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No Conflito de Roraima, Só Pode Haver um Vencedor: O Brasil

Interesse Nacional, v. 1, n. 3, out./dez. 2008, p. 9-17
Autor: REBELO, Aldo
08 de Out de 2008

No Conflito de Roraima, Só Pode Haver um Vencedor: O Brasil

Por: Aldo rebelo

A moralidade da sentença é que quem tem uma propriedade deve logo tratar de a delimitar e de ocupar as fronteiras. O interior pode se deixar desocupado, a raia precisa ser ocupada, sobretudo se o vizinho é nação poderosa.
JoaquIm Nabuco, Diário.

A sentença a que Joaquim Nabuco se referia, em notas pessoais escritas em 1904, era o laudo arbitral do rei da Itália Vítor Emanuel III, que tomou 19 630 km² do Brasil e deu-os à Inglaterra ao julgar uma disputa pela posse de uma fatia do atual estado de Roraima. Ministro plenipotenciário em Londres, Nabuco foi o advogado do Brasil na querela. Sabia como ninguém que as terras haviam sido conquistadas à Espanha pela Coroa portuguesa, depois postas sob a jurisdição do Império do Brasil e, naquele alvorecer da República, eram apropriadas pela Inglaterra como epílogo de um meticuloso programa de cobiça e anexação que começou no século xvIII. Nas mesmas faixas de floresta e lavrado em que se deu o litígio dos dois países, trava-se agora uma luta intestina entre brasileiros que há séculos ocupam e exploram aquela parte do território nacional.

É o conflito embutido na terra indígena Raposa-Serra do Sol, demaraldo rebelo é deputado pelo Pcdob-sP, foi presidente da Câmara, ministro do governo Lula, presidiu e integra a Comissão de Relações Exteriores. Cada em 1,7 milhão de hectares para usufruto exclusivo de aproximadamente 11 mil índios,em prejuízo de não-índios que desde a Colônia ali também se instalaram com a têmpera dos bandeirantes. Se em 1904 perdemos um pedaço do mapa para uma dita "nação amiga",agora trata-se de evitar a seqüela no seio da nação brasileira.

Roraima: território de conflitos

Ocampo de conflitos em que foi transformado o território de Roraima demanda uma visão estratégica que pondere os diversos pleitos fraternos ali presentes. Há de considerar a interdependência dos fatores da formação social brasileira, as demandas de índios e nãoíndios, a geopolítica do interesse nacional mais amplo - fatores que se revestem de maior complexidade na medida em que o cenário alonga-se em zona de fronteira onde é escassa a presença do Estadonacional.Como já tivemos oportunidade de afirmar, o primeiro e maior erro nesse debate é escolher um lado e nele entrincheirar-se para travar uma guerra santa que desconsidere a legitimidade dos demais atores que adensam o litígio.Forçoso é reconhecer que tal erro vem sendo cometido, além do tolerável, pelo partido dos índios, que desenha o debate como um antagonismo entre humanistas e bugreiros - e nesta categoria infame são enfiados todos os que buscam uma saída encaixada num projeto nacional, sem ceder ao dogmatismo das facções. Para solução do problema, impõe-se uma arbitragem nacional justa, que dê a cada um a sua parte eqüitativa, sem que ao final haja vitoriosos e derrotados. Admite-se neste conflito apenas um vencedor: o Brasil.

Incursões Estrangeiras

Como em toda controvérsia, esta também tem seus vilões. O maior deles é o Estado, que desde o episódio da arbitragem real italiana move-se com incúria na defesa dos interesses nacionais. Joaquim Nabuco, a despeito de suas qualidades de estadista, não foi um negociador hábil, restando-lhe a constatação de que deveria o Brasil ter demarcado sua presença naquelas terras de forma ostensiva. É verdade que a arbitragem do rei Vítor Emanuel era um jogo de cartas marcadas. Anglófilo, metido no jogo de partilha do mundo praticado pelas potências européias,sua majestade cuidou de atender ao interesse da nação vizinha e poderosa. Até as pedras sabiam que a presença da Inglaterra no atual território de Roraima fora construída como um projeto expansionista a partir da Guiana Inglesa, tendo como cabeça de ponte a clássica missão religiosa e como artífice um aventureiro - com o incentivo de um tipo de entidade que viria a ser onipresente em nossosd ias, a organização não-governamental.No caso, a primeira ONG estrangeira a sabotar os interesses do Brasil na região foi a Real Sociedade Britânica.

