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Nenhum outro interesse prevalecera

In The Mine, n. 17, set-out 2008, p. 80-85
31 de Out de 2008

Nenhum outro interesse prevalecera
Substitutivo ao PL 1,610/96 complica ainda mais e pode mesmo inviabilizar a atuação de mineradoras em terras indígenas

Por Tébis Oliveira

Em 1o de julho passado, o deputado Eduardo Valverde (PT-RO), relator da Comissão Especial de Exploração de Recursos em Terras Indígenas, apresentou na Câmara dos Deputados o substitutivo ao Projeto de Lei 1.610/96, de autoria do senador Romero Jucá, que regulamenta a mineração naquelas áreas. O documento será analisado, votado e, se aprovado, encaminhado ao Senado Federal, até o final de outubro, segundo Valverde.

"Estou dialogando com o senador Romero Jucá para agilizar a votação no Senado também. Há interesse na matéria e é provável que a lei seja promulgada ainda este ano", assegura o deputado. É uma previsão otimista para uma discussão em pauta há 20 anos, desde que a Constituição de 1988 dispôs que a pesquisa e lavra de riquezas minerais em Terras Indígenas devem ser autorizadas pelo Congresso Nacional, depois de ouvidas as comunidades afetadas e mediante sua participação nos resultados da lavra.

O substitutivo, como o próprio nome diz, altera o PL 1.610/96. Na opinião de alguns especialistas, para pior. "Foram feitas profundas modificações, algumas flagrantemente inconstitucionais. O IBRAM opina por sua rejeição na forma como está redigido", declara Marcelo Ribeiro Tunes, diretor de Assuntos Minerários da entidade. Também Raul Silva Telles do Valle, coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS), do Instituto SocioAmbiental (ISA), tem críticas: "O substitutivo está elaborado para que a mineração ocorra de qualquer maneira. Não define qual minério é de interesse nacional, não dispõe sobre a recusa das comunidades indígenas e é omisso nos mecanismos de controle e garantias ambientais. Sem suprir as omissões e corrigir os erros, a lei será bastante questionável".

Já Miguel Antonio Cedraz Nery, diretor-geral do DNPM, diz que "o texto representa um avanço importante, criando condições para, num futuro breve, viabilizar empreendimentos de mineração sustentáveis e tecnicamente corretos nas Terras Indígenas." Questionado se o substitutivo mais restringe que permite a mineração nessas áreas, Valverde lembra que é preciso respeitar as tradições e diferenças culturais desses povos, citando a Austrália, onde 2/3 da economia é minerária e 70% da extração mineral ocorre em Terras Indígenas. No Brasil, acrescenta, "como não há tradição sobre o tema, a norma jurídica é ineficiente e inexiste jurisprudência na matéria, estamos inventando a roda. Tentamos fazer isso da forma mais responsável possível, mas estamos trabalhando em terreno pantanoso".

Referências
Para avaliar o PL 1.610/96, a Comissão Especial realizou 16 eventos, entre reuniões deliberativas e audiências públicas, coletando sugestões de especialistas, juristas, entidades, organizações e lideranças indígenas para subsidiar o substitutivo. Também visitou as aldeias dos Yanomamis e Waimiri-Atroari, no norte do Brasil, e a Austrália, além de encontrar o líder indígena canadense Glenn Nolan.

Da experiência na Austrália, por exemplo, Valverde diz ter obtido bons exemplos de como compatibilizar os interesses indígenas aos da iniciativa privada. "As mineradoras australianas não vêem problemas em desviar uma ferrovia se ela passar por um cemitério indígena. Grandes grupos como a Rio Tinto e a BHP compreendem e respeitam a forma de vida dos indígenas e praticam a mineração protegendo sua diversidade étnico-cultural. No Brasil, as mineradoras, incluindo subsidiárias daqueles grupos, ainda têm muita resistência a esse contexto".

