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"Missões religiosas mais atrapalham do que ajudam índios", diz Nara Baré

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22 de Mar de 2018

Francinara Soares Martins Baré, ou simplesmente Nara Baré. Primeira mulher a ser eleita Coordenadora-geral da Coiab, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia, a maior organização indígena do Brasil.

A Coiab representa 75 organizações indígenas de nove Estados que dão voz a cerca de 430 mil índios de 160 povos. A líder indígena está na Itália para participar do Festival dos Direitos Humanos, em Milão. Na entrevista ao RFI Convida gravada na sede do Greenpeace, em Roma, Nara Baré adiantou os temas que irá falar aos ativistas europeus, entre eles, as críticas à decisão do governo brasileiro de nomear o general Franklinberg Ribeiro de Freitas para a presidência interina da Funai. Nara aproveitou também para comentar a influência nem sempre positiva das diferentes missões religiosas em tribos indígenas no país.

Confira os principais trechos da entrevista:

-Nara, o que você vai falar no Festival dos Direitos Humanos em Milão?

Sobre a criminalização, a perseguição dos povos indígenas, das lideranças indígenas e também sobre o nosso direito de viver, pelo bem querer, pela nossa vida plena e para que nossos territórios continuem com suas florestas, com sua biodiversidade, com a nossa simples forma de ser e de viver.

-Você é a primeira mulher eleita na Coiab, por que essa é uma grande conquista?

Porque há muito tempo as mulheres não tinham uma participação mais efetiva nesse campo político, nas tomadas de decisões seja dentro das nossas comunidades, seja aqui fora nessa intermediação com o Estado. Então, pela luta dos direitos, nós vimos também a possibilidade do próprio empoderamento da mulher. A voz da mulher veio mais forte, mais firme, mas não na disputa com um homem, muito pelo contrário: nós estamos aqui, viemos para somar junto com eles, para juntar forças, então isso é importante de dizer. A Coiab não é uma organização de mulheres, é uma organização indígena mista, mas 80% dos seus delegados são homens, então eu devo isso também a eles, de ter essa visibilidade, mas de ter essa confiança de levar adiante a nossa organização.

-De que forma a Coiab atua para defender os direitos, os interesses dos índios brasileiros?

A gente luta dentro das possibilidades e no diálogo junto ao Estado nas três esferas: municipais, estaduais e Federal pela garantia dos direitos, mas também pela garantia de políticas públicas voltadas a esses povos, a essas populações. E quando se fala dos povos indígenas, são os povos indígenas que estão nas aldeias, são os povos indígenas que estão na cidade e no campo, e também os nossos povos indígenas em isolamento voluntário. Nós temos o dever de promover políticas públicas voltadas aos povos indígenas. O Brasil tem a maior população mundial de povos indígenas de isolamento voluntário, que são ditos povos isolados. São 27 povos indígenas e todos eles estão na Amazônia, estão na nossa área.

-A Constituição determina que o Estado é responsável pela demarcação de terras indígenas no Brasil. Como é que está hoje a demarcação dessas terras?

A Constituição é de 1988 e o Brasil tinha um prazo de 10 anos para cumprir com essa demarcação de terras indígenas e há 10 anos a demarcação está parada, totalmente parada e paralisada. Então, um dos nossos pontos que a gente vem colocando muito forte é a "Demarcação já". Quando se fala de "Demarcação já", é de demarcar o nosso território, de demarcação da nossa presença dentro dessas esferas e ter essa oportunidade de estar colocando, ecoando a nossa voz, e dizer que é necessário que se siga a Constituição. Todos falam que nós temos uma Constituição muito boa, mas que o Estado brasileiro rasga essa Constituição por não colocá-la em prática. Não adianta ter só por escrito, que isso também é coisa de não indígena, para o branco tudo tem que ser escrito, tem que ter contrato, mas ele não honra com sua palavra e não honra também o que está escrito, isso é muito claro. Então, o processo de demarcação está totalmente paralisado e precisa retomar, precisamos demarcar nossos territórios.