Foi sob a bandeira da pesquisa científica da Real Sociedade, e depois por ela patrocinado, que o aventureiro Roberto Schomburgk, nascido na Prússia em 1804, palmilhou o vale do rio Branco e pôs-se a soldo do império britânico. Desde o Tratado de Tordesilhas as terras pertenciam à Espanha, mas já no século xvII foram invadidas pela Holanda. O Reino Unido teve de comprá-las aos holandeses em 1814 para criar a chamada Guiana Inglesa. Schomburgk viu ali uma oportunidade de estender a bandeira de um império onde o sol nunca se punha. A partir de 1835,cruzou a fronteira do Brasil (chegou até o rio Negro) e passou a reclamar glebas para a Inglaterra. Como era de praxe na colonização,a espada unia-se à cruz, e ele importou um missionário, o metodista Thomas Young, para catequizar os índios, ensinar-lhes o idioma e torná-los súditos ingleses. Young instalou-se entre os macuxis, que originalmente não viviam na região. Foram para lá numa trajetória de nomadismo natural, oriundos das Antilhas, através do rio Essequibo, e daí ao Rupununi e ao Branco.Dez anos depois,Young foi expulso do território brasileiro, levando consigo para a Guiana índios que havia catequizado. Não foi difícil aos invasores argumentarem que os índios reclamavam proteção inglesa contra a escravidão a que eram submetidos no Brasil,embora não se deva deixar de observar que aquele país europeu abolira a escravatura em 1834, ao passo que o governo português proibira o cativeiro de índios em 1758.
A vulnerabilidade da região e a afeição dos índios aos invasores já haviam sido constatadas por Alexandre Rodrigues Ferreira em 1787. No relato Tratado Histórico do Rio Branco,este baiano,que viria a ser o primeiro naturalista do Brasil,sugeriu que fossem instaladas "fortificações"militares, e observou: "Como segundo o que o cabo-de-esquadra me diz da paragem em que encontrou aquele estrangeiro, sendo entre as serras vizinhas ao Rio Rupunuri e ali em uma povoação de índios caripunas, mais afeiçoados dos holandeses que nossos..."

Povoamento e ocupação

A coroa portuguesa, tal como demorara três décadas para apossar-se do Brasil, o tempo entre o Descobrimento e a expedição de Martim Afonso de Sousa em 1532, tinha dificuldades de assumir um território de dimensões continentais. É clássica a observação de frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, de 1627, acerca do apego dos portugueses ao litoral: "Sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos". Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, fundador de Olinda e do ciclo do açúcar, bem resumiu a epopéia em carta ao rei de Portugal: "Somos obrigados a conquistar por polegadas as terras que Vossa Majestade nos fez merecer por léguas".

Contudo, por mais críticas que se façam à ausência da bandeira lusa (e depois brasileira) em Roraima, como se o território tivesse sido até pouco tempo hábitat exclusivo de índios,é fato que já a partir de 1670 teve início a exploração do vale do rio Branco, nome dado pelo explorador português Pedro Teixeira em 1639.Em 1725 instalaram-se na região os frades carmelitas e em 1776 Lobo d'Almada, chefe da Comissão Portuguesa de Limites, subiu ao ponto onde está hoje a cidade de Boa Vista e seguiu o rio Uraricoera até a foz do Araricapará. Em 1775 começara a construção do Forte de São Joaquim e em 1789 já havia fazendas de gado instaladas na região. O professor Aimberê de Freitas, no livro Geografia e História de Roraima, documenta que em 1794 foi formada a fazenda de São José na margem do rio Tacutu, que pertencia ao Brasil mas passou a ser a divisa com a Guiana depois da arbitragem do rei italiano. No trabalho Brasil versus Inglaterra nos Trópicos Amazônicos, de 2003, o pesquisador José Theodoro Mascarenhas Menck demonstra que "a criação de animais, exigida pelos exploradores, começa em 1789. São criadas fazendas régias em torno de São Joaquim,e, sob a proteção do forte e suas patrulhas, o gado vai pastar ao longe, atingindo a região das savanas".

