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Na aldeia dos palhaços sagrados

CB, Caderno C, p. 3
29 de Jan de 2007

Na aldeia dos palhaços sagrados
Índios Krahô levam a Taguatinga o cotidiano de uma tribo e apresentam a figura do hotxuá, mestre na arte de fazer rir

Tiago Faria
Da equipe do Correio

Para identificar um hotxuá na multidão, o homem branco precisa treinar o olhar. Antes de qualquer movimento, deve livrar-se de uma velha e persistente imagem: aquela que associa a figura de palhaços a roupas coloridas, pesada maquiagem, perucas extravagantes. Um hotxuá não precisa de nariz vermelho para arrancar sorrisos do público. Cumpre a missão em silêncio, com gestos precisos e cumplicidade de quem assiste ao espetáculo. Não é por pouco que recebe a alcunha de "palhaço sagrado". No povo Krahô, que habita região no Tocantins, o mestre da alegria assume função nobre, transmitida de geração em geração: assegurar a resistência cultural a uma tribo maltratada por massacres e epidemias. No intercâmbio artístico que marcou a maratona do 3o FestiSesi, encerrada ontem, eles assumiram um outro papel: o de mestre de cerimônias de uma jornada pela arte indígena - e um mergulho no cotidiano de uma aldeia brasileira.

Os visitantes do Espaço Cultural Sesi começaram o passeio pela tradição dos hotxuás sexta-feira, no fim da tarde, em uma performance com crianças que conquistou uma platéia curiosa, entusiasmada com a graça Krahô. "Não somos iguais aos palhaços que os homens brancos conhecem. Não podemos levantar a voz, temos que ficar sem falar. Só usamos os gestos, as nossas mãos", ensinou Ismael Ahpract, cacique dos hotxuás. Os "palhaços sagrados" recebem esse título logo que nascem, quando um tio ou uma tia lhes dá um nome específico que, na tribo, remete ao papel de um hotxuá. Enquanto crescem, são ensinados a manipular a técnica das risadas, usada em rituais ricos em significados. "Quando alguém morre na aldeia, eles alegram. Na caça, eles fazem graça para animar os homens da tribo. E isso desde pequenos", contou o indigenista Ulysses Monteiro, assessor da União das Aldeias Krahô-Kapey.

Descobrir esse tesouro artístico, porém, serviu apenas como introdução para que o encurtamento da distância que separa o separa o espectador do artista. Depois da apresentação de sexta-feira, o público foi chamado a viver um dia de índio na companhia dos hotxuás e outros representantes dos Krahô. Ontem pela manhã, a oficina atípica atraiu 47 convidados. A idéia parecia inusitada: em um gramado próximo ao refeitório do espaço cultural, 13 índios reproduziriam detalhes do dia-a-dia de uma aldeia. Mas aqueles que se inscreveram na aventura não se arrependeram do que experimentaram. Na vivência, embarcaram em um universo paralelo cercado por natureza, tão perto e tão longe do concreto. Uma atração em sintonia com a proposta de um evento com a proposta de integrar diferentes culturas.

Intercâmbio
Funcionária do Sesi, Maria Ribamar Souza, 63 anos, aceitou a provocação da filha socióloga e dedicou a manha de domingo à versão em miniatura da rotina dos Krahô. "Eu nunca tinha participado de uma vivência assim antes. É curioso notar o contato que eles têm com a terra, com os alimentos. Eu não tinha a menor noção", disse. Marcada para as 10h, a oficina começou com uma hora de atraso. Para os índios, não havia motivo para correria. O objetivo era preparar uma iguaria que eles conhecem bem: um tambaqui assado na banana. Mas, com um pouco de atenção, era possível encontrar arte até na preparação do almoço. Enquanto uma parte dos homens da tribo carregavam galhos e pedaços de madeira para assar os peixes, esticados em folhas de bananeira, outros se empenhavam na cantoria. As mulheres, enquanto isso, pintavam crianças com urucum e jenipapo.

"No Brasil, a cultura indígena e africana é recriminada. Precisamos conhecer, valorizar. É bom para a gente, e também para eles", observou Débora Magalhães, 17. Depois de assistir a um vídeo sobre os Krahô na programação do FestiSesi, a estudante optou por conhecer aquela realidade de muito perto. A exemplo da maioria dos visitantes, enfrentou fila para pintar a pele de vermelho. Também descobriu que, habitantes de uma área de 320 mil hectares (equivalente à Grande São Paulo, com Osasco, Diadema e São Bernardo), os Krahô são 2,5 mil, espalhados em 18 aldeias. "É meu primeiro contato com eles. É muito importante resgatar uma cultura popular que estamos perdendo", elogiou Débora. Ela entendeu o recado dos índios: estimular o resgate cultural. "Queremos mostrar que existe toda uma tradição que não morreu", explicou Ulysses Monteiro. Os palhaços sagrados são prova de que a arte sobrevive.

CB, 29/01/2007, Caderno C, p. 3

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