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Mercado de carbono e os povos da floresta

Valor Econômico - https://valor.globo.com/
26 de Mar de 2024

Mercado de carbono e os povos da floresta
Está na mão dos senadores a opção entre reconhecer a autonomia e a capacidade de autodeterminação dos povos e das comunidades e de suas entidades representativas ou, de outro, submeter essas comunidades e suas decisões a uma burocracia estatal

Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes
Adriano Camargo Gomes

26/03/2024

O mercado de créditos de carbono, que desperta cada vez mais interesse nacional e internacional, tem chamado a atenção mais por suas falhas e pelos valores astronômicos envolvidos do que pelos benefícios gerados ao meio ambiente. Nesse complexo cenário, ganham importância as discussões sobre a regulamentação do mercado de carbono, que têm avançado no Brasil: recentemente, foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) no 2.148/2015 (baseado no PL 412/2022, anteriormente aprovado no Senado), denominado de "PL do Carbono", que trata do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE).

Por causa das alterações feitas na Câmara, o PL foi devolvido ao Senado, onde atualmente se encontra para nova apreciação. Um dos principais acertos do PL é o fato de não se omitir sobre a relação entre o mercado de créditos de carbono e as áreas ocupadas por povos originários e comunidades tradicionais. Ao reconhecer que esses povos e comunidades são titulares dos créditos gerados nas áreas que tradicionalmente ocupam, o PL avança em comparação com a legislação vigente. Ainda assim, o PL do Carbono não consegue de fato vencer o preconceito histórico, fruto do colonialismo, de que ainda são vítimas os moradores da floresta.

Um preconceito que se expressa em uma série de legislações e normas esparsas que, sob o pressuposto de evitar que esses povos e comunidades sejam explorados, acabam por tolher a sua autonomia em favor de uma suposta proteção estatal que não se realiza na prática. Isso termina por relegar os verdadeiros protagonistas do processo - povos indígenas, quilombolas e comunidades extrativistas tradicionais - a um inadmissível papel de coadjuvante.

Atualmente, de um modo geral, as propostas voltadas a esses povos e comunidades têm oscilado entre dois extremos: de um lado, um discurso que, ignorando a desproporção de poder na negociação dessas populações com grandes empresas, pretende que ela se dê de forma "livre", sem qualquer assessoria ou apoio; e, de outro, um discurso intervencionista, legatário do colonialismo, que subtrai a capacidade de decisão desses povos e comunidades em favor de uma ineficiente burocracia estatal, representada, em geral, por técnicos formados sob a sombra das árvores das grandes cidades.

O PL 2.148/2015 opta por esse segundo caminho: ainda que reconheça a titularidade dos créditos de carbono a quem efetivamente mantém a floresta em pé, condiciona sua comercialização ao acompanhamento, manifestação e, pior, à anuência prévia dos órgãos públicos responsáveis pela gestão das unidades de conservação. Essa exigência, de acordo com o artigo 49 do PL 2.148/2015, apenas não se aplica quando o usufruto da área é da comunidade que a ocupa, algo que tecnicamente não se verifica no caso das reservas extrativistas, das reservas de desenvolvimento sustentável e das florestas nacionais.

Ainda que os povos indígenas, os quilombolas e as comunidades extrativistas tradicionais, por estarem distantes dos grandes centros de negociação de créditos de carbono, possam não contar com as informações e mesmo com a expertise técnica e jurídica para negociar créditos de carbono mediante condições justas e adequadas, o mesmo não ocorre com suas entidades representativas em âmbito nacional, habituadas aos tratos comerciais e políticos. Foi esse, precisamente, o sentido da proposta de emenda ao PL do Carbono apresentada pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) ao relator do projeto na Câmara dos Deputados, o deputado Aliel Machado (PV-PR): assegurar a participação das entidades representativas nacionais dos povos e comunidades tradicionais, no processo de comercialização dos créditos de carbono gerados nos territórios que ocupam.

A proposta apresentada comungava de uma premissa do próprio PL. Para assegurar a autonomia dos povos e comunidades, é preciso uma assessoria que assegure que a comercialização seja feita em bases justas. A questão é quem está legitimado a essa assessoria: suas entidades representativas nacionais - como o CNS, no caso das comunidades extrativistas - que podem lhes prestar apoio técnico e jurídico; ou o Poder Público, que, frequentemente, sob o pressuposto de apoiar usurpa a capacidade decisória desse povos, que são os próprios titulares dos créditos de carbono.

As vantagens da primeira solução são inegáveis: além de oferecerem assessoria técnica e jurídica capacitada, as entidades representativas nacionais são mais legitimadas e certamente mais céleres do que a administração pública - não apenas pela identidade de visão de mundo, mas sobretudo porque, eleitos pelo voto, seus representantes têm na defesa dos povos e comunidades seu principal objetivo e a própria fonte de sua legitimação.

Já passou da hora de os legisladores reconhecerem que os povos indígenas, quilombolas e comunidades extrativistas tradicionais são os guardiões da floresta: quem, com sua cultura e modo de vida, enfrentando toda sorte de sacrifícios, ameaças e violências, tem garantido a preservação ambiental que evita a emissão de toneladas de gases do efeito estufa.

Após a aprovação do PL 2.148/2015 pela Câmara, novamente está posta na mão dos senadores a opção entre, de um lado, reconhecer a autonomia e a capacidade de autodeterminação dos povos e das comunidades e de suas entidades representativas ou, de outro, submeter essas comunidades e suas decisões a uma burocracia estatal que tem se mostrado historicamente ineficiente em protegê-las.

Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes e Adriano Camargo Gomes são, respectivamente, professor da UFPR, pós-doutor em Direito do Estado pela Universidade de Burgos e consultor jurídico do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS); e mestre em direito pela Universidade de Oxford, doutor pela USP e consultor jurídico do CNS

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