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Marco Temporal: o julgamento no STF que põe em risco centenas de terras indígenas

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27 de Ago de 2021

Marco Temporal: o julgamento no STF que põe em risco centenas de terras indígenas
A tese do Marco Temporal limita o direito dos povos indígenas sobre as terras, caso não tenham posse sobre elas antes da promulgação da Constituição Federal, em 1988

Humberto Tozze
Do home office
27 Ago 2021

Desde segunda-feira (23), mais de 6 mil indígenas ocupam a Praça dos Três Poderes, em Brasília. O Acampamento Luta pela Vida protesta contra aquela que reconhecem como uma agenda anti-indígena do governo de Jair Bolsonaro e, desde ontem (26), aguardam uma decisão definitiva sobre a demarcação das terras indígenas.

Isso porque o Supremo Tribunal Federal (STF) daria início nessa data ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata do polêmico marco temporal, tese defendida principalmente por grupos ruralistas que diz que a demarcação deveria ocorrer se as terras estivessem sob posse dos povos indígenas até o dia 5 de outubro de 1988, quando a nova Constituição foi promulgada, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada. De início, a pauta estava na agenda da sessão de quarta (25), mas não houve tempo para começá-la. Novamente, na sexta-feira, foi retirado da pauta. A previsão é que seja votado no dia 1o de setembro. A proposta do marco temporal surgiu em outra votação no STF, naquele que ficou conhecido como caso Raposa Serra do Sol, reserva no norte de Roraima (RR), onde após demarcação da região pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, muitas ações começaram a questionar na Justiça o direito de posse das terras. Uma ação popular pedia a nulidade da Portaria publicada por Lula. O STF, entretanto, decidiu a favor dos indígenas.

O debate foi colocado em pauta pelo ministro presidente Luiz Fux, em outubro de 2020, o relator é o ministro Edson Fachin. Em 2019, o STF já havia reconhecido a repercussão geral do tema, ou seja, a decisão servirá como referência para ações semelhantes e na prática, caso vença a tese do marco temporal, as terras poderão ser alvos de reintegração de posse e pessoas indígenas despejadas. Na quarta, Luiz Fux afirmou que o processo é prioritário e que deve ser finalizado antes do anúncio de uma nova pauta para a Corte. Seria a quarta vez em dois meses que o julgamento foi posto na agenda e, em seguida, suspenso.

O Recurso Extraordinário diz respeito a um pedido de reintegração de posse pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA), contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a comunidade Xokleng, em TI Ibirama-Laklanõ, em Santa Catarina (SC). Atualmente, cabe à Funai e ao Poder Executivo a prerrogativa da demarcação de terras. Segundo estimativa do Instituto Socioambiental (ISA), há 303 terras, habitadas por mais de 19 mil indígenas, que estariam ameaçadas.

De outro lado, existe a defesa da teoria do indigenato, isto é o direito originário dos povos sobre as terras, "anterior à criação do Estado", reconhecida como uma "tradição legislativa", uma norma que vem sendo reiterada pela Justiça.

Júlia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas Direitos Humanos, explica que além do risco dos indígenas serem expulsos das terras, há a incerteza sobre os territórios em que vivem as comunidades isoladas. "Caso o STF aprove a tese do marco temporal, as usurpações e violações ocorridas no passado contra os povos originários serão legalizadas. Além disso, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, abrindo a possibilidade do extermínio desses povos." Ela lembra que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já deliberou sobre o assunto e que qualquer definição sobre as terras deve ser analisada "caso a caso por meio da verificação da existência de relações da comunidade indígena com a terra reivindicada, e não pela fixação de um marco temporal arbitrário".

Júlia conta também que o marco temporal ignora a violência histórica contra pessoas indígenas. "Os povos originários foram historicamente submetidos à violência e ao espólio e que, portanto, levar em conta um marco temporal arbitrário é negligenciar as expulsões produzidas antes da Constituição de 1988."

A Conectas participa do julgamento como amicus curiae ("amigo da corte"), figura que tem como papel fornecer conhecimento e informações sobre o tema para subsidiar o tribunal. No total, 40 entidades e pessoas envolvidas tomaram a palavra na tribuna, como "amigos da corte", entre elas lideranças e a própria comunidade Xokleng. Cada uma terá 15 minutos de fala.

"Se o marco temporal for aprovado, iremos perder nossos territórios, seremos expulsas e toda essa nossa relação que temos com a nossa terra será destruída", afirma Pietra Dolamita (Kowawa Kapukaja Apurinã), da etnia Apurinã, arte educadora e antropóloga que participa dos protestos em Brasília. Para ela, não se trata apenas do direito de ocupar o território, mas o reconhecimento da ancestralidade a partir da relação com a terra. Além disso, estão em jogo os costumes e cultura dos povos. "O marco afeta a nossa ancestralidade e nosso pertencimento e nosso modo de estar no mundo. Queremos viver em paz dentro de nossos territórios."

Ao fim da agenda, em Brasília, acontecerá a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, onde será discutida a violência de gênero nas comunidades. O conflito poderá ser ainda mais acirrado contra indígenas, explica. "Penso que muitas coisas podem ser destruídas depois disso, haverá despejos, violência e mais conflitos."

Embora o julgamento não tenha sido iniciado, o voto do relator Edson Fachin foi divulgado. Nele, o ministro rejeita a tese do marco temporal e sai em defesa dos direitos dos indígenas. "Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente, expressão maior do pluralismo político assentado pelo artigo 1o do texto constitucional. Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição", afirma.

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