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Morre Hõpryre Ronore Jopikti Payaré, o grande chefe do povo Akrãtikatêjê

Cimi - http://www.cimi.org.br
03 de Abr de 2014

Como definir Hõpryre Ronore Jopikti Payaré, ou Edvaldo Valdenilson através de palavras, além de dizer que este nobre filho da Mãe Terra foi um grande homem, um grande pai, um grande filho, um grande sábio, um grande guerreiro, um grande defensor dos direitos humanos e ambientais, um grande líder político e espiritual que sempre lutou pela vida e os direitos do seu povo, os Akrãtikatêjê da Montanha, e dos demais povos indígenas da Amazônia e do Brasil?

Como nos reportar a este valoroso homem que, desde cedo, aprendeu o significado do que é resistir, lutar e enfrentar poderosas ameaças e desafios, a não ser lembrando que o Seu Payaré, como era conhecido por muitos aqui nessa região, foi um sobrevivente de um grande povo na Amazônia, praticamente dizimado pelo Estado Brasileiro em um dos momentos mais perversos e genocidas da história desse país para com os povos indígenas do Brasil, a década de 70 e a famigerada e assassina política de integração e desenvolvimento econômica do Governo Militar?

De fato não conseguimos encontrar palavras para tentar descrever a tão importante personalidade política, pois tememos que nossas palavras não deem conta de traduzir a grandeza moral, ética e espiritual de alguém tão importante e grandioso para nós. É muito doloroso tentarmos escrever um texto sobre a vida do Seu Payaré, pois isso implica descrevermos uma perversa cadeia de acontecimentos violentos históricos que nunca foram reparados, justiçados ou assegurados os direitos para este líder e todo o seu povo. Contudo a forma como esse homem lutou a vida toda, consolidando-se como uma verdadeira expressão viva de força, resistência e teimosia nas últimas décadas frente às investidas de morte do capitalismo na Amazônia.

Do contato à resistência e ao etnocídio

O grupo Akrãtikatêjê da Montanha foi contatado e instalado no Posto de Atração da Funai em 1960, com uma população de aproximadamente 75 indivíduos. Com a desastrosa política de contato do Estado e a localização do aldeamento próximo à cidade de Tucuruí, o grupo sofreu um terrível processo de depopulação. De 75 indígenas apenas 10 sobreviveram, tornando-se esses, testemunhos vivos da violenta política de expansão econômica na época. Com o avanço das obras de construção da UHE Tucuruí a Funai "removeu" os 10 membros sobreviventes do grupo para a Terra Indígena Mãe Maria, de domínio dos Parkatêjê.

No entanto uma família, chefiada pelo líder Payaré, inconformada com a notícia de que o antigo e tradicional território iria ser completamente inundado pelo lago do reservatório da UHE Tucuruí, se recusou a acompanhar o restante do grupo. Permaneceram na área indígena até do final de 1983, quando, após muitas ameaças e violências sofridas, um escuso e desrespeitoso acordo financeiro com a Eletronorte obrigou forçadamente o último Akrãtikatêjê a abandonar definitivamente o seu antigo território e a se incorporar aos outros grupos Gavião, na Terra Indígena Mãe Maria, mesmo sabendo que, em um passado não muito distante, o grupo ao qual ele pertencia e o grupo Parkatêjê haviam travado algumas guerras -fato que permaneceu registrado para sempre na memória de D. Rônore , a "Mamãe Grande" do grupo e dos seus filhos.

A luta por um território

É na Terra Indígena Mãe Maria que o grande líder Payaré, junto com a sua querida mãe, a D. Honore e seus irmãos, mesmo com todas as divergências e dificuldades, iniciam uma nova luta política e jurídica que perdura até hoje. À revisão do direito de um território para o seu grupo, embora a justiça já tenha determinado a devolução de uma área similar àquela que foi destruída pelo Estado, na ocasião da construção da UHE Tucuruí, mas que não foi efetivada até hoje pela empresa Eletronorte.

De lá pra cá, foram mais de três décadas de luta, de resistência, de enfrentamento de um homem só, com sua mãe, contra todo um sistema opressor para ter o direito de ser ouvido e de denunciar o que todo o seu povo sofreu e perdeu com as políticas governamentais do Estado brasileiro de um tempo escuro, sombrio e sem perspectiva de futuro para os povos indígenas do Brasil.

Seu Payaré, nesse período histórico de luta, precisou se articular, se organizar e ir em busca de aliados e parceiros para denunciar as violações de direitos humanos sofridas pelo seu povo, exigindo respeito, direitos e justiça. É nessa ocasião que ele também conheceu os indigenistas do ISA, do Cimi, da Comissão Pró Índio de São Paulo, da CPT, educadores populares da região, líderes sindicais, juristas como Frederico Marés e, tantas outras pessoas que puderam ajudá-lo a mover ações judiciais contra a Eletronorte e o Estado brasileiro, que até hoje não resultaram em nada.

Ao longo dessa batalha ele precisou também deixar sua família e seu povo por algum tempo e em vários momentos, para numa peregrinação sem fim, no Brasil e mundo a fora, denunciar o governo brasileiro sobre essas violações. Nesse percurso chegou a ir até a OEA e ONU com o objetivo de mostrar ao mundo a forma violenta com que o país tratava os povos indígenas. Sempre retornava convicto de que era preciso apoiar e ajudar ainda mais o seu povo Gavião, agora visto como um povo só, a se preparar e se unir ainda mais para enfrentar as ameaças perversas dos grandes projetos que assolavam os territórios indígenas na região.

