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Matadores de Dorothy agora culpam fazendeiro

OESP, Nacional, p.A12
17 de Mar de 2005

16 pistoleiros permanecem sem punição no Estado, e 29 acusados de assassinar sindicalistas estão foragidos
Matadores de aluguel agem impunes no Pará
Rubens Valente
Enviado especial a Marabá
Na penitenciária de Marabá, a 438 km de Belém, o detento Ademar Ribeiro de Souza, 40, líder de um assentamento rural em Tucuruí (PA), é um retrato das contradições da Justiça nas regiões sul e sudeste do Pará, onde 16 assassinatos de sindicalistas permanecem sem punição para os mandantes e pelo menos 29 acusados de pistolagem são foragidos.
Meses após sofrer um atentado com cinco tiros, Souza foi intimado pela Justiça Federal a depor em outro processo, sob acusação de cárcere privado de funcionários do Incra. Ele disse ao oficial de Justiça que, para comparecer à audiência, só poderia sair da sua casa sob proteção policial, o que lhe valeu uma acusação de "obstrução à Justiça", sendo depois detido e levado ao presídio. Essa prisão foi revogada no final de 2004, mas Souza é mantido preso pela acusação de cárcere privado.
Os três homens que tentaram matar Souza em 2003 até agora não foram identificados, mas o ativista e dissidente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) há sete meses cumpre a decisão judicial ao lado de traficantes, homicidas e de dois acusados de matar sindicalistas.
Durante a entrevista concedida à Folha, Souza, que tem uma bala alojada nas costas, permaneceu algemado. Ele entregou uma carta na qual lê-se: "Tudo o que fiz foi só ajudar as pessoas a buscarem um meio de sobrevivência".
Na outra ponta, os assassinatos de sindicalistas, seus parentes e advogados cometidos no sul e no sudeste Pará ao longo de duas décadas têm um ponto em comum: em nenhum deles há um mandante cumprindo pena na cadeia.
Nessas regiões onde 10 mil famílias de trabalhadores rurais sem terra acampadas em barracos de lona vivem escaramuças com fazendeiros e seus funcionários, a Justiça que deteve Souza não alcança dezenas de acusados de crimes de pistolagem. A CPT (Comissão Pastoral da Terra) defende a criação de uma força-tarefa da Polícia Federal para localizar e prender os acusados.
Um levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra) sobre a impunidade deverá ser entregue na próxima quarta-feira ao secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, que estará na região para ouvir as denúncias de violência no campo. Os 29 pistoleiros foragidos são acusados pelas mortes de 36 pessoas que se envolveram direta ou indiretamente em conflitos agrários.
"Se deixar a cargo da Polícia Civil do Pará, a impunidade é de 100%", diz o advogado da CPT José Batista Gonçalves Afonso, 40.
Os delegados da Polícia Civil que respondem pelas superintendências das duas regiões, com cerca de 1 milhão de habitantes em 36 cidades, apóiam a idéia da força-tarefa e chegam a sugerir o apoio do serviço de inteligência do Exército (veja texto à pág. 13).
De todos os 16 casos de ataques à organização sindical, há hoje apenas dois acusados de praticarem a execução atrás de grades: um foi preso pelos familiares da própria vítima e o outro foi "detido" pelo próprio morto.
Mesmo ferido no coração, o sindicalista conseguiu empurrar o atirador para um buraco, do qual não conseguiu sair e foi preso.
Infiltrado
Na lista da impunidade há crimes em que o acusado teria usado ardis para matar crianças e mulheres. Orlando Dias da Silva, de 34 anos, filiou-se ao sindicato dos trabalhadores rurais de Marabá como se fosse um simples lavrador atrás de terra.
As investigações da Polícia Civil indicaram que Orlando, de Boa Esperança (ES), na verdade infiltrou-se no sindicato 39 dias antes do crime para obter informações sobre a rotina do presidente da entidade, José Pinheiro Lima, o Dedé, 62. Logo após o crime, ele desapareceu da cidade, dizendo aos que perguntaram por que estava indo embora que não tinha mais interesse em ser assentado. Sua prisão preventiva foi decretada em 02 de agosto de 2001 e até hoje permanece descumprida.
Com a rotina do sindicalista em mãos, os matadores destroçaram a família Lima. No cair da tarde do dia 9 de julho de 2001, aqueles que a polícia identificou como "Paulo Gordo" e "João do Paulo" invadiram a casa do sindicalista já de armas em punho. Encontraram sua mulher, Cleonice Campos Lima, 54, assistindo a uma novela na TV. Foi morta com um tiro na cabeça, ainda sentada.
O sindicalista estava deitado em seu quarto quando os assassinos chegaram. Recebeu um tiro também na cabeça e morreu sem esboçar nenhuma reação.
Os assassinos já deixavam a casa quando deram de cara com um dos filhos do casal, Samuel, 15. O garoto, que jogava bola numa rua próxima, ouviu os tiros e correu para sua casa para ver o que ocorria. Levou um tiro no coração.
O crime tinha todas as chances de permanecer insolúvel, como tantos outros na região, não fosse a tenacidade de um dos filhos de Lima, Edinaldo Lima, 25, que ajudou a prender um dos acusados.
Os pistoleiros, que antes da chacina chegaram a tomar café na casa de uma amiga de Lima, tinham a frieza típica nesses crimes, que custam até R$ 2.000. Esse foi o valor prometido ao matador de José Dutra da Costa, 43, o Dezinho, maranhense de 43 anos que chegou ao Pará em 84 com dois filhos e fundou o sindicato dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará.
Costa estava na casa de uma vizinha quando Wellington de Jesus Silva, então com 20 anos, procurou-o, alegando querer resolver a aposentadoria rural de sua avó. A família mandou chamar Costa no vizinho. Durante a conversa, Silva tentou sacar um revólver, mas Dezinho percebeu e reagiu.
O sindicalista, descrito no laudo da necropsia como "baixo e obeso", conseguiu agarrar-se ao pistoleiro e derrubou-o ao chão. Enquanto Costa tentava desarmá-lo, o pistoleiro disparou três vezes. Um tiro foi fatal. O sindicalista mesmo assim desabou abraçado ao seu algoz num buraco de dois metros de profundidade.
Alarmados pelos tiros, vizinhos cercaram o buraco, mas Silva ainda escapou. Foi alcançado metros à frente, derrubado e espancado.
À polícia, ao lado de sua advogada, Silva contou ter chegado a Rondon do Pará quatro dias antes do crime. Veio de ônibus de Itabunas, na Bahia, a convite de um primo seu, Ygoismar Mariano, hoje procurado por co-autoria do assassinato. Mariano chamou Silva para tomar um refrigerante, quando lhe propôs "um serviço que era para tirar a vida de um rapaz". Mostrou-lhe a vítima, caminhando na rua, e a casa.
Em seu relatório, a delegada de Polícia Civil Simoner Edoron Machado escreveu que Dezinho "exercia grande influência em lutas sociais, fato que desagradava e incomodava segmentos tradicionais da região", como fazendeiros, madeireiros e políticos".
Silva preencheu a ficha de antecedentes. Ao ser indagado sobre seu estado de espírito no momento do crime, explicou tê-lo cometido "sob forte emoção".

