perna que temos que desenvolver, que é focar um pouco nas comunidades locais e promover a inserção desses agricultores familiares no mercado e no agronegócio, temos recursos pequenos, de R$ 12 milhões.

Estado - Essa correlação vai mudar, com o tempo?

Campanhola - Não. É a mesma proporção nos quatro anos. Quando você começa com uma coisa nova, primeiro é preciso entender bem como gerir os resultados. Há muitos agricultores familiares que já estão integrados ao mercado, que podemos considerar empresários. Não dá para separar as duas coisas .

Estado - Qual o seu sentimento sobre os transgênicos?

Campanhola - Acho que tem que estudar. Feitos os testes, seguida a legislação de biossegurança, respeitadas as regras, não tem problema nenhum.
Temos técnicos e pesquisadores competentes nessa área e temos que aproveitar esse potencial. É questão de estratégia para o País. Temos que ter independência tecnológica. O papel da pesquisa é desenvolver mais tecnologia para que isso possa ser feito de maneira adequada e as decisões possam ser tomadas em cima das informações que a pesquisa gera.

Estado - O que o senhor achou do projeto de Lei de Biossegurança aprovado na Câmara?

Campanhola - Para pesquisa, foi positivo. A CTNBio tem condições agora de dar licença para fazer pesquisa, que é o que nos compete. O projeto original não separava muito a pesquisa da comercialização. Os pesquisadores da Embrapa sugeriram que fosse separado, nós apresentamos a proposta e isso foi incorporado. Tudo vai depender da regulamentação. Nossa expectativa é que seja um processo desburocratizado.

Estado - Qual a diferença entre o que se fazia na gestão anterior e o que o senhor está fazendo agora?

Campanhola - Muito pouca diferença. Esse sistema de planejamento da Embrapa foi criado em 2002. Demos continuidade a ele. Em nenhum momento cancelamos algum projeto. Não temos nenhuma intenção de forçar os pesquisadores a mudarem de área. Não questionamos absolutamente nada. Projeto de pesquisa, para ser aprovado, passa por uma série de etapas. É feito por edital. Mesmo dentro da Embrapa há uma competição entre os projetos. Há uma comissão que analisa isso, com pessoas de fora.

Estado - Dos chefes de unidades que o senhor nomeou, pelo menos dez são do PT e do sindicato?

Campanhola - Quero ser bem franco com você: não olho essa variável. Não quero nem saber. Obviamente podem existir pressões, mas não é essa variável que pesa na decisão. Sou muito cobrado por resultados. Então, não posso prescindir de qualidade para gerir as unidades. A responsabilidade é minha.
Sou eu que nomeio o chefe-geral e ele tem autonomia para escolher os chefes-adjuntos. Digo a ele: quero resultados. Não atropelamos nada. Não houve nenhuma intenção de chegar e mudar tudo. Aperfeiçoamos o processo de seleção. Além do currículo e da proposta de trabalho apresentada a uma comissão, contratamos uma empresa de recrutamento de São Paulo para avaliar a capacidade de gestão do candidato. Os três critérios são eliminatórios. A nota de corte para o currículo e a proposta é de 50% e para o perfil gerencial, de 60%.

Estado - Mas mesmo na sua equipe imediata os diretores foram indicados pelo PT e pelo sindicato.

Campanhola - Essas coisas foram negociadas comigo. Eu montei essa equipe.
Exijo dessas pessoas que não misturem papéis. Que estejam do lado da Embrapa. Não permito ingerência do sindicato. Raramente converso com dirigente sindical. É a primeira vez em 30 anos de história da Embrapa que o presidente e os três diretores-executivos têm doutorado. (Lourival Sant'Anna)

Nada supera impacto positivo da pesquisa no agronegócio
Para Ipea, trabalho da Embrapa mostra mais resultados que crédito e abertura comercial

