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Moderna escravidão

CB, Brasil, p. 14-15
28 de Set de 2008

Moderna escravidão

Renata Mariz
Da equipe do Correio

Faz 120 anos que o Brasil quebrou grilhões e extinguiu pelourinhos. Mas formas de trabalho humilhantes, em um nível assustador de exploração, permanecem presentes em pleno século 21 no país. Para se ter idéia do tamanho do problema, foram libertadas de condições análogas à escravidão 31.726 pessoas de 1995 até agosto de 2008, conforme recente levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). São 193 por mês, em média. Ou seis trabalhadores resgatados a cada dia - um de quatro em quatro horas. Apesar de tantas libertações, essa chaga social parece não ter fim. Só nos primeiros oito meses deste ano, houve 204 denúncias, que culminaram na libertação de 3.402 brasileiros até então confinados a situações de degradação extrema.
Condições precárias de habitação, falta de utensílios básicos de segurança e repressão por parte de capangas ligados aos donos das terras são características comuns nas propriedades flagradas explorando mão-de-obra. A pecuária é a atividade com mais registros de trabalhadores mantidos na chamada escravidão contemporânea, respondendo por 34% das libertações feitas entre 2003 e junho de 2008. A novidade verificada nos últimos anos pelos grupos de fiscalização do Ministério do Trabalho, que apuram as denúncias registradas por entidades da sociedade, órgãos governamentais e lideranças religiosas, é o crescimento de trabalho análogo ao escravo no setor sucroalcooleiro, que produz cana-de-açúcar e álcool.
Não por acaso, entre as regiões do país, o Norte e o Nordeste perderam o lugar de campeões, em número de pessoas libertadas no ano de 2008, para o Centro-Oeste.
"Os canaviais estão, sobretudo, em Mato Grosso do Sul e Goiás. Além disso, é um tipo de lavoura que exige um grande contingente de trabalhadores. Às vezes, uma única operação encontra 500 ou mais operários no canavial. Por isso verificamos esse número elevado de resgates", explica frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, encampada pela CPT. Neste ano, 45,4% das pessoas resgatadas estavam no Centro-Oeste, percentual superior aos 42% que as regiões Norte e Nordeste contabilizaram juntas.
Crescimento no Sul
Outra tendência verificada por quem conhece o assunto e corroborada pelo balanço da CPT é a ocorrência de trabalho classificado como semelhante ao escravo na Região Sul do país. "Estados como Paraná e Santa Catarina, por exemplo, que antes quase não apareciam nas estatísticas, estão começando a receber denúncias mais freqüentes", diz Marcelo Campos, coordenador nacional do grupo móvel do Ministério do Trabalho, responsável pelas fiscalizações. O Paraná, que nunca havia ultrapassado a marca de 129 trabalhadores libertados anualmente, já registrou, nos oito primeiros meses deste ano, 240. Santa Catarina também está com marca recorde, de 71 resgatados em 2008.
São Paulo, Alagoas e Minas Gerais são outros estados que, sem tradição de trabalho degradante a ponto de ser classificado como análogo ao escravo, têm apresentado números assustadores. "Todos do ramo sucroalcooleiro, assim como a região Centro-Oeste", observa Campos. Plassat ressalta, entretanto, que, apesar de os dados registrados nessas localidades serem inéditos, isso não significa que o problema é novo. "Descobrimos, em 2003, que havia trabalho escravo em Tocantins. Não era que antes não tinha, o que acontecia é que não havia se tornado de conhecimento público, a situação não chegava até nós", diz o coordenador da campanha da CPT.
O papel da sociedade no combate à exploração extrema do trabalhador é fundamental, na avaliação de Ana Yara Paulino, do Observatório Social. A entidade é uma das responsáveis pelo monitoramento das empresas que aderem ao Pacto de Enfrentamento do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar fornecedores que forem flagrados utilizando mão-de-obra escrava.
"A adesão de empresas é um dos passos. Mas vejo que a sociedade civil também está cada vez mais atenta para esse tipo de problema. Assim como aconteceu com o trabalho infantil há um tempo, que foi bastante divulgado", diz Yara.
"Gatos"
A intensificação das fiscalizações, que atingiram em 2008 nível recorde de atendimento, averiguando 73% das denúncias formalizadas, levou fazendeiros a mudarem o esquema de aliciamento e manutenção de trabalhadores submetidos a um sistema análogo ao da escravidão. "Agora eles tomam precauções, sobretudo os da pecuária. Atuam com grupos restritos, que podem ser desmanchados rapidamente", explica Plassat. Mas os instrumentos de coerção, para manterem os peões na propriedade, são os mesmos desde os tempos em que a CPT começou a lutar contra o trabalho escravo no país, na década de 70.
Em geral, o trabalhador é aliciado por "gatos", os intermediadores da contratação. Com a promessa de um emprego, ele é levado para outro município ou estado. A partir daquele momento, já começa sua dívida com o patrão.
Os gastos durante a viagem com alimentação e transporte vão para uma caderneta, que terá de ser quitada com muito suor. Comida e equipamentos para o trabalho costumam ser vendidos dentro da fazenda e também são anotados no caderninho. Garantias como salários regulares, carteira de trabalho assinada ou pagamento de horas extras não existem, assim como um lugar digno para dormir, ir ao banheiro ou beber água.