Vítima
Filho investiga morte dos pais e acha testemunhas
Filho de sindicalista assassinado por pistoleiros, Edinaldo Campos Lima, 25, fez justiça com as próprias mãos sem derramar sangue. Trabalhando um ano e meio por conta própria, Edinaldo, ex-funcionário da companhia elétrica do Pará que estudou até o primeiro ano do ensino médio, conseguiu localizar três testemunhas oculares da chacina, além de convencê-las a participar das sessões de reconhecimento e testemunhar contra o acusado, que hoje aguardando julgamento na penitenciária de Marabá (PA).
Edinaldo trabalhou tão bem que a Polícia Civil lhe ofereceu um cargo de investigador, não aceito. Não há mandante formalmente acusado e o segundo executor continua não identificado. "O caso dos meus pais ainda não dei por encerrado. Eu continuo procurando justiça", diz Edinaldo, hoje morador do assentamento batizado com o nome de seu pai, José Pinheiro de Lima, morto em 9 de julho de 2001 com sua mulher, Cleonice, e um filho, Samuel, 15.
A investigação de Edinaldo deslanchou quando, um ano depois da chacina, ele foi à televisão para pedir qualquer tipo de ajuda. Um dos telefonemas que ele recebeu indicava o nome de uma mulher que teria visto a fuga dos pistoleiros. Para encontrá-la, Edinaldo mapeou e visitou todos os moradores de sua rua e de ruas vizinhas. Usou como ponto de partida o cadastro da companhia elétrica. Descobriu que a mulher estava morando em uma aldeia indígena distante 25 km de Marabá, contratada pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
Ao ser encontrada, a testemunha, nervosa, primeiro não queria cooperar. Convencida por Edinaldo, confirmou depois que chegou a ser derrubada por um deles, ficando face a face. O homem esbarrou na bicicleta dela, quando fugia do local do crime. Do chão, a testemunha encarou o matador, enquanto seu parceiro teria dito para também eliminá-la. Segundo o relato, contudo, o pistoleiro seguiu em frente sem dizer nada. (RV)

