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'Não dá para salvar a espécie antes da natureza'

O Globo, Página 2, p. 2
Autor: BERTOLOSSI, Leonardo
30 de Dez de 2015

'Não dá para salvar a espécie antes da natureza'
Leonardo Bertolossi, historiador e antropólogo Intérprete da ideia de que o homem e seu meio são um mesmo ser, estudioso veio ao Rio para aula aberta e gratuita na Escola de Artes Visuais do Parque Lage

"Nasci em Niterói (RJ), há 34 anos, e meus estudos se aplicam às maneiras de abordar as representações indígenas contemporâneas no Brasil, nos EUA, na Austrália e no Canadá, tendo em conta o romantismo que cerca esses povos diante dos diagnósticos apocalípticos para o futuro da Humanidade"

BRUNO CALIXTO
bruno.calixto@oglobo.com.br

Conte algo que não sei.
Diante de um mundo globalizado, com tantos anúncios de crises do capital e do clima, temos que pensar nas alternativas sem cristalizar visões imperialistas e racistas que tendem a configurar um imaginário romântico dos índios, ligado à natureza, ou ao mágico e ao xamanismo, apenas.
Qual é o dilema?
Hoje temos uma profusão de experiências na vida indígena vinculadas ao capitalismo e ao mercado. O dilema é como encarar isso sem levar em conta o impacto da conquista, do extermínio, da face do etnocídio ao longo dos séculos. Ou o discurso neo primitivista e evolucionista.
Como pensar o indígena?
Como mundos dinâmicos tentando se reinventar diante de um mundo globalizado, levando em conta suas contradições e paradigmas. Um mundo que exige índios na curadoria de museus, ou índios produzindo arte contemporânea. Hoje, existem bienais específicas para acolher esse tipo de produção. É preciso pensar também na introdução de categorias universais, como identidade cultural, propriedade e autoria, interesse em consumo de produtos do luxo ocidental por parte destas populações.
Que caminhos aponta a antropologia contemporânea?
Dos anos 90 para cá, há um grupo que prioriza o renascimento da natureza pelo animismo, que considera que todos os seres do planeta têm alma, estão vivos. Pensa a natureza também como humana. Do ponto de vista indígena, esses seres têm uma alma humana e uma máscara animal e vegetal.
Fala-se em repatriação...
É quando o índio merece ter de volta artigos e peças de seu dia a dia em museus, pelo sentido de rituais, dentro de suas próprias cosmologias.
Não é complicado?
Sim. Um exemplo são as cabeças troféus dos índios pleiteadas no Smithsonian National Museum of Natural History, Washington (EUA), para que pudessem eles reconectá-las em seus rituais. Houve uma contenda, ainda sem solução.
O mercado de arte é mais financeiro ou humano?
Quando falamos em mercado de arte não falamos só de capital financeiro, mas de capitais simbólicos, humanos e de afeto inter-relacionados. Não demonizar nosso mundo e exaltar o mundo indígena como heroico é uma maneira de dominação e racismo.
Onde se dá a fronteira entre o homem e a natureza?
A nossa busca por salvar a natureza, este mistério, é um conceito que muda muito e tem a ver com nossos desejos narcisistas de a gente se salvar. Não dá para salvar a espécie antes da natureza.
Fale sobre a política indigenista no Brasil.
Num momento em que a PEC 215, que altera demarcações de terras e reservas indígenas, está sendo tratada num Congresso conservador, é preciso lembrar o olhar cínico e etnicida. Nos EUA, apesar de terem sido dizimados na conquista do Oeste, os índios não querem ser vistos como vítimas, sem capacidade de ação.
Ainda há canibalismo?
É uma questão para pensar em identidade. Quando se produzem hip-hops indígenas, Miss Caiapó e mostra de cinema na aldeia de filmes feitos por indígenas, eles estão canibalizando a cultura ocidental!

O Globo, 30/12/2015, Página 2, p. 2

http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/leonardo-berto…

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