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Morales e eleito presidente em 1o turno

FSP, Mundo, p.A9
19 de Dez de 2005

América Latina Fato inédito na história da Bolívia, vitória de cocaleiro, com 50,5% dos votos, leva um indígenas à Presidência
Morales é eleito presidente em 1o. turno
Fabiano Maisonnave
Projeções de apuração divulgadas ontem à noite mostram que, com 60% das urnas apuradas, o candidato socialista à Presidência da Bolívia Evo Morales recebeu surpreendentes 50,5% dos votos, o que lhe assegura uma convincente vitória logo no primeiro turno, fato inédito na história recente da Bolívia.
O segundo colocado, o direitista Jorge "Tuto" Quiroga, do partido Podemos, que aparece com 31,6% dos votos, admitiu a derrota ontem às 21h locais. "Felicito publicamente a Evo Morales e a seu vice, Álvaro Garcia Linera, pelos resultados eleitorais."
O terceiro colocado nas eleições, Samuel Doria Medira, disse que "Morales terá o mandato mais claro da história da nossa democracia".
Mesmo sem o resultado final, Morales já conseguiu a maior votação de um candidato a presidente obtida desde a volta da Bolívia à democracia, em 1982. É a primeira eleição de um indígena ao cargo máximo do país.
Segundo analistas, a tendência é que Morales aumente ainda mais a sua vantagem sobre o segundo colocado, já que a maioria dos votos apurados é das principais cidades, e o candidato socialista leva uma vantagem ainda maior na zona rural, onde vivem cerca de 40% dos bolivianos.
O primeiro líder oposicionista a admitir a derrota foi José Luis Paredes, governador virtualmente eleito do Departamento de La Paz pelo Podemos. "Morales fez uma campanha bem-sucedida ao se colocar como o líder das mudanças", disse, em entrevista.
A votação supera todas as pesquisas de intenção de voto divulgadas na semana passada, que davam a Morales em torno de 34% e até oito pontos percentuais sobre Quiroga.
Confirmada a maioria simples, Morales evita que o segundo turno seja realizado de forma indireta no Congresso, como vinha ocorrendo desde 1985. A ampla vantagem, além disso, lhe dá mais força política para enfrentar um Congresso dividido e a oposição do poderoso Departamento de Santa Cruz, onde o socialista perdeu para Quiroga e foco de um forte movimento autonomista com relação a La Paz.
Morales votou ontem de manhã em Villa Tunari, na região do Chapare (centro do país), onde se projetou politicamente como o principal líder dos plantadores de coca bolivianos. "Essa é a hora dos desprezados, dos massacrados, dos esquecidos em 180 anos de história boliviana% disse.
"Desafio os EUA a criar um aliança real contra o narcotráfico", afirmou, rodeado de pequenos agricultores que mascavam folhas de coca, costume tradicional do altiplano boliviano.
Morales voltou a prometer a nacionalização das riquezas naturais "não só o gás" e disse que não erradicará a coca, mas "a cocaína e o narcotráfico".
Admirador de Fidel Castro e Hugo Chávez, disse que "gamos compartilhar com todos os (governos) antineoliberais, imperialistas. É importante ter aliados na América Latina".
"Depurados"
Apesar da relativa tranqüilidade, foram registrados casos de eleitores inabilitados pela Corte Eleitoral (CNE). Após as eleições municipais, no ano passado, foram excluídos os nomes de eleitores que deixaram de votar e abertos dois períodos para que eles se regularizassem. Muitos eleitores disseram que seus nomes foram excluídos apesar de terem votado em 2004, mas a CNE descartou qualquer erro. Estima-se que cerca de 3,6 milhões de bolivianos tenham comparecido às urnas ontem para escolher os futuros presidente, vice-presidente, senadores, deputados e, pela primeira vez na história, governadores.

Veto à circulação de veículos dificulta votação
DO ENVIADO ESPECIAL A PALCA
A draconiana lei eleitoral boliviana, que proíbe a circulação de veículos no dia de votação e prevê punições aos que se abstêm, transforma o ato de ir às urnas numa dura tarefa para os eleitores da área rural, forçados a caminhar horas nas montanhas andinas.
A reportagem da Folha visitou o povoado aimará de Palca, a cerca de 70 km de La Paz, com um dos poucos táxis autorizados. Durante a viagem, numa estrada deserta cheia de curvas e precipícios, o carro foi parado cinco vezes pela polícia. A poucos quilômetros de Palca, localizado no fundo de um vale, um casal de agricultores andava pela estrada em direção ao centro de votação. Caminhariam um hora e meia até o povoado e quase o dobro do tempo para subir de volta. Luiz Quispe, 46, pai de seis filhos, disse que escolheria o socialista Evo Morales, mas que, se o voto não fosse obrigatório, teria ficado em casa. "Sem o papel de votação, não posso matricular meus filhos na escola nem tirar novos documentos", explicou.
Em seguida, sua mulher, Zeferina Zambi, 44, apontou sorrindo para o "táxi" dela -um burrinho que pastava ao lado- e solicitou uma carona. Pedido aceito, ela contou que que muitos idosos vão votar apenas para continuar recebendo o Bonosol -aposentadoria boliviana que paga aos pensionistas cerca de R$ 550 uma vez por ano aos maiores de 60 anos.
O voto na Bolívia não é obrigatório para quem tem mais de 65 anos, mas são comuns os casos de idosos que deixam de receber o Bonosol porque seu nome não aparece na lista de eleitores.
O centro de votação funcionou dentro da escola, diante de uma praça bem cuidada, ao lado da sede da polícia. No lado oposto, um comitê do partido de Morales, Movimento ao Socialismo estava de portas abertas, o que é ilegal.
Na porta da escola, Adela Apaza Mamani, 74, já com o dedo pintado de roxo, disse, em aimará, que veio "pela papeleta". De aparência frágil e os pés retorcidos indicando artrite, disse que saiu de casa às 7h50 da manhã e andou uma hora e meia para votar. Para voltar, mais duas horas.
O coordenador eleitoral de Palca, Evaristo Velazquez, explicou que a seção tem 1.370 eleitores, distribuídos em 22 comunidades, a mais longe a 25 km -em média, quatro horas de caminhada. Em dias normais, o transporte público na região é feito de forma esporádica por pequenas vans. Cerca de 40% da população vive na área rural. (FM)

FSP, 19/12/2005, p. A9

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