Negócio de R$ 447 bilhões (um terço do PIB brasileiro), a agropecuária é o setor que mais emprega e mais cresce no País. Entre 1999 e 2002, a economia brasileira cresceu em média 2,32% ao ano. Já a produção agropecuária cresceu quase o dobro disso: 4,29%. A safra de grãos aumentou 9,49% em 2003, mantendo a área de plantio quase inalterada. Entre 1990 e 2002, a criação de aves cresceu 223%; a de gado, 125%; a produção de leite, 45%.
A principal responsável por tudo isso é a Embrapa. Estudo recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que nem o crédito rural nem a infra-estrutura nem a abertura comercial tiveram impacto tão forte quanto a inovação tecnológica. "Os gastos da Embrapa são principal fator explicativo de longo prazo para o crescimento da produtividade da agropecuária", afirma o estudo, que propõe a criação de uma empresa de pesquisas nos mesmos moldes também para a indústria.
"Aqui em Mato Grosso, assim como em todo o País, a Embrapa tem sido uma grande parceira da sociedade, em geral, e dos produtores rurais, em particular", elogia o governador Blairo Maggi, o "rei da soja". "Temos projetos conjuntos com instituições de pesquisa locais, inclusive as organizadas pelos próprios produtores. São parcerias promissoras."
Aliada - "Tudo o que você vê de bom na pecuária e na agricultura do Brasil tem a participação da Embrapa", diz o presidente da Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ), Olavo Borges Mendes. "O Brasil se tornou o maior exportador de carne graças à genética, à sanidade animal e aos alimentos, a variedade de capins, a soja, a cana, etc.", enumera o produtor. "A Embrapa é uma grande aliada da ABCZ."
A associação e a Embrapa, que há 25 anos trabalham juntas na seleção de touros para aumentar a precocidade do gado, acabam de firmar novo convênio de melhoramento genético. Tanto a ABCZ quanto a empresa tinham programas próprios, que agora serão unidos.
As parcerias da Embrapa com universidades, outros órgãos de pesquisa públicos e com a iniciativa privada chegaram a somar de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano. No ano passado, o volume foi de R$ 50 milhões. Os críticos atribuem a queda às reservas da nova gestão em relação ao agronegócio. O presidente da Embrapa, Clayton Campanhola, nega o problema e diz que o montante está na média dos últimos anos.
Recursos - A falta de sintonia entre Campanhola e o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, empresário do agronegócio e entusiasta dos transgênicos, também estaria prejudicando as gestões políticas para angariar recursos para a Embrapa. Para o presidente da Embrapa, isso não procede: o orçamento de custeio deste ano, R$ 224 milhões, representa um aumento de 36% sobre o ano passado, que foi de R$ 165 milhões.
E, segundo ele, "há sinais de que não haverá contingenciamento para pesquisa neste ano".
"Os pequenos agricultores podem e devem ter assistência, mas não podemos esquecer que a pesquisa é um trabalho fundamental para nós e não pode ser deixada de lado", diz o presidente da ABCZ, referindo-se à nova orientação da Embrapa. "Nossa atividade precisa da Embrapa."
"A agricultura empresarial contribui muito mais para a inclusão social, gerando empregos e pagando impostos, do que uma visão tacanha de agricultura familiar voltada para a subsistência", adverte Mônica Bergamaschi, presidente da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag). Para ela, o importante é dar condições para o agricultor "crescer e sair dessa condição".
Mônica acha que o maior entrave para o desenvolvimento de tecnologia, hoje, está na legislação, que impede que pesquisas com transgênicos sejam levadas a campo para serem testadas e depois comercializadas. "Não adianta desenvolver pesquisa e guardar na prateleira", diz a presidente da Abag, que era dirigida pelo ministro Rodrigues.
Outro gargalo é a falta de extensão rural. As empresas estaduais de assistência técnica (Ematers) sofrem com a falta de técnicos e recursos para prestar serviço aos agricultores. Muitas das inovações desenvolvidas pela Embrapa morrem na praia porque não chegam até os produtores rurais. Mas a Embrapa certamente não tem como resolver isso. "A Embrapa não fará extensão rural", descarta Campanhola. "Vamos continuar divulgando a tecnologia, como já fazíamos antes." (L.S.)

OESP, 15/02/2004, Nacional, p. A8-A9

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