Construído o forte, as autoridades luso-brasileiras tentaram agrupar os índios em pelo menos cinco aldeamentos, com o objetivo de torná-los sentinelas do território e fincar os fundamentos de cidades, mas eles terminaram por rebelar-se.Desde o século xvIII,portanto, o Estado e empreendedores estabeleceram-se em Roraima, e, tal como em outras áreas da colônia, dinamizava-se a fronteira com fortificações militares, atividade econômica e fixação espontânea de migrantes brancos e caboclos dedicados à agricultura e ao extrativismo.

Integração do índio.

A ocupação do vale do rio Branco seguiu o modelo da formação social brasileira. Índios e brancos misturaram-se na constituição do povo, gerando caboclos ou mamelucos que nem sempre viveram em harmonia. Ao contrário, é sangrenta a saga indígena na ocupação do território. Não houve, por certo, genocídio,comotantose diz,assim como carecem de fundamento sequer aritmético os cálculos acerca do número de indivíduos existentes por ocasião do Descobrimento - fala-se até em três milhões, sem nenhum indicação científica da origem do algarismo.Nenhuma história sincera do Brasil poderá ser escrita, no entanto, sem o reconhecimento da tragédia imposta aos índios e aosnegrosescravos,assim como é inescapável a comprovação de que ambos enriqueceram a formação étnica brasileira,tal como demonstrado à larga por Gilberto Freire. Transplantadas para os nossos tempos, a dívida e agratidão que o Brasil tem com os índios está expressa no Art.231da Constituição, que garante o usufruto das terras que tradicionalmente ocupem.Nenhuma inteligência humanista poderá negar aos índios que vivem em Roraima o direito de terem as terras de que necessitem para viver demarcadas e protegidas da invasão por parte de quem quer que seja.Convém lembrar que fez o Brasil um esforço comovente para incorporar os índios à sociedade nacional, esta secularmente revestida de virtudes e deformidades que afetam a todos os brasileiros. Apesar dos pesares, a intervenção do Estado em favor dos índios, preconizada pelo patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva e introduzida pela República com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910, assinalou o fim doutrinário das guerras de conquista de território, da catequese dogmática e do etnocentrismo cultural.Nesta via-sacra, todos temos pecados, e não só os estigmatizados conquistadores, bandeirantes, fazendeiros, seringueiros, garimpeiros.Do lado dos cientistas, pontifica a visão de remoção dos obstáculos ao progresso defendida pelo naturalista alemão (e naturalizado brasileiro) Hermann von Ihering (1850-1930),que legou um trabalho precioso à frente do Museu Paulista, mas não teve pejo em pregar o extermínio sumário dos caingangues que resistiam à passagem por suas terras da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A Igreja Católica também deixou escalpos pelo caminho. O etnólogo Darci Ribeiro, na grande obra de referência Os Índios e a Civilização, de 1970, relata episódios em que a chegada dos missionários coincidiu com o desaparecimento da tribo que foram catequizar: "É o caso da missão dominicana de Goiás e do Sul do Pará. Seu principal centro missionário, Conceição do Araguaia, é hoje uma cidade. Ocorre, porém, que os índios Kayapó, objeto de seu desvelo, morreram todos sem deixar descendentes e os padres passaram a cuidar dos sertanejos que se haviam localizado junto à missão e hoje constituem o seu rebanho".

Maior autoridade do indigenismo científico do Brasil, Darci mostra que, ao aceitar dirigir o SPI, um dos maiores brasileiros, o Marechal Rondon, anunciou que adotaria diretrizes baseadas em José Bonifácio:

1. Justiça - não esbulhando mais os índios, pela força, das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores;
2. Brandura,constância e sofrimento de nossa parte, que nos cumpre como usurpadores e cristãos;
3. Abrir comércio com os bárbaros, ainda que seja com perda de nossa parte;
4. Procurar com dádivas e admoestações fazer pazes com índios inimigos;
5. Favorecer por todos os meios os matrimônios entre índios e brancos e mulatos.