O acusado
Fazendeiro é condenado, solto, e pode ser secretário
Condenado pelo Tribunal do Júri de Belém (PA) a 19 anos de prisão sob acusação de ter encomendado a morte de um personagem-símbolo do sindicalismo no sul do Pará, o fazendeiro Vantuir de Paula, 56, leva uma vida normal nas ruas de Rio Maria (PA). Ele obteve autorização judicial para aguardar em liberdade o julgamento de um recurso contra a sessão do júri que o condenou, por cinco votos a dois, no início do ano passado.
Vantuir está cotado para ser secretário de Obras do município, segundo confirmou à Folha. Foi sondado pelo prefeito, mas ainda está estudando a proposta. No início de janeiro, foi convidado de honra da Câmara Municipal de Rio Maria, para acompanhar a contagem de votos que escolheram o novo presidente da Casa.
Vantuir se diz um homem injustiçado. "Me pegaram como boi de piranha. Não tinha nada contra ele, ele nunca fez nada contra mim", disse o fazendeiro, referindo-se a João Canuto de Oliveira, morto a tiros por dois homens enquanto caminhava numa rua de Rio Maria. Na época em que ele morreu, 20 fazendas da região estavam invadidas por trabalhadores rurais sem terra - uma delas pertencia a Vantuir.
Cinco anos depois do crime, ocorrido em dezembro de 1985, a família Canuto continuou alvo de atrocidades. Então diretores do sindicato dos trabalhadores, três filhos de Canuto foram seqüestrados e baleados a sangue-frio. Um sobreviveu, Orlando, hoje com 49 anos. De vez em quando encontra Vantuir caminhando pela rua, o que o deixa desiludido sobre a Justiça.
Sua irmã, Luzia, 36, professora de história em Belém (PA), estava na sessão da Câmara Municipal em que Vantuir foi o convidado. "Dá na gente um desconforto e uma raiva", disse Luzia. Sua mãe, Geraldina, que perdeu o marido e dois filhos, diz que vai continuar pedindo Justiça: "Parece que pensam que a gente nunca pode ter a voz da gente. Nunca largamos de falar da morte de Canuto". (RV)

