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Mistérios de Marina

FSP, Ilustrada, p. E16
Autor: COELHO, Marcelo
06 de Out de 2010

Mistérios de Marina

Marcelo Coelho

Lembro-me DE ter reparado pela primeira vez em Marina Silva quando ela ainda era senadora, em alguma CPI ou sabatinando não sei que autoridade tucana.
Não diferia muito de outros parlamentares do PT na época, Heloísa Helena ou Eduardo Suplicy. Havia o enfoque ambientalista, claro, mas politicamente era previsível o que dizia como senadora de oposição.
Interessante notar que, quanto mais Marina Silva se tornou conhecida nacionalmente, mais enigmática ela ficou.
De uma espécie de Heloísa Helena de saias, a ex-candidata do Partido Verde se transformou numa figura que parece alguma embaixadora do Sri Lanka, alguma Prêmio Nobel de Química (existe Nobel de Química?), artista plástica neozelandesa ou assessora de Obama para assuntos havaianos.
Sintoma, sem dúvida, não só do meu estranhamento de paulista diante da realidade amazônica, mas do aspecto "globalizado" de sua presença como candidata, enrolada em xales frágeis e sedas roxas, sorrindo nos eventos de campanha como se participasse de cerimoniais numa língua que entende pouco.
Os analistas concordam em dizer que Marina cresceu nas últimas semanas de campanha graças ao voto evangélico; se foi possível a Serra disputar o segundo turno, ele deve uma vela ao altar marinista.
Aí está, a meu ver, o paradoxo de sua ascensão. De um lado, Marina representa o que há de mais "avançado" no plano global: está na vanguarda ecológica do século 21. De outro, ela é contra o aborto e o casamento gay, já flertou com o criacionismo e foi a única candidata que poderia dizer, sem esforço, que de fato acredita em Deus.
Ganhou votos não pelo progressismo, mas pelo tradicionalismo de suas opiniões.
A ideia de que suas propostas são voltadas para o século 21, enquanto as de seus adversários ainda se situam no século 20, tem muito de verdade -tanto para o bem quanto para o mal.
De fato, se há dois temas claramente postos na mesa na política do século 21, são exatamente a religião e a ecologia, e Marina Silva incorpora-as numa espécie de transe controlado. Fundamentalistas do Alabama e tecnomagnatas do Vale do Silício convivem, como num embrião transgênico, dentro daquela esbelta ânfora tolteca.
Penso em Marina e não consigo formar uma imagem completa de seu corpo. Enquanto Dilma parece pisar num planeta cuja força de gravidade é o dobro da que conhecemos e Serra caminha pelo mundo como se ainda estivesse procurando asilo político, Marina parece não ter pernas; emana da terra como uma espécie de entidade fluida, caniço em flor, Peter Pan no mundo de Lewis Carrol.
Seu corpo, na verdade, está na voz: é quando ela fala que se percebe uma história pessoal de dor física e de resistência selvagem, como se a garganta guardasse as cicatrizes de um grande trauma.
Mas a instabilidade da voz também reflete a tensão das forças políticas que Marina Silva contém dentro de si e à sua volta. A ex-petista é aconselhada por economistas da mais límpida fonte liberal e colhe votos de quem se desilude com o PT porque este ou é pouco de esquerda, ou comunista e ateu em excesso.
Desenvolvimento e defesa do ambiente podem perfeitamente se conciliar, argumenta Marina -mas isso é vago ou, na melhor das hipóteses, depende antes de soluções técnicas do que políticas.
Claro, pode-se gastar mais ou menos dinheiro em pesquisa de energia alternativa ou em fiscalização de florestas, mas proibir carros de circular ou interromper a construção de uma hidrelétrica seria mexer com outros tipos de conflitos.
Nesse sentido, aliás, pode-se compreender porque a ex-petista se torna tão permeável a pontos de vista antiestatizantes, e flutua acima dos conflitos típicos da Guerra Fria. Não há "revolução" ecológica em vista, não há um "chega de tudo isso que está aí" na postulação verde, exceto dentro dos seus grupos mais radicais.
Nada entrou tão silenciosamente na nossa vida cotidiana, por exemplo, do que os painéis de aquecimento solar. Bato os olhos, vejo um. Foi o mercado, e não a política, quem fez que o negócio desse certo. Para as demais questões, chame-se um plebiscito. Aliás, já está com data marcada: é o segundo turno.

coelhofsp@uol.com.br

FSP, 06/10/2010, Ilustrada, p. E16

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