O ISA, que participou de uma audiência pública em dezembro de 2007, com outras organizações indígenas e indigenistas, contradiz o deputado. Segundo a advogada do PPDS, Ana Paula Caldeira Souto Maior, a visita aos Yanomani foi desastrosa: "A reunião foi convocada através do Comandante do Exército de Roraima, general Eliezer Monteiro, que não explicou seu objetivo. Representantes da Hutukara (Associação Yanomami) não foram chamados e participaram somente depois que o Procurador da República em Roraima intercedeu junto ao relator, no mesmo dia da reunião. "Quanto aos Waimiri-Atroari, diz Ana Paula, a Comissão Especial nem foi recebida porque chegou na reserva durante uma festa indígena: "A visita não foi planejada e, mesmo membros da CE que desejavam participar, não foram avisados a tempo."
Com relação a Austrália e ao encontro com Glenn Nollan, a advogada avalia que são realidades bem diferentes da brasileira: "Seria melhor terem buscado experiências concretas em áreas indígenas sul-americanas, como na Colômbia, Peru e Equador", compara.

Nova Ordem Mineral
Entre as principais alterações que o substitutivo faz ao PL 1.610/96 estão a extinção do direito de prioridade dos títulos minerários emitidos antes da promulgação da lei, a supressão do direito de prioridade dos requerentes de alvarás de pesquisa mineral, a licitação pública para a concessão da pesquisa e lavra e sua autorização por uma Comissão Mista do Congresso Nacional, formada por membros da Câmara dos Deputados e do Senado. Também estão previstos prazos para a concessão e uma alíquota mínima de 4% sobre o faturamento bruto da operação mineral, a título de compensação financeira.

Para Valverde, a caducidade dos títulos, a licitação e o prazo da concessão modernizam procedimentos atuais da área mineral, enquanto a autorização por uma Comissão Mista deve agilizar o processo de concessão. Falando dos dois primeiros itens, especificamente, o deputado lembra o número de requerimentos de pesquisa no Brasil que são objeto de transação comercial. Segundo ele, há pouca pesquisa mineral no solo brasileiro porque, como os alvarás não têm prazo definido, cria-se um mercado paralelo para comercializá-los, o que acaba não efetivando nem a pesquisa nem a produção mineral. "Por isso. a Comissão Especial achou por bem extinguir aqueles títulos e licitar as áreas, como garantia de que a empresa vencedora reúna as condições econômicas, tecnológicas e socioambientais necessárias para desenvolver o melhor projeto mineral."

Quanto ao faturamento bruto como base de cálculo da compensação financeira, com aplicação do percentual mínimo de 4%, Valverde diz que reflete uma discussão em curso no Congresso Nacional sobre o baixo retorno que os municípios têm com a mineração, em comparação ao volume de minério que é extraído e ao impacto ambiental que isso causa. "Resolvemos aumentar um pouco a alíquota de 3% da CFEM para 4%, no mínimo. Mas ainda não é uma questão fechada. Pretendemos ouvir governadores e prefeitos de cidades com mineração antes de uma decisão final".

Em discussão
Também não são questões fechadas a fase em que a área será licitada, se no momento da pesquisa ou depois dela, e se o projeto de lavra poderá ser readequado, caso não seja aprovado pelo Congresso Nacional, ou se haverá uma nova licitação, como está no texto agora. Outro ponto é quem fará a gestão da compensação financeira e como parte dela poderá ser destinada ao desenvolvimento de atividades econômicas que assegurem uma renda para a comunidade depois que a operação mineral for encerrada. "Queremos resolver o máximo de pendências nessa fase preliminar, que é a instância da Câmara dos Deputados, para que, ao chegar ao Senado, o projeto de lei esteja o mais consolidado possível", justifica Valverde.

Há um ponto, ainda, que não depende da boa vontade do deputado. O substitutivo prevê que cooperativas indígenas possam participar da licitação de áreas de pesquisa e lavra mineral. A constituição jurídica dessas associações ainda não é possível porque a lei que regulamenta a condição de cidadãos plenos dos índios assegurada pela Constituição - o Estatuto das Sociedades Indígenas (PL 2.057/91) - ainda está sendo analisada. Pelo estatuto antigo (Lei 6001/73), de visão tutelar e integracionista, os índios são considerados incapazes, o que lhes tira o direito, entre outros, de se constituir como pessoa jurídica. O ideal, explica Valverde, é que o substitutivo ao PL 1.610/96 caminhasse junto com o novo Estatuto para evitar esse conflito de normas, que também ocorre em relação à imputabilidade penal dos indígenas.
Situação específica

Em sua quase totalidade, o substitutivo da Comissão Especial é aprovado pelo DNPM. Para Miguel Nery, o Código de Mineração e outras leis da órbita mineral não servem de parâmetros às novas disposições propostas. "A mineração em Terras Indígenas será regida por uma lei específica que apenas irá regulamentar o rito já estabelecido pela Constituição Federal", explica o diretor-geral do órgão.