Terra sem Lei/Outro lado
Delegados reconhecem dificuldades para o trabalho e dizem ser necessário banco de dados nacional
Polícia pede força-tarefa e ajuda do Exército
Os delegados da Polícia Civil mais graduados no sul e no sudeste do Pará apóiam a idéia da criação de uma força-tarefa da Polícia Federal, com apoio da Polícia Civil e até do serviço de inteligência do Exército, para localizar e prender os acusados de crimes de pistolagem que têm contra si mandados de prisão decretados pela Justiça paraense.
Os superintendentes da Polícia Civil nas duas regiões, Hélcio Dantas (sudeste), 51, e Luiz Antonio Ferreira (sul), 34, respondem por 36 municípios, com população estimada em 1 milhão de habitantes. No entanto, apenas 20 dessas cidades têm uma delegacia de Polícia Civil -as outras são atendidas por destacamentos da Polícia Militar. Essas 14 cidades sem delegados também não têm juízes de Direito.
Os delegados reconhecem que não há um banco de dados atualizado sobre mandados de prisão que aguardam cumprimento. A única delegacia especializada em capturas funciona em Belém (PA). A superintendência do sul, localizada em Redenção (PA), fica a cerca de 1.000 km de Belém.
Sem um controle dos mandados, Dantas e Ferreira não sabem dizer nem mesmo o número de ordens de prisão a serem cumpridas, porque muitas já não têm valor jurídico.
"Não tenho condições de dizer se são cem, 200 ou 300 mandados [ativos]", disse Dantas.
Os mandados perdem a validade ou porque houve uma nova decisão judicial ou porque já foram cumpridos em outro lugar e a medida acabou não sendo informada à Polícia Civil da região.
"É necessário um banco de dados nacional, atualizado, com acesso às fotografias das pessoas", disse Dantas. O colega Ferreira concorda: "Quem emite o mandado não é o delegado, é o juiz. Deveria haver uma central nacional para onde o juiz poderia remeter cópia desses mandados".
Os dois delegados também concordam que a principal característica em prol de uma força-tarefa federal é a possibilidade de fazer buscas em vários Estados ao mesmo tempo -o campo de atuação da Polícia Civil é restrito ao próprio Estado.
"Tem pistoleiros que vêm do Nordeste, de Mato Grosso, do Maranhão, matam e vão embora", disse Dantas. "O crime caminha no Brasil todo", diz Ferreira.
O delegado responsável pelo policiamento no sul aponta um outro papel que o Exército poderia exercer nas duas regiões: realizar um levantamento sobre a situação fundiária de toda a região.
Segundo ele, muitos dos conflitos no campo poderiam ser evitados se o poder público conseguisse definir com antecedência e sem dúvidas a quem pertence a área, quem tem o direito de ocupá-la. Há muitas terras sem títulos ou com títulos "podres", fajutos, o que acaba tornando-as foco de disputas entre os supostos donos e trabalhadores rurais sem terra que reivindicam as propriedades.
Segundo o delegado, o governo federal deveria também fazer levantamentos rotineiros sobre a situação dos que estão na terra, checar sua documentação pessoal.
Para explicar o não-cumprimento dos mandados, os delegados também mencionam a geografia do Estado. "A área é muito vasta, há muitas fazendas, muitas áreas de mata, com estradas vicinais intransitáveis", disse Ferreira. Segundo ele, a situação tem melhorado, o déficit de policiais foi reduzido nos últimos dois anos e os veículos usados policiais estão em bom estado.
Procurado, o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), não foi localizado para falar sobre o assunto. Segundo sua assessoria, desde a última segunda-feira ele está na França, para participar de um evento cultural sobre as potencialidades econômicas do Brasil. A viagem deverá se estender até o final desta semana.
A assessoria de comunicação da Secretaria Especial de Defesa Social do Pará (equivalente à Secretaria de Segurança Pública em outros Estados) informou que o secretário, Manoel Santino, somente deverá se manifestar a respeito da reportagem na segunda-feira.
A assessoria foi procurada na quinta-feira e na sexta-feira. Na quinta, o secretário estava em viagem a trabalho, No dia seguinte, informou que só atenderia na segunda-feira, tendo sido informado sobre o teor da reportagem.
O juiz federal de Marabá, Francisco de Assis Garcês Castro Júnior, 36, que determinou a prisão do líder do assentamento em Tucuruí (PA) Ademar Ribeiro de Souza, afirmou que o detento responde a quatro processos relacionados aos protestos contra o Incra. O juiz reconheceu que Souza havia pedido proteção da Polícia Federal para depor, após ter sofrido um atentado a bala. Mas, segundo o magistrado, Souza foi preso fora do assentamento, perto da sede do Incra em Marabá. Para Castro Júnior, isso demonstraria que Souza poderia ter se ausentado do assentamento para comparecer às audiências na Justiça Federal, se quisesse.
Segundo o advogado da CPT (Comissão Pastoral da Terra), José Batista Gonçalves Afonso, 40, defensor de Souza, ele só decidiu sair do assentamento porque estava acompanhado de dezenas de trabalhadores rurais que foram participar de uma audiência no Incra, em Marabá. (RV)

FSP, 30/01/2005, p. A12-A13

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