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Nos sambaquis, o passado distante

OESP, Vida, p.A28
06 de Nov de 2005

Nos sambaquis, o passado distante
Bioantropólogos descobrem vários - e ricos - detalhes sobre os povos que ocuparam a costa brasileira entre 7.500 e 800 a.C.
Cristina Amorim
Ele acorda cedo neste dia, mais do que nos outros. Não está claro ainda, e faz frio, bastante frio. A dor dentro o corrói. Instintivamente, ele ruma para o lago em busca de comida. Não consegue nadar, apesar do costume; apesar dos ombros largos e fortes. Ele sai da água pesado, arrasta os pés. A perna esquerda não se mexe. Olha para cima e vê o monte. Tantos estão lá, guardados. Cai. Está morto.
Passam 2.300 anos. Um grupo escava um sambaqui no sul de Santa Catarina, onde encontram o homem, conhecido dos arqueólogos por 41A. Ele morreu adulto, talvez conseqüência de uma infecção nas pernas. Enterrado por seus companheiros sambaquieiros, ele usa um colar de contas e está completamente fletido: as rótulas quase encostam na mandíbula, os braços e pernas alcançam um ângulo que não é possível naturalmente, o que indica ter sido amarrado ou descarnado. Os arqueólogos retiram lentamente a terra que o cobre e os ossos. Há ocre no esqueleto.
Debaixo dele, encontram uma cama de conchas, todas dispostas com a corcunda para cima. Continuam escavando e logo acham mais ossos quase no mesmo nível do terreno, muito pequenos. Um bebê, talvez prematuro, morreu vítima de uma infecção generalizada. Todo ele foi coberto com bastante ocre.
Os indícios sugerem que os povos que viveram naquela região (muito antes de os europeus sonharem com outro continente a oeste) desenvolveram um ritual fúnebre próprio. Quem enterrou os dois sabia o que fazer: primeiro, o corpo, já preparado, foi arrumado sobre as conchas e recebeu uma camada de terra; uma fogueira foi acesa sobre o túmulo; por último, estacas foram fincadas paraproteger o sepultamento contra animais e intempéries.
Esta é a cena de Jabuticabeira 2, um dos maiores dos 60 sambaquis que existem em torno da Lagoa do Camacho, 160 quilômetros a sul de Florianópolis, com 6 metros de altura.
Sambaquis são amontoados de conchas, sedimento e restos de alimentos que povos pré-históricos, espalhados pela costa brasileira entre 7.500 e 800 a.C., acumulavam durante sua permanência naquele lugar. Também costumavam servir de cemitério e de moradia. No litoral é possível vê-los até hoje, confundidos com montes, perto das praias.
RAIO X
Em Jabuticabeira 2, entre 20 mil e 40 mil indivíduos teriam sido enterrados em apenas 700 a 800 anos de permanência. É muita gente para uma população que se pensava nômade, mas não para grupos que encontraram na região recursos naturais abundantes. Assim, eles não precisavam migrar em busca de comida, podiam levar uma vida bastante calma e criar uma identidade social.
Esses sambaquieiros morriam de velhice ou de doença, como mostra a análise de ossos retirados de lá, feita por grupos como os das bioantropólogas Maria Mercedes Okumura e Sabine Eggers, da Universidade de São Paulo (USP). No fim do ano passado, elas publicaram um artigo na revista especializada Journal of Comparative Human Biology (www.elsevier.de/ jchb) traçando um retrato deste povo com base no estudo dos restos de 89 indivíduos.
A falta de traumas nos ossos confirma que guerra não fazia parte do cotidiano. "Havia pouca competição por recursos, então não existia motivo para conflitos", explica Sabine. O ambiente era rico em peixes e frutos do mar, perto do mar e mangue. Exames dos dentes revelam a dieta baseada em animais do mar - e mastigar um pouco de areia junto deixou marcas abrasivas-, mas também há pistas de que comiam vegetais recolhidos por perto. Os cientistas tentam descobrir quais espécies são por análise em microscópio do tártaro dentário
Os sambaquieiros eram homens mais baixos do que os forma no ouvido de pessoas que atuais, com 1,50 metro em media. Mas eram robustos, com os membros superiores bastante desenvolvidos, como os nadadores de hoje em dia. Com surfistas e mergulhadores, eles compartilham uma característica física não muito atraente: a exostose, uma massa óssea que se forma no ouvido de pessoas que ficam muito debaixo d'água.
Outras pistas fornecem peças para a teoria de uma vida - sedentária dos sambaquieiros: muitos ossos mostram sinais de artrite nos membros superiores, mais do que nos inferiores. "Eles não deviam se movimentar muito, nem andar longas distancias", diz Maria Mercedes.
Ela e Eggers encontraram outro exemplo de que os sambaquieiros de Jabuticabeira 2 viviam em muitos. Doenças infecciosas são vistas em diversos exemplares, como as provocadas por parasitas, o que demonstra como o contato era próximo e constante entre os moradores. "São indicativos de um denso agrupamento% explica a arqueóloga Maria Dulce Gaspar, do Museu Nacional.
Apesar das descobertas feitas, muito falta para se entender dos sítios do Camacho, assim como dos demais sambaquis brasileiros. Cerca de mil apenas foram catalogados e parcialmente estudados. Ainda falta, por exemplo, encontrar mais objetos produzidos por eles, o que os arqueólogos chamam de "cultura material". Se o indivíduo 41A tinha um papel dominante na sociedade sambaquiera, quais regras seguia e quais comportamentos eram vigentes são perguntas que só podem ser respondidas com mais pesquisas em campo. Ainda há camadas para se aprofundar.

