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No meio do redemunho

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
02 de Jan de 2004

No meio do redemunho

Washington Novaes

Sempre vale a pena começar relembrando o extraordinário escritor goiano Carmo Bernardes, já falecido, para quem o Cerrado (com maiúscula, como em Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal) é "uma floresta de cabeça para baixo". Como as águas nesse bioma estão em depósitos profundos, as raízes da vegetação têm de mergulhar - e por isso a maior parte da sua biomassa é subterrânea, não acima da superfície, como em outros. Os especialistas dizem que a capacidade de fixação de carbono nessa biomassa subterrânea é de 2,5 toneladas por hectare/ano.
Por si só, esse já seria um argumento decisivo para a conservação do Cerrado - sua contribuição para reduzir a ameaça de mudanças climáticas, retirando carbono da atmosfera. Só que essa vegetação, como já se mencionou neste espaço (29/8), está muito próxima da extinção. Segundo a Embrapa Monitoramento por Satélites, só restam de fragmentos do Cerrado com a possibilidade de sobrevivência (acima de 2 mil hectares contínuos) menos de 5% do bioma, que já ocupou com sua vegetação quase um quarto do território nacional. Menos que na Mata Atlântica, da qual restam uns 7%.
Com isso, um terço da biodiversidade brasileira (que representa pelo menos 15% da biodiversidade planetária) corre o risco de desaparecer, antes mesmo que se conheçam cientificamente seus milhares de plantas, insetos, fungos, etc., bem como suas aplicações na medicina, na culinária, no abastecimento de materiais. Sem que se saiba exatamente que funções desempenham nesse delicado equilíbrio entre os biomas (o Cerrado é o ponto de contato de vários outros biomas). Sem que se saiba o que vai acontecer no regime hidrológico brasileiro ao modificar-se esse "berço das águas" (outra expressão do Carmo) das grandes bacias brasileiras e do gigantesco depósito subterrâneo que é o Aqüífero Guarani.
Que é possível fazer no Cerrado, pelo Cerrado?
Uma contribuição importante está no livro Fragmentação de Ecossistemas - causas, efeitos sobre a biodiversidade e recomendações de políticas públicas, lançado há poucas semanas pela Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, com estudos de dezenas de especialistas. E uma das principais recomendações deles é "conservar grandes áreas contínuas, com porções centrais bem amplas, bem preservadas e livres de interferências do entorno". Porque os estudos conduzidos por esses especialistas mostram que a perda de espécies é brutal em pequenos fragmentos isolados. Enquanto isso, no próprio Cerrado, fragmentos com mais de 1.300 hectares têm 25% mais espécies de árvores que fragmentos com menos de 700 hectares.
Se é assim, não há tempo a perder. É preciso criar imediatamente novas e extensas áreas de conservação do que resta no Cerrado, de modo a que se possa pensar em salvar - e estudar - uma parte considerável de sua biodiversidade. Com exceção de uma única, todas as grandes unidades federais de conservação do Cerrado com mais de 100 mil hectares contínuos (que muitos especialistas consideram o mínimo necessário) foram criadas no governo Kubitschek.
O Ministério do Meio Ambiente já tem um Grupo de Estudo do Cerrado, com muitas recomendações. Desde 2000 circula no próprio ministério outro documento - Bases para um Plano de Ação para o Ecossistema do Cerrado -, do qual participaram também dezenas de especialistas. Recomendam eles, entre muitas outras coisas, que se tenha em unidades de conservação do Cerrado pelo menos 10% do bioma (hoje, mesmo somando áreas indígenas, são menos de 4%), e que nesse total estejam incluídas pelo menos três reservas de mais de 300 mil hectares, em unidades biogeográficas diferenciadas (o Cerrado tem muitas paisagens).
Outros estudiosos - como o professor Ricardo Abramovay, da FEA-USP, e o secretário de Meio Ambiente de Goiás, Paulo Souza Neto - têm recomendado a decretação imediata de uma moratória no desmatamento. Outros ainda sugerem um aperto na fiscalização das reservas legais em cada propriedade, mudanças na legislação do uso da água (para coibir o desperdício, principalmente em pivôs centrais, e a degradação de bacias hidrográficas), a participação do sistema de crédito oficial (exigindo manutenção de reservas, adequação ambiental, controle da erosão do solo, tratamento de efluentes de criações).
Muita coisa pode ser feita.
O que é estranho é que não se avance já onde é possível avançar. Por exemplo, na ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (Patrimônio Natural da Humanidade), já decretada, mas que não chega à prática por litígio com proprietários de áreas.
Mais estranho ainda é o caso da ampliação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais. Com 84 mil hectares, esse parque conserva o que há de mais representativo no Cerrado da bacia do Rio São Francisco. Nele é que ocorre a recarga de aqüíferos e nascentes que deságuam nos Rios Carinhanha e Corrente, tributários do Velho Chico.
No final de 2002 começou um processo de consulta para agregar ao parque mais 120 mil hectares em território baiano e 30 mil em Minas Gerais - áreas praticamente sem ocupação, de baixo custo de desapropriação e decisivas para o processo de revitalização do São Francisco que se discute. Só dois proprietários de terras, entre centenas, se opuseram nas audiências públicas. E o Ministério do Meio Ambiente encaminhou o processo à Casa Civil da Presidência da República, para que seja decretada a ampliação.
Mas o processo está paralisado ali porque o governo da Bahia se manifestou contra a ampliação, uma vez que esta impediria "empreendimentos agroindustriais" - que, no entanto, estão a mais de dez quilômetros de distância. Enquanto isso, alguns proprietários começam a "detonar" áreas.
Que diria Guimarães Rosa, certamente já intrigado porque um parque com o nome de sua obra-prima fica hoje num município chamado Chapada Gaúcha? Que pensará ele, onde esteja, do processo implacável de destruição das lindas veredas que são a base de toda a vida por ali? Como interpretará ele a oposição a uma ampliação vital para o Rio São Francisco? Dirá que o diabo está solto na rua, "no meio do redemunho"?

Washington Novaes é jornalista

OESP, 02/01/2004, Espaço Aberto, p. A2

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