A luta contra os grandes projetos

Várias iniciativas foram pensadas, organizadas e articuladas por essa liderança indígena para garantir os direitos dos Gavião e de outros povos indígenas frente as obras do Programa Grande Carajás. Seu Payaré, também conhecido como Edvaldo Valdenilson, seu nome de batismo, não foi só um defensor da causa indígena, foi também um grande defensor dos direitos humanos, da natureza, tão violados e violentados pelos interesses nefastos do grande capital na Amazônia ao longo desses anos.

Junto com a sua família permaneceu na Aldeia Mãe Maria até o ano de 2009, quando resolveu se separar do grupo e construir sua própria aldeia, na região norte da Terra Indígena, visto por ele como um espaço onde finalmente poderia realizar um grande sonho, que era de reorganizar o seu grupo, os Akrãtikatêjê da Montanha, enquanto um povo distinto, falando sua língua materna, observando seus usos e costumes tradicionais próprios. Na nova aldeia pode lutar com mais força, contra a empresa Vale, para terem o direito de serem assistidos pelos programas da empresa, como as etnias Gavião que outrora vivem no mesmo território Mãe Maria. Incansável, o Seu Payaré questionava e denunciava firme e duramente a forma como esta empresa comprometeu a soberania política dos grupos Gavião, através dessa "assistência", fragilizando as relações sociopolíticas e culturais do grupo, favorecendo uma série de divisões internas que fragmentou a unidade política das comunidades, bem como ocasionou uma série de impactos socioambientais, econômicos e culturais irreversíveis para a vida dos grupos Gavião, que compromete os seus projetos de vida e de futuro.

Atualmente na luta contra os grandes projetos, ele sempre se posicionou contrário à duplicação da Ferrovia Carajás e a nova ameaça da construção de outra hidrelétrica que atingiria novamente o seu povo, a UHE Marabá, exigindo que cada grupo Gavião pudesse ter o direito de ser consultado de forma livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da OIT, a Declaração Mundial dos Povos Indígenas da ONU e a própria Constituição Federal do Brasil, que aprendeu desde cedo a estudá-las, observá-las e a defendê-las como instrumentos políticos de garantia de direitos humanos e transformação de estruturas injustas de poder. Sempre manifestou, também, solidariedade e apoio incondicional à luta de outros povos indígenas na Amazônia e no Brasil pela conquista e respeito aos seus direitos.

Seu Payaré, indiscutivelmente foi um facilitador do Reino de Deus, do Bem Viver, da Terra Sem Males e de um outro mundo, melhor e possível para seu povo e para todos aqueles que conheceram a incomensurável nobreza de um espírito tão nobre e guerreiro. Por isso a perda de uma personalidade tão importante, que nunca chegou a vivenciar e sentir a alegria de ver o sonho se realizar, que era de usufruir o outro território que seu povo sempre teve direito e que até hoje é negado, é algo que incomoda, que revolta e que nos enche de indignação.

É por isso que no dia 30 de março de 2014, às nove horas da manhã, D. Honore, mergulhada em uma profunda dor que remonta a uma vida inteira de sofrimento, de luta, de perdas, juntamente com seus netos e família, bem como demais parentes Gavião e outros amigos - não apenas sepultou Seu Payaré naquela cova simples, no alto de uma pequena serra próxima à Aldeia Akrãti, onde reside o grupo, mas ela o devolvia para a Mãe Terra um dos seus mais nobres e valentes filhos que até o seu último momento soube viver sua vida com honra, ética e um amor profundo para com o seu povo, a natureza e a pessoa humana.

Ela sabia que assim o seu querido e primogênito filho voltaria através da terra e da natureza que sempre amou, para os seus antepassados, a fim de que este continue amparando e ajudando o seu povo a continuar forte, firme e unido na luta por justiça contra violências que não podemos esquecer, e que serve de exemplo de resistência e luta para outros povos indígenas que vivem a mesma situação hoje na Amazônia. Nesses dias, em que o grande líder indígena partiu daqui para outras terras, observamos que não tem parado de chover. Para nós, que acreditamos no Deus da Vida, este é um sinal de que a vida continua, se renova e de que a morte do Seu Payaré não foi e não será em vão.
Seus legados de justiça, de amor, de resistência, de luta, fé, solidariedade, fraternidade, comunhão pela vida e pelos direitos dos povos originários, tão ameaçados hoje em dia pela ganância do capital devem pulsar dentro de cada um dos seus descendentes e jamais ser esquecido pelos corações daqueles que o conheceram. Seu Payaré vive em todos os nossos sonhos de libertação, de justiça e de amor.

Marabá, Pará, 31 de março de 2014.

Conselho Indigenista Missionário; Comissão Pastoral da Terra; Diocese de Marabá; Pastorais Sociais Ampliadas; Observatório Socioambiental do Sudeste Paraense; Justiça nos Trilhos; Sociedade Paraense de Direitos Humanos; Movimento dos Atingidos por Barragem; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará; Instituto Federal do Pará -Campus Marabá; Universidade do Estado do Pará -Campus Marabá; Nova Cartografia Social da Amazônia; Fórum da Amazônia Oriental; Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular; Movimento Debate e Ação; Fórum Regional de Educação do Campo do Sul e Sudeste do Pará; Faculdade de Educação do Campo - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

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