VOLTAR

No Xingu, um grito de socorro para salvar a mata

O Globo, O País, p.12
27 de Ago de 2005

No Xingu, um grito de socorro para salvar a mata
Índios aproveitam Quarup para denunciar desmatamento, madeireiras e plantações de soja

Aldeia Kuikuro, Parque do Xingu (MT). Ritual de luto das 14 etnias indígenas do Xingu, o Quarup terminou ontem na aldeia dos índios kuikuros em meio a um grito de socorro. O Parque do Xingu já começa a sofrer, em seu entorno, o que na região se chama de "abraço da morte", com a ameaça do desmatamento, das madeireiras e das plantações de soja. Outro problema é a poluição das nascentes dos afluentes do Rio Xingu, todas fora do parque - uma área de 2,8 milhões de hectares e onde vivem cerca de 4.800 índios.

Em meio às danças, aos lamentos e às lutas que marcam o Quarup, dois assuntos foram constantes: a construção da barragem de Paranatinga, na nascente do Rio Culuene, a cem quilômetros ao sul do limite sul do parque, ou seja, fora da terra indígena; e a retirada de madeira do parque, na fronteira oeste, perto dos municípios de Vera e Feliz Natal. Segundo os índios e a administração da Funai, a retirada e a venda de madeira estão acontecendo com a anuência do cacique da tribo trumai, Ararapam.

De acordo com o relatório da equipe da Funai que esteve na região no início de agosto, os trumai apresentaram um projeto para unificar seu grupo e fazer uma pista de pouso na aldeia, mas isso levou à retirada de madeira, com a venda a madeireiros da região. No relatório, o aviso dos índios kamayurás: "se Ararapam Trumai não parar com as derrubadas, os kamayurás vão resolver pessoalmente a questão". No dia 3 de agosto, os líderes do Xingu enviaram uma carta a autoridades falando do problema e pedindo providências:
- Essa é uma grande preocupação, retirada de madeira do parque. Os líderes do Xingu não estão de acordo. Depois do Quarup, vamos fazer nova reunião - reclama o cacique da aldeia-sede do Quarup, Afukaká Kuikuro.

Ararapam não foi ao Quarup, e a conversa teve de ser adiada.
No Quarup, a cada ano são homenageados mortos ilustres ou queridos. Na festa kuikuro, foram lembrados três índios e o indigenista Apoena Meirelles, assassinado num assalto em Rondônia em 9 de outubro de 2004. Segundo as investigações da polícia de Rondônia, Apoena foi morto por um menor, que foi detido, mas fugiu no início do ano.

Para cada morto, os índios escolhem um tronco que é enfeitado com faixas e cocar. O Quarup começou no fim da tarde de quinta-feira, quando os cantores das tribos entoaram os cânticos de homenagem aos mortos. Ao redor dos troncos, os homens dançam.

As famílias dos homenageados passam a noite aos pés dos troncos. Francisco Meirelles, de 27 anos, um dos filhos de Apoena , foi ao Quarup, assim como Valéria, segunda mulher de Apoena, e Susi, filha caçula do indigenista.
- É uma festa linda. Só lamento que o assassino do meu pai tenha fugido. O Brasil ainda é o país da impunidade - afirmou Francisco.

De madrugada, os kuikuros, anfitriões do Quarup, oferecem peixe e beiju aos convidados - índios de outras tribos e brancos de municípios próximos, como Gaúcha do Norte, em cujo território fica a aldeia. Entre os brancos, está José Seixas, coordenador de Política Indígena do governo de Mato Grosso. Ao lado do presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, Seixas ouve a queixa de Kurikaré, cacique kalapalo:
- A barragem está num lugar sagrado do Quarup. Índio não vai deixar.

Os índios temem a poluição, que já afeta as nascentes. A água usada pelas tribos é ameaçada por agrotóxicos e metais, o que reduz a quantidade de peixe - base da alimentação dos xinguanos, que não comem caça.

A barragem Paranatinga, cuja construção tem licença dos órgãos estaduais de meio ambiente, está parada por ordem da Justiça Federal. Para Seixas, o governo do estado só pode esperar a decisão judicial. Mato Grosso, cujo governador, Blairo Maggi, é o maior produtor de soja do Brasil, tem um dos maiores índices de desmatamento do país.
- Os índios não estão conseguindo resolver esses problemas. É preciso, da parte da Funai, uma fiscalização mais firme contra esse abraço da morte - afirma André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental, ONG que atua na região.

O presidente da Funai disse que, como a barragem está fora da área do parque, pouco pode fazer, a não ser intermediar o contato dos índios com o governo do estado. Sobre a retirada de madeira, disse que o órgão fechou uma serraria e que a grande dificuldade é o fato de a Funai não ter poder de polícia. Uma medida provisória está sendo preparada para que os funcionários da Funai possam autuar empresas irregulares e prender os responsáveis.

Há no Brasil 440 terras indígenas homologadas, cem em homologação e 60 em reconhecimento. Segundo a Funai, o governo Lula homologou 54 terras e quer chegar a cem até o fim de 2006.

Entre choro, reivindicações dos índios, beiju e peixe, o dia amanhece. Começa o uka-uka, a luta entre os guerreiros das tribos da região. É o fim do Quarup - um mito sobre a origem do homem e a relação com os mortos, mas também a cada dia um apelo pela preservação do Parque do Xingu.

A jornalista viajou de Brasília ao Parque do Xingu a convite da Funai

O Globo, 27/08/2005, O País, p. 12

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.