No bojo do Decreto n 9 214, de 15.12.1911,que oficializou o SPI, diz Darci, "pela primeira vez era estatuído, como princípio de lei, o respeito às tribos indígenas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças,de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que aprenderam de seus antepassados e que só lentamente podia mudar". E mais: "Outro princípio de importância fundamental era a proteção ao índio em seu próprio território",diz ainda o grande etnólogo, daí adotando-se a fórmula das demarcação do hábitat e não a transferência abusiva para locais distantes do assentamento tradicional das tribos.Índios e não-índios entrelaçados Sob a luz desses aspectos históricos é que se deve examinar o problema de Roraima.Trata-se, em primeiro lugar, de reconhecer o direito dos índios às terras que ocupam, mas,convém repetir,sem desprezar - antes valorizar - os demais aspectos geopolíticos e históricos que configuram o ambiente de tensão. Faz-se imperioso insistir numa solução que atenda aos interesses de todos os envolvidos - a começar da unidade nacional. Urge respeitar as diferenças, mas o objetivo final é a igualdade.

A demarcação de Raposa-Serra do Sol numa área contínua de 1,7 milhão de hectares é um erro a ser revisto. Ao tomar essa decisão desastrada, o Estado brasileiro desperdiçou a solução e fomentou o conflito. Os índios da região - cujo número também é elástico, variando, de acordo com a fonte, de dez mil a dezenove mil - vivem num regime de cooperação e disputa com os não índios, incluindo aí as autoridades, a começar do Exército. Não se apartam num cordão sanitário que os isole da comunidade nacional.

Muitíssimos índios trabalham ou trabalhavam nas fazendas e lavouras que remontam ao século xvIII,sobretudo de nordestinos que levaram gado e algodão aos campos de Roraima.Outros, principalmente os macuxis, excelentes vaqueiros, são pecuaristas ou agricultores com rebanhos de trinta mil reses e lavouras mecanizadas. Há os que se filiam ao catolicismo e os que professam antigas e novas denominações ditas evangélicas. Desde séculos ocorrem os casamentos inter-étnicos,sobretudo de índias com caboclos arribados do Nordeste. Há notícias de que agora tuxauas locais, certamente mal influenciados, cogitam de proibir esses casamentos, como a buscar uma pureza étnica incompatível com a tradição brasileira. Os estudiosos citam uma carta de 1940 do padre beneditino Alcuino Meyer, na qual aponta o caso de um garimpeiro chegado havia mais de trinta anos ao local conhecido como Socó, hoje na área da reserva, o "velho mineiro Severino Pereira da Silva, casado pela segunda vez com índia macuxi e pai de numerosa família".Muitos índios - e seus descendentes das uniões fora das tribos - sabem ler e escrever, usam artefatos tecnológicos, prestam serviço militar,pagam impostos, almejam, por força da pressão ideológica que fascina a todos os estratos sociais, integrar-se ao mercado de produção e consumo de mercadorias e sonhos.

Como quaisquer brasileiros, exercitam a cidadania participando da vida em comunidade e da política.A índia macuxi Erotéia (Téia) Mota é candidata a vice-prefeita do município de Pacaraima, na chapa do líder dos arrozeiros (dado como inimigo número um dos índios) Paulo César Quartiero,dodem.A prefeita de Uiramutã,outra cidade encravada no perímetro da Serra do Sol, Florany Mota, do Pt, ela própria neta de um caboclo da Paraíba com uma índia macuxi, me disse que seus antepassados chegaram à região em 1908, misturaram-se aos índios e - aqui faço um paralelo - procriaram gerações de mestiços da mesma forma que o tuxaua Tibiriçá, protetor dos jesuítas em São Paulo, pai de Bartira e sogro de João Ramalho, fez-se avô de uma linhagem de paulistas quatrocentões.

A essa natural roda da história o Brasil adotou como meta a integração dos índios à sociedade nacional. É a linha estabelecida no Estatuto do Índio, de 1973, mas, ultimamente, repudiada pelas ongs e rejeitada como política da Funai. Deve-se ponderar que a assimilação de outros costumes pelas tribos não as descaracteriza como sociedades indígenas.Índio,segundo uma definição de Darci Ribeiro,no texto Culturas e Línguas Indígenas do Brasil, formulada nos anos 1950, mas adotada ainda hoje pela Funai, é "aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana.Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato".

Ocorre que em Roraima reproduziu-se o cenário dos séculos, repleto das contradições peculiares à gênese do povo brasileiro.

Nossa marca é a mistura, não a pureza. À revelia da história e da realidade concreta construída pelos protagonistas, a demarcação contínua da reserva significou a "extrusão" sumária dos não-índios, a restrição da presença do Estado e, não menos grave, o isolamento de um vasto pedaço do território nacional bordado em 964 quilômetros de fronteira com a Guiana e outros 958 quilômetros com a Venezuela. A solução natural deverá ser baseada no respeito a esses quesitos. A defesa honesta e íntegra dos índios não implica necessária - e lamentavelmente - na discriminação dos não-índios.