Lista suja tem 207 empresas
Pará mantém o recorde no ranking da degradação, com 56 registros. Projeto que determina confisco das terras de quem for flagrado com empregados em condições análogas à escravidão está na Câmara

Renata Mariz
Da equipe do Correio

A principal reivindicação dos grupos de combate ao trabalho escravo no país ficará para 2009. Não há chances de votação este ano da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/2001, que determina o confisco das terras em que forem flagrados trabalhadores em condições análogas à escravidão. A matéria, que já passou pelo Senado, aguarda votação em segundo turno na Câmara. Mas, como sofreu alterações, se aprovada terá de ser analisada novamente pelos senadores. "Esperamos para o início do ano que vem a retomada das discussões", lamenta o frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Os grupos comemoram, no entanto, o fortalecimento da lista suja, uma ficha divulgada pelo Ministério do Trabalho com os nomes de todas as empresas ou propriedades que tiveram trabalho escravo verificado. A inclusão no cadastro impõe uma série de sanções, como corte de créditos em alguns bancos e rompimento de contratos com firmas que aderiram ao Pacto Nacional de Enfrentamento do Trabalho Escravo no Brasil.
Atualmente, há 207 nomes na lista suja. O Pará mantém a liderança histórica, com 56 registros.
Em seguida, estão o Maranhão (40) e Tocantins (30). Juntos, os três estados respondem por 60% dos casos. O 2o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado este mês, pretende intensificar as restrições impostas pela lista suja. Um dos objetivos é proibir o acesso ao crédito em bancos privados. Atualmente, a vedação é apenas para bancos públicos.

Pressão sobre reincidência

Ana Yara Paulino, integrante do Observatório Social, uma das entidades engajadas no combate ao trabalho escravo, avalia que, junto com a lista suja, a PEC 438/2001 formará um conjunto eficaz de enfrentamento do problema. "Já temos muitos instrumentos, o que falta agora é a PEC", afirma Yara. Para o frei Xavier Plassat, da Pastoral da Terra, além da proposta de emenda à Constituição, é preciso mais empenho do Judiciário. "Se o confisco de terras e a pressão do Código Penal fossem uma ameaça real, haveria menos reincidência na lista suja", destaca o religioso. Ainda são poucos os processos na esfera criminal contra fazendeiros. Embora o artigo 149 do Código Penal tipifique o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.
Na avaliação do deputado Valdir Colatto (PMDB-SC), representante do setor agrário na Câmara, a PEC é inadequada porque não conceitua o que é o trabalho escravo. "Ficará a critério de fiscais chegarem e notificarem a propriedade. Isso não é correto. Também não concordo em mexer no patrimônio da pessoa. Então quem cometer um homicídio, que é o último nível de um crime, deveria ir para a cadeia e perder seu patrimônio. Somos contra o trabalho escravo, mas não a favor dessa PEC", afirma o parlamentar. De acordo com ele, a legislação trabalhista já é rigorosa o suficiente para coibir abusos por parte dos empregadores.
Reincidência
Da legião de 31.726 pessoas resgatadas de situações análogas à escravidão nos últimos 13 anos e meio no país, estima-se que pelo menos 20% tenham voltado à mesma condição. Isso significa que uma em cada cinco reincidem. Mas essa é uma previsão otimista. "Há quem diga que um em cada dois retorne à situação de exploração, entretanto não há pesquisas sistemáticas para afirmamos um número preciso", afirma o frei Plassat.
"Para o jovem que quer sair do trabalho pesado em uma propriedade pequena, a proposta do gato parece muito sedutora. No caso da ida para os canaviais, por exemplo, é a chance de a pessoa sair do interiorzão, ganhar dinheiro e voltar para a sua cidade com uma televisão, o que dá um status a ele", explica Ana Yara.
Marcelo Campos, coordenador nacional do grupo móvel do Ministério do Trabalho, responsável pelas fiscalizações, afirma que o incremento da equipe de monitoramento das denúncias, formada atualmente por nove grupos ligados diretamente à administração central do Ministério do Trabalho, e mais sete equipes vinculadas a superintendências regionais, fortalecerá o combate no país. (RM)

CB, 28/09/2008, Brasil, p. 14-15

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