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Marco temporal, marca do atraso

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Autor: SOUZA FILHO, Carlos Frederico MarÉs de
06 de Jul de 2021

Marco temporal, marca do atraso

CARLOS MARÉS

Os povos indígenas das Américas lutam há quinhentos anos por um único direito, o de existir. Muitos sucumbiram sob a violência colonial. Violência física, sem subterfúgios, desde as degolas do século XVI contadas com horríveis detalhes por Bartolomé de Las Casas até o século XX com o extermínio cínico dos Xetá no oeste do Paraná na década de 60 e as macabras caçadas de orelhas de Xokleng em Santa Catarina relatadas por Sílvio Coelho dos Santos. O século XXI não passará isento à violência como se vê hoje. Sem intervalo, sem vergonha, sem punição. Mas a negação do direito de existir se faz, também, por sofisticados arranjos teóricos e jurídicos, como formais declarações de guerra para matar ou reduzir a escravos povos inteiros. A sofisticação jurídica era não os chamar de escravos, mas aprendizes que um dia deixariam de pensar ou desejar a liberdade de existir coletivamente. Então, quando a liberdade não fosse mais um sonho, podiam ser livres.

A morte tem sido a forma constante de negar o direito, mas mudanças de vida sempre fizeram parte do arranjo e a oferta, com aparência de generosidade, de assimilação à cultura hegemônica acaba tendo o mesmo efeito da declaração de guerra. A assimilação foi política de estado e ganhou nomes suaves como integração, emancipação, desenvolvimento, ou grosseiros como evolução, civilização, superação do atraso, aculturamento, "se assemelhar a nós civilizados".

Todas essas políticas negaram o singelo direito à existência como grupo, povo, comunidade ou qualquer outra palavra que sirva a tradução para o vernáculo. O que importa, no fundo, é a soberba certeza de que os povos originários têm que deixar de sê-lo porque é muito melhor para eles mesmo viverem na rica e doce sociedade colonial. Rica e doce, dois adjetivos coloniais. Mas os povos têm outro conceito de doçura e riqueza e continuaram insistindo que querem ser povos. Não querem disputar a cotoveladas um insuficiente pedaço de rapadura ou uma pepita inútil. Tal e tão profunda a soberba que a sociedade hegemônica, colonial, capitalista não podia acreditar que os povos queriam continuar a ser povos e os via como transitórios, provisórios, em processo de evoluir de povo a cidadão, abandonada a cultura ancestral, modos, costumes, conhecimentos, gostos e jeito de ser. Alguns sucumbiram, outros resistiram.

A formulação jurídica era assim: os indígenas deveriam se tornar cidadão livre e deixar de pertencer a um povo. Para melhor convencimento, as políticas tinham que ressaltar as vantagens da mudança e isso implicava em tornar menos confortável a vida coletiva. Para isso era importante diminuir seus habitats, desprezar seus conhecimentos, negar as crenças, punir o uso da língua, desacreditar as lideranças espirituais e tradicionais. Humilhar até a vergonha. Por isso, e também para se apropriar das terras férteis, os povos eram transferidos para lugares desconhecidos, com pouca caça e pouca fruta. Isso foi feito à larga no século XX com o testemunho sombrio dos casos Pataxó hã hã hãe, Nambikwara e Krenak, entre muitos outros. Desde 1988, quando essa política mudou, ainda há os que trabalham intensamente para mantê-la.

Um povo, para existir, depende de duas condições, a primeira, subjetiva, é a vontade profunda de continuar juntos, solidários e irmanados, conscientes de sua identidade; a segunda, objetiva, é ter um lugar para exercer a irmandade livremente. A condição subjetiva é fundamental, a consciência da condição, a identificação, as características que os une, a história e a memória dos antepassados, a língua comum, o autorreconhecimento ou autoidentificação. E essa foi a permanente lutas de todos os povos, poder ser o que dizem que são.

A segunda condição é o espaço vital, o território, o lugar onde a cultura se forma e é por ela modificado. É a natureza, o ambiente. É a fonte e o destino de todo conhecimento, da alimentação e da vida. O subjetivo e o objetivo se encontram para a sociedade fluir com seus problemas e suas soluções. Quando o espaço é sonegado, invadido, esbulhado, ameaçado, a luta do povo se concentra para sua manutenção. E nos quatrocentos e cinquenta anos em que os povos foram entendidos como transitórios a principal restrição se fez ao espaço vital, negando a territorialidade. Como a modernidade colonial precisava das terras para colonizar, o esbulho se tornou regra. Destruir as condições objetivas e materiais de existência do povo passou a ser prioridade para o sistema moderno. As remoções se deram para o uso das terras para plantar ou explorar minérios.

No final do século XX, depois de quatrocentos e cinquenta anos de resistência, a modernidade cedeu e aceitou o direito dos povos. Em 1988 a Constituição brasileira reconheceu "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições". O direito a existir, e completou: "e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". O lugar de sua existência, onde existir. Para que não restassem dúvidas, dispôs que essas terras seriam aquelas habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. O direito a existir no lugar que permita a continuidade de sua existência foi consagrado. O quê e o onde. Quem pode ser contra isso? Resposta fácil: quem não se importa com a humanidade e sim com a riqueza material da terra.

Para os indígenas, porém, as riquezas da terra não é o que se extrai e esgota, a madeira, o ouro ou as pedras preciosas. Riqueza não é um conceito monetarizado. Riqueza é a vida, o sagrado, a espiritualidade incompatível com a devastação. E a Constituição reconheceu isso. Mas os contra, os amantes da riqueza simbólica e dourada, mesmo antes de definida a norma constitucional, começaram a armar caminhos para desfazer o estabelecido. Se estava resolvido o que e o onde do direito, restava as obstruções e armadilhas do como garantir e do quando exercer

Rapidamente os interessados nas terras indígenas inventaram um novo procedimento para a demarcação e usaram seu poder para instituir o decreto no 1.775, de 1996. Era a armadilha do como. Com isso a demarcação passou a ter mais importância que o conceito e foi espalhado, contra a Constituição, que terra não demarcada era terra não indígena. O como anulava o quê e o onde!

Mesmo assim, no disputado Estado brasileiro as demarcações prosseguiram, não com a rapidez desejada, contra todas as dificuldades e forçadas pela pressão permanente e insone dos povos e seus aliados. Foi então que entrou em pauta a velha ideia do quando. Em 1996, na elaboração do decreto de demarcação a ideia foi ensaiada, mas não houve insistência porque se esperava que a burocracia demarcatória inibisse o direito, isto é, se apostou que o como inviabilizasse o direito dos povos. Na segunda década do século XX, porém, a ideia do quando voltou com força e foi chamada pelo sugestivo nome de marco temporal.

A despropositada teoria é de que só tem direito a existir os povos que no 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição, estivessem na posse de sua terra, numa inversão do conceