VOLTAR

A morte de um rio

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: CORREA, M. Pio
24 de Nov de 2005

A morte de um rio

M. Pio Correa

"Às margens deste rio prestigioso, que corre através de quatro século de história e de quatrocentas léguas de terra brasileira" - com estas palavras iniciou o presidente Getúlio Vargas o seu memorável "Discurso do Rio São Francisco", que teve na época considerável repercussão, tanto mais quanto foi a primeira vez desde d. Pedro II em que um chefe de Estado equacionou e expôs à Nação problemas e as possibilidades do Nordeste brasileiro.
Conheço o Rio São Francisco desde Pirapora, o seu primeiro ponto navegável, até o oceano. Assisti à agonia do Velho Chico, assoreado, desbarrancado, poluído, mas, assim mesmo, desempenhando o seu papel de principal artéria fluvial do Nordeste e irrigando uma vasta bacia. Abandonado, mas pelo menos deixado em paz. Ressurge agora, e desta vez com o apoio de altas autoridades da República, o lunático projeto de desviar o seu curso para banhar regiões contíguas.
A transposição do Rio São Francisco, além de extravagantemente onerosa, seria perfeitamente desnecessária. Há coisa de meio século, esta sovada e estapafúrdia idéia fez uma de suas reaparições periódicas, quase tão regulares quanto as do Cometa de Halley. O professor Eugenio Gudin, ilustre engenheiro, comentou a respeito que tal obra não seria inexeqüível, mas seria desnecessária, de vez que um vasto lençol freático se estende sob grande parte do Polígono das Secas. O professor Deffontaine, eminente geólogo francês, disse-me concordar plenamente com a tese do professor Gudin, sobre a existência de água em abundância no subsolo do Nordeste do Brasil.
Tive disso a comprovação durante uma visita a um projeto-piloto de agricultura em Jatobá de Pernambuco. Em meio de uma natureza hostil, de terra ressequida e fendida, uma vegetação de árvores retorcidas e de arbustos espinhosos, vendo-se uma ou outra vaca esquelética, encontrei campos bem cultivados, pastos fartos onde o gado nédio tinha alfafa até à barriga. A causa desses milagres: água cristalina jorrando de poços artesianos.
Certas sandices fantasiosas são cíclicas e recorrentes. É o caso da transposição do Rio São Francisco. De tempos em tempos surge um sonhador apaixonado por esse projeto.
Correm atualmente no Supremo Tribunal Federal seis ações, movidas respectivamente pelo Estado da Bahia, pelo Estado de Sergipe, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Ministério Público Estadual da Bahia e pelo de Sergipe, bem como pelo Ministério Público Federal, no sentido de obstar a execução das obras, cujo início está previsto para o ano vindouro. Por seu lado, o Comitê da Bacia do São Francisco se propõe a esgotar todos os meios jurídicos e políticos para impedir o absurdo. Há, portanto, a perspectiva de que não seja perpetrada aquela insanidade.
Existe, porém, um tipo de político a quem o exercício do poder embriaga e deslumbra. Caso no futuro o governo do Brasil venha cair em mãos de um presidente com essas características, é de temer que a obra seja retomada e completada, associando-se a ela para as gerações futuras o nome do seu realizador.
Já existe, aliás, no Brasil um caso de transposição de um rio de uma bacia para outra. O Rio Cassiquiare, por um fenômeno único da natureza, oferece a particularidade de correr ao mesmo tempo em duas direções opostas, desaguando por uma ponta na Bacia Amazônica e por outra no Rio Orinoco, em território da Venezuela. O fenômeno foi descoberto no século XVIII, quando um grupo de jesuítas portugueses, subindo o Cassiquiare em busca de populações indígenas para catequizar, viu-se em águas do Orinoco, onde foi interceptado por uma patrulha espanhola e metido no xilindró mais próximo como tendo ingressado ilegalmente em terras da coroa espanhola e sob suspeita de espionagem.
Dado o particular interesse demonstrado ultimamente pelo governo brasileiro pela Venezuela, e a amizade e admiração manifestadas repetidamente pelo nosso presidente para com o benemérito presidente Hugo Chávez, pode-se recear que o Canal do Cassiquiare seja erigido em símbolo da aliança entre os dois países.
Praza a Deus que o grandioso projeto de transposição do Rio São Francisco acabe caindo mais uma vez no esquecimento. Assim seja também desta vez. Amém.

M. Pio Correa é embaixador aposentado.

O Globo, 24/11/2005, Opinião, p. 2005

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.