Demarcação sem cabimento

Uma voz a ser ouvida é a do engenheiro agrônomo Carlos Ernesto Schaefer. Professor da Universidade Federal de Viçosa (mg),pesquisador do CNPq, fez na área suas teses de mestrado e doutorado e foi um dos cinco peritos nomeados pela Justiça Federal para elaborar o laudo acerca da demarcação contínua ou pontilhada da reserva. Com rara autoridade no assunto, Schaefer pondera que na área de Raposa-Serra do Sol existem cinco etnias distintas, macuxi, taurepang, patamonas, ingaricó e vapixana, de habitats e costumes distintos,algumas até rivais. Estão divididas em "adensamentos com 91 malocas,totalizando uma população por volta de 10 500 pessoas, nas áreas Ingarikó, Saraó, Vale do Rio Quinô, Carapuru-Canaã, Maturuca, Raposa-Surumu, Cutia,Xuriunuatemu,Cedro,Patativae que vivem salutarmente integrados com os não-índios até os dias de hoje".

Nos cálculos de Schaefer,não tem cabimento ilhar uma área de 1,7 milhão de hectares para os índios: bastariam 400 hectares de trechos onde efetivamente vivem as tribos. "Considerando os períodos de pousios típicos adotados na região, de cerca de 10-15 anos de abandono, poder-se-ia estimar uma área de aproximadamente 5 000 a 10 000 hectares, que seria como suficiente para prover a subsistência da população total da região,mediante técnicas rudimentares de cultivo.Grande parte dos restantes 350 000 hectares, de áreas de relevo muito desfavorável, pode ser utilizada por pastoreio extensivo e extrativismo vegetal, nos moldes existentes há mais de 250 anos na região", diz o pesquisador.Tal demarcação não afetaria,segundo o pesquisador, a cosmovisão indígena,incluindo-se a sua compreensão de que a terra não é apenas um bem econômico a ser explorado, mas o território da vida.

A demarcação de terras ainda se baseia no antigo comportamento nômade e extrativista das tribos, que precisariam de glebas infindas para caçar, pescar, coletar e extrair produtos da floresta e praticar a agricultura de coivara. Segundo a Funai, o Brasil tem aproximadamente "460mil índios,distribuídos entre 225sociedades indígenas", estes vivendo em aldeias, "havendo estimativas de que, além destes, há entre cem mil e 190 mil vivendo fora das terras indígenas,inclusive em áreas urbanas".Os aldeados dispõem de 611 áreas de usufruto exclusivo, das quais 488 estão identificadas,isto é,delimitadas,homologadas ou regularizadas, com o total de 105 milhões de hectares,ou 12,41% do território nacional.Outras 123 terras indígenas aguardam demarcação. Em Roraima, 32 reservas somam 12,3 milhões de hectares, ou 46% da superfície de 22 milhões de hectares do estado.

Segundo dados divulgados pela ex-ministra do Meio Ambiente Marina da Silva, no artigo "Raposa-Serra do Sol: Um Lugar de Direito", "a população rural não chega a 90 mil pessoas, das quais 46 mil são indígenas, ou seja,52% do total, ocupando 47% das terras. Raposa-Serra do Sol ocupa 7,7% da área do Estado e abriga 18 mil índios". Do "outro lado", diz ainda a ex-ministra, "seis rizicultores ocupam 14 mil hectares em terras da União". A presença dos não-índios, como já demonstrado, tem substância histórica e é superior a este número anêmico.Ainda assim,mesmo os alegados "seis arrozeiros" não significam meia dúzia de indivíduos, mas empreendedores que desenvolvem atividade econômica, empregam muita gente - inclusive índios - e ajudam a vivificar a zona de fronteira e extensas áreas a elas contíguas.

Outros ocupantes não-índios já foram expulsos desde a homologação da terra indígena,em 2005, e, pelo rigor da lei, mesmo os que constituíram família com índios dependem da autorização daqueles para continuar na área.O mais importante a considerar para a solução justa do conflito é que o centro do problema não é a defesa de "seis arrozeiros", e sim de um contingente enumerável de brasileiros que não se declaram índios. Segundo os dados de Marina da Silva, chegam a 48% da população rural do estado. Como vimos, muitos dos que vivem na área de Raposa-Serra do Sol têm raízes ancestrais que remontam a mais de dois séculos e, acima de qualquer argumento, pertencem à nação brasileira tanto quanto os índios - e vice-versa.

