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Multinacional dos EUA 'ocupa' terras do Incra

FSP, Brasil, p.A19
14 de Nov de 2004

Multinacional dos EUA "ocupa" terras do Incra
Josias de Souza
Colunista da Folha
O espantoso marcou encontro com o inacreditável nos fundões do Brasil. Reuniram-se na Superintendência do Incra no Estado do Amapá. Ali, urdiram uma armadilha contra o interesse público. A empreitada teve enorme sucesso.
No Amapá, o Incra não promove desapropriações. Não há necessidade. A autarquia é dona de quase metade do território do Estado (41%).
As terras públicas servem a dois propósitos: implantação de assentamentos e distribuição de lotes individuais. Os beneficiários são, em tese, brasileiros pobres. Recebem nacos de chão a preços subsidiados.
Repousam nos escaninhos do Incra 23 denúncias cabeludas. Contêm indícios de que parte da terra barata migra para mãos abastadas.
Incomodado com o menosprezo do Incra, um denunciante foi ao Tribunal de Contas da União. Listou em segredo uma dúzia de casos micados de distribuição de glebas públicas.
O TCU comprovou as suspeitas. O processo transitou em sigilo. Relatou-o o ministro Ubiratan Aguiar. Foi analisado e aprovado em sessão de 3 de novembro.
Os lotes sob investigação foram repassados a 12 sobrenomes bem brasileiros (a lista inclui dois Silvas e três Santos). Levaram 6.000 hectares -500 hectares para cada um.
Súbito, as terras passaram a compor o patrimônio de um logotipo bem americano: International Paper, multinacional do mercado papeleiro, com sede nos EUA.
Aconteceu em 2000, ainda sob FHC. Foi assim:
1) como contrapeso ao preço subsidiado e ao prazo de pagamento elástico, os 12 felizardos receberam do Incra títulos de propriedades com um gravame. Num prazo de dez anos, as terras não poderiam ser vendidas;
2) "escapou" ao Incra, porém, um detalhe: os 12 beneficiários já haviam passado procurações para uma outra pessoa, Alexandre Martins Cunha;
3) súbito, a clientela pobre do Incra passou a exibir um vigor financeiro inaudito. Quitaram-se, de um só golpe, todos os parcelamentos. Débitos que variavam de R$ 23 mil a R$ 31 mil;
4) num caso, o "excluído" recebeu o lote do Incra em 27 de outubro de 2000 e liquidou a dívida com a autarquia escassos 11 dias depois;
5) munido das procurações, Alexandre Martins Cunha foi aos cartórios. Passou adiante as 12 glebas. Curiosamente, vendeu-as pelo mesmo preço anotado nos títulos do Incra, sem lucro;
6) as terras foram compradas pela empresa Amcel (Amapá Florestal Celulose S.A.). É o braço da gigante International Paper na floresta amazônica;
7) parte da transação foi anotada nos livros do Cartório da Comarca de Ferreira Nunes (AP). Em manifestação escrita, a tabeliã Maria do Socorro de Oliveira disse que só lavrou as escrituras depois que lhe foram apresentadas declarações do Incra liberando a alienação dos imóveis;
8) as "liberações" do Incra traziam a assinatura do funcionário Aroldo Marques Rodrigues. Trabalhava na divisão de títulos da autarquia no Amapá. Pela lei, só o superintendente pode autorizar a venda de lotes; o Incra diz que Marques Rodrigues respondeu a uma sindicância. Quando? A autarquia não soube dizer. Por que não foi punido até hoje? "Houve prescrição administrativa das faltas", alega o Incra. Informou-se que o servidor foi acionado judicialmente;
9) o repórter localizou o servidor Marques Rodrigues. Despacha agora no Departamento de Recursos Humanos do Incra amapaense. Disse que a emissão das certidões é usual. "Um mês atrás expediram uma igualzinha";
10) a tabeliã Maria do Socorro declarou ao repórter que a comercialização de lotes do Incra é atividade corriqueira no Amapá. Não há cartório que negue o registro. Achou prudente suspender a prática depois de ter respondido a ofício do TCU;
11) foram aos livros do Cartório de Registro de Imóveis Eloy Nunes, de Macapá, as outras escrituras em favor da subsidiária da International Paper. O tabelionato informou ao TCU, por escrito, que se louvou em decisão judicial. As operações foram consideradas legais pelo juízo corregedor dos ofícios extrajudiciais de Macapá;
12) nas palavras do relatório do TCU, a decisão "é expressamente contrária ao artigo 189 da Constituição ("os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso inegociáveis pelo prazo de dez anos')";
13) o Incra do Amapá é dirigido, desde novembro de 2003, por Maria Cristina do Rosário Almeida (PSB). Ao assumir, tomou conhecimento da venda de lotes. Tenta anular uma delas. E quanto aos outros 11 casos já identificados? Os processos desapareceram, respondeu ela ao TCU;
14) durante três dias, o repórter tentou ouvir a International Paper. A subsidiária amapaense, Amcel, nada disse. Na sede brasileira da multinacional, em Mogi Guaçu (SP), acrescentou-se pouco: "Atualmente, a empresa não possui nenhuma propriedade em situação ilegal", limitou-se a informar;
15) cópias dos autos do TCU serão remetidas ao Ministério Público. Suspeita-se que o encontro do espantoso com o inacreditável tenha produzido no Incra do Amapá estrago bem maior do que o que começa agora a vir à luz.

FSP, 14/11/2004, p. A19

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