Jabuticabeira derruba diversas teorias
Em sambaqui catarinense, não há evidências de moradia, mas de um local exclusivamente funerário
Se a tranqüilidade reinava na Lagoa do Camacho há centenas de anos, hoje Jabuticabeira 2 está no meio de um furacão científico. Em jogo, o que eram realmente os sambaquis e como viviam seus moradores.
Quinze anos atrás, a maioria dos arqueólogos aceitava que os sambaquis costeiros, que cobrem norte a sul do País, serviam como casa, cemitério e depósito de lixo. Pode parecer estranho para o homem moderno, mas a relação que esses povos tinham com o lixo e o alimento era outra - eram o centro de sua existência, explica Maria Mercedes Okumura, da USP.
Só que Jabuticabeira 2 é diferente. Contrariando as expectativas, não foram vistas evidências de moradia. "Era exclusivamente um sítio de sepultamento", diz Sabine Eggers, que trabalhou com Maria Mercedes.
As oferendas dadas aos mortos, como colares, zoólitos (esculturas de pedra na forma de animais) e alimentos, e o cuidado com a preparação do corpo, como o uso de ocre em abundância, indicam a importância daquele sítio para eles. "Tudo isso indica uma forma mais sofisticada de seus moradores lidarem com a morte", afirma Maria Dulce Gaspar, do Museu Nacional.
Onde eles moravam, então? Os arqueólogos ainda batem cabeça. Até agora, não acharam pistas nos terrenos vizinhos. Os sambaquis próximos parecem ter sido usados para o mesmo fim: exclusivamente funerário.
"Eu acho, mas apenas acho, que eles viviam no entorno (do sambaqui)", diz Dulce. "Essa dúvida só pode acabar de duas maneiras: ou achamos indicativos ou descobrimos que a tese simplesmente não é verdade."
A dúvida da arqueóloga não é simplesmente uma questão de ser ou não ser verdade. Nenhum outro sambaqui do Brasil mostra essa característica. Na Região dos Lagos, no Rio, os montes também eram usados como casa.
Consolidar a tese é reformular parte da pré-história brasileira. Acontece que poucos sítios arqueológicos costeiros foram tão bem estudados quanto os sulistas. No Baixo Amazonas, no sítio de Taipeirinha, no Pará, foi encontrada a mais antiga peça de cerâmica sambaquieira, com 7 mil anos. Seu achado marca o único estudo científico realizado ali.
"Não existem informação disponível para comparações mais refinadas entre os sítios do Sul e Sudeste e os do Nordeste e Norte", diz Dulce.
Enquanto isso, os cientistas correm contra o tempo. Os sambaquis, por serem formados por conchas, são visados como matéria-prima pela indústria do cal, que passa máquinas nos montes sem critério.

OESP, 06/10/2005, p. A28

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