Não à soberania relativa

A controvérsia suscitada pela demarcação contínua de Raposa-Serra do Sol decorre do aspecto geopolítico de a reserva estar em área de fronteira deserta.Visto no mapa,Roraima é uma cunha que avança entre a Guiana e a Venezuela, e foi no extremo norte do estado que os topógrafos traçaram os limites da terra indígena. O povo brasileiro teme pelo futuro dessa parte do território. Há quem exagere, mas a verdade é que há séculos a Amazônia tem sido objeto de cobiça e de invasões de franceses, ingleses,espanhóis e holandeses.Foram os bandeirantes que demarcaram e garantiram as atuais divisas do país, a exemplo do capitão Pedro Teixeira, que subiu o Amazonas e pelo Negro chegou ao rio Branco, ou Raposo Tavares, que foi de São Paulo a Gurupá, perto de Belém, e mesmo Francisco de Melo Palheta, cuja entrada de 1727 avançou até a Guiana Francesa e de lá trouxe nada menos que o café.Os tempos são outros, os métodos idem.É impensável que países como a França, Espanha, Holanda ou Inglaterra simplesmente invadam a Amazônia. É compreensível, por ser fato palpável, no entanto, que muita gente de boa-fé preocupe-se com o futuro da região,por ela constituir um tesouro ecológico retardatário. A ninguém agrada, a começar dos brasileiros, a progressiva destruição da maior floresta equatorial do mundo. São latentes,porém, as insinuações de que o melhor para a preservação do planeta verde seria relativizar a soberania do Brasil. Na prática, isso já está acontecendo com a presença ruidosa de ONGs estrangeiras que integram o movimento ambientalista internacional. Dão palpites se podemos ou não abrir uma estrada, fazer uma barragem, explorar a floresta. Os países industrializados destruíram ou consumiram seus recursos naturais e continuam a ser os maiores poluidores do planeta. Agora, por meio de suas ONGs, e de uma e outra indiscrição de autoridades, erguem a bandeira da intocabilidade da Amazônia.

Doutrina perigosa

Como todo movimento político, este também tem sua ideologia. A doutrina da preservação dos "povos da floresta" assegura que os índios constituem nações e têm direito à soberania ao menos relativa em referência aos Estados nacionais. O centro da questão com a Inglaterra,no século xIx, esteve precisamente nesse conceito de autonomia tribal. Os mapas ingleses não mostravam a região que ia da fronteira da Guiana até o rio Surumu (uma das áreas da reserva de Raposa-Serra do Sol) como pertencentes ao Brasil, mas habitada por "tribos independentes". A bandeira da independência,associada à propaganda de que os índios são vítimas do Estado brasileiro, abre as portas dos foros internacionais. Já é rotina as ONGs empurrarem índios para a busca da arbitragem estrangeira, como se expressassem uma questão nacional própria alheia e até antagônica à nação brasileira.

Não se pode atribuir outro sentido à viagem a seis países europeus (e mais o Vaticano e o papa) feita em junho e julho por dois índios de Roraima. Na visita a Lisboa, segundo relato do jornalista Simon Kamm, da Agência Lusa, a índia Pierlângela Cunha, da tribo vapixana, instou Portugal "a que ratifique a Convenção 169 da oIt sobre povos indígenas e tribais em países independentes [que trata sobre a relação entre os povos indígenas e a sua terra, recursos naturais e oportunidades de desenvolvimento] para que outros povos nativos possam solicitar apoio". O jornal Times de Londres noticiou que Pierlângela apresentou a viagem como acumulação de forças para a batalha que os índios já planejam travar em tribunais internacionais, caso o Supremo Tribunal Federal decida pela demarcação descontínua de Raposa-Serra do Sol. As duas lideranças indígenas pediram a intervenção de autoridades estrangeiras no conflito brasileiro mencionando os documentos que advogam a independência das tribos.
Além da Convenção da OIT, invoca-se a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas,aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 13 de setembro de 2007. O Brasil e mais 142 países, a maioria deles sem um só índio,votaram a favor, mas quatro que concentram grandes populações aborígines foram contra:Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O artigo 3 da Declaração é peremptório: "Os povos indígenas têm direito à livre determinação". Na tradição do indigenismo brasileiro, aquela de José Bonifácio,Marechal Rondon e Darci Ribeiro, consolidada pelo Estatuto de 1973, as tribos não constituem nações nem são povos independentes,portanto não podem as vivandeiras atribuir-lhes independentismo que as coloquem acima ou ao largo do Estado nacional. Logo, o único foro aceitável para este debate é o Brasil, sua sociedade e instituições, a exemplo do Supremo, que avalia se mantém ou não a demarcação contínua de Raposa-Serra do Sol.