No entanto, no que toca à operação mineral em si, são aplicáveis todas as demais regras, como normas e portarias do DNPM, que regulam a mineração no País e que não estejam estabelecidas nos dispositivos criados para as terras indígenas. A exceção fica por conta do extrativismo mineral, privativo dos indígenas em suas terras, que se configura como regime diferenciado de aproveitamento mineral, não se enquadrando, dessa forma, sequer na Lei 7.805/89, que instituiu a Permissão de Lavra Garimpeira.

A licitação das áreas também está correta para o DNPM, inclusive por gerar recursos financeiros para as comunidades indígenas. Além disso, Nery compara o processo ao da venda dos direitos de pesquisa por empresas juniores para grandes mineradoras, por vezes, sem que tenham sequer investido na realização da pesquisa. "Não vejo qualquer problema, portanto, no fato de o governo vender concessões em Terras Indígenas. O real interesse e o valor das áreas serão definidos pelo próprio mercado", argumenta. Quanto à incidência da CFEM sobre o faturamento bruto, o diretor-geral diz que foi adotada essa base de cálculo para que a alíquota não fosse excessivamente elevada e porque o grau de complexidade que há no faturamento líquido prejudicaria o entendimento dos índios.

As poucas discordâncias são de ordem técnica.
Um exemplo é o da oitiva às comunidades indígenas: Nery defende que elas opinem sobre a existência de mineração em suas terras, porém os condicionantes da operação devem ser estabelecidos no edital de licitação da área e no contrato de concessão que, por sua vez, receberia um termo aditivo na conclusão da pesquisa mineral. "Apenas com o estudo de viabilidade da lavra é que a mineradora poderá assumir compromissos sobre remunerações e contrapartidas ao governo e às comunidades indígenas", justifica. Para ele, ainda, a autorização do Congresso deve ser única e dada no início do processo: "O setor mineral não pode investir em pesquisa sem a garantia da atividade de lavra. É de fato uma temeridade imposta na proposta que deve ser revista", diz.

Considerações
O substitutivo também tem a aprovação do IBRAM no que se refere à licitação das áreas e à oitiva da comunidade indígena, com a mesma ressalva de que ela poderia se restringir à fase inicial do processo de outorga. E só. A entidade é contrária, por exemplo, à extinção dos direitos minerários anteriores à nova lei, para Tunes, "obtidos dentro do regime constitucional então vigente" e ao estabelecimento de prazos no contrato de concessão ("fere o dispositivo constitucional do artigo 176,§ 3").
Também critica o faturamento bruto da operação como base de cálculo da CFEM, assim como qualquer outro ônus de natureza tributária e de participação nas atividades de mineração.

Para o ISA, o principal problema é que o processo de decisão da autorização previsto no projeto é confuso em relação à consulta aos povos interessados. "O artigo 7o diz que eles serão consultados sobre a instauração do procedimento, quando na verdade serão somente informados. O artigo 13 dispõe que, sendo favorável ao pedido, a Comissão Mista consultará os índios. O artigo 14 fala que durante a oitiva, os índios poderão manifestar sua recusa.
Pelo contrário, no artigo 15 está que, sendo autorizada a pesquisa, a Comissão Mista elaborará proposta de decreto legislativo que, submetida ao Plenário, poderá ser rejeitada ou aprovada, totalmente ou com ressalvas. Em nenhum momento se menciona como o Congresso deve proceder com relação à recusa dos índios", diz Telles, coordenador do PPDS.

Ele defende, aliás, que o próprio PL seja submetido à consulta. Não na forma de coleta de subsídios que a CE realizou, mas observando procedimentos apropriados e através de organizações representativas, tendo seu resultado refletido no corpo da lei e na sua justificação. "A consulta prévia foi solicitada em requerimento por uma deputada da CE e negada pelo Presidente da Comissão. Também o ISA já se posicionou publicamente quanto a aspectos do projeto e continuará fazendo isso na medida em que o texto for modificado, inclusive com o intuito de apoiar a participação das organizações indígenas parceiras, que são as principais interessadas", afirma o advogado.

In The Mine, n. 17, set-out 2008, p. 80-85

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