-Como é a relação hoje da Coiab com a Funai, que tem um general militar da reserva na presidência?

Eu não sei quem é pior: se é um general à frente da Funai ou se é o Temer à frente do Brasil, depois desse golpe democrático que Brasil vem passando, passa e que isso não afeta somente os povos indígenas, mas todo cidadão brasileiro. Nós não sabemos o que é pior. A gente consegue ter um diálogo com o general - e isso a gente não esperava - mas ninguém consegue ter um diálogo com o governo brasileiro, com o presidente então e os seus ministros, é muito raramente. Então, o que que é pior? Ter um general ou não ter um general, mas ter um governo hoje muito pior do que na ditadura? Para você estar à frente de uma organização indigenista ou de uma organização que venha a lidar com povos indígenas, não precisa ser indígena, mas é preciso compreender e entender os povos indígenas.

-Qual é o povo indígena mais ameaçado hoje e qual é a maior ameaça para esses povos?

Todos os povos indígenas são ameaçados por uma visão seja para o avanço do agronegócio, seja para o avanço de mineração dentro de nossos territórios, seja para o avanço das grandes hidrelétricas. Então, todos os povos indígenas hoje estão ameaçados. Mas por quem a gente tem um zelo, e precisa ter nesse momento, é pelos povos indígenas isolados que estão sofrendo com madeira ilegal, com tráfico de drogas dentro dos seus territórios, com mineração, garimpo ilegal. Há muito conflito armado dentro dessa região da Amazônia onde tem todos esses agentes juntos. Então, todos os povos indígenas são ameaçados, e quem mais sofre são as crianças e as mulheres indígenas.

-Missões religiosas ajudam ou atrapalham?

Atrapalham! Ajudam de um lado, mas mais atrapalham do que ajudam. As missões religiosas vêm crescendo muito dentro dos nossos territórios, muitas lideranças são hoje pastores e nós sofremos com isso. Meu povo também sofreu (o povo Baré ocupa um território próximo ao Pico da Neblina ndr), a costa litorânea também sofreu com essa presença da Igreja. Mas o que é essa presença da Igreja? Hoje estou aqui em Roma onde está o Vaticano, mas todas as religiões, não só do catolicismo, como da Igreja Batista, de evangélicos, devem nos respeitar. E o que vem crescendo muito é de dizer, ainda como na década dos primeiros contatos, que a nossa forma de pajelança, nossa forma de oração é pecado. O pecado não é da nossa cultura. Então, a nossa forma de ser e de nos curar, isso não é pecado, isso eles têm levado muito: deixar de sermos indígenas, deixar os nossos rituais, deixar as nossas vestimentas tradicionais pelo fato de ser pecado e ter agora uma bíblia. A bíblia não é nossa, nós temos os nossos deuses, nós temos as nossas orações. Então, em muitos locais isso não é permitido, mas não são as organizações que falam, são os próprios povos que têm o direito de dizer quem entra e quem não entra. Mas muitas missões vêm atrapalhando e vêm até nos acusando, estamos sofrendo essa criminalização também por parte desses missionários, que dizem que eles precisam salvar as almas desses indígenas, agora eu não sei quem salva as almas deles.

-Qual é a sua maior bandeira diante da Coordenação-geral?

O lema da própria Coiab foi "Por uma Coiab que queremos". Enquanto se fala de Coiab se fala de toda diversidade dos povos, se fala de todos os biomas que há na Amazônia, de se enxergar a Amazônia não só como floresta, mas como Cerrado, como Caatinga, como Pantanal. Essa diversidade que é de povos, de línguas, de biomas. Então, a Coiab que queremos é de nós indígenas termos a nossa própria autonomia de dizer sim ou não, a nossa autonomia para que os nossos direitos que foram garantidos continuem sendo garantidos. A nossa autonomia de estar juntos nesse mundo de hoje, tecnológico, cheio de avanços, e de dizer que tudo precisa ser conversado: o diálogo.

http://br.rfi.fr/brasil/20180322-nara-bare-nao-e-possivel-ter-um-genera…

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