Se prosperar essa doutrina de que os índios têm direito à autodeterminação em seu território, como parece estar prosperando, amplia-se uma vulnerabilidade que expõe larga faixa do território brasileiro à influência de organismos internacionais e ao manejo de organizações estrangeiras. Por mais que caminhem na direção da integração à sociedade nacional, fenômeno que ocorre em Roraima, os índios não têm - e deles não se cobra - consciência geopolítica sofisticada para discernir os interesses em jogo. Eles não ocupam as terras no sentido de fixar uma presença nacional marcante, afirmativa e dissuasória numa área de fronteira. Nem isso deles se espera. Tal papel é do Estado, não só com seu aparelho militar, mas como indutor da ocupação do território.A tarefa secular,renovada em nossos dias,é ocupar a Amazônia e evitar a intromissão estrangeira. A última coisa que o Brasil pode admitir é a transferência dos seus problemas para foros multilaterais, e depender de arbitragens externas. São atualíssimas duas lições do litígio com a Inglaterra.

A primeira foi lavrada já em 1904, pelo Barão do Rio Branco,chanceler do Brasil que acatou a mediação do rei da Itália. Num artigo de jornal, citado por José Theodoro Mascarenhas Menck, o estadista, que soube resolver a Questão do Acre com a Bolívia, sem sangue ou ressentimento, afirmou: "Esta lição consiste em reconhecer que o arbitramento não é sempre eficaz. Pode a causa ser magnífica, o advogado inigualável, e, como é o caso, ter-se uma sentença desfavorável". Só devemos recorrer a ela quando for de todo impossível chegarmos a um acordo direito com a parte adversa.Transigiremos, então, tendo em vista o interesse comum, mas não veremos possíveis interesses estranhos a nós, desconhecendo o nosso Direito e até os princípios do Direito Internacional".

Ser forte para ser pacífico

Também soa contemporânea a conclusão de Joaquim Nabuco de "que quem tem uma propriedade deve logo tratar de a delimitar e de ocupar as fronteiras". Sem descuidar das necessidades dos índios, cabe ao Estado brasileiro induzir a ocupação das zonas fronteiriças com megaprojetos de desenvolvimento que respeitem o ecossistema, mapeamento fisiográfico,monitoração militar e pesquisa científica. Dois programas importantes para a região, o Calha Norte e o Projeto Sivam, se não fracassaram, ficaram longe dos objetivos. Uma falha do Estado está na balbúrdia fundiária: ninguém sabe quem é dono do quê. Urge instalar uma superbase administrativa com unidades do Incra,Ibama, Funai e militares das três Armas, talvez no rio Negro, com tropa numerosa e flexível,e apoio de caças e de aviões-patrulha, além de corvetas de baixo calado e rápido deslocamento. Hoje, o Exército tem apenas 25 mil soldados na Amazônia. Tome-se o caso da faixa de dois mil quilômetros de fronteira com as Guianas e o Suriname: o pelotão local dispõe de apenas dezessete homens para fiscalizar a faixa de 1 385 quilômetros de fronteira no extremo norte do Pará. As unidades do Exército não possuem barcos velozes nem helicópteros nem aviões de caça para fiscalizar a fronteira e chegar rapidamente a um local de conflito ou de situação suspeita. Usam ubá, a velha canoa índia esculpida num tronco de árvore.

Mais uma vez, paira sobre nossas responsabilidades uma advertência de Rio Branco, feita em discurso no Clube Militar, em 11 de outubro de 1911: "Não se pode ser pacífico sem ser forte".

Interesse Nacional, v. 1, n. 3, out./dez. 2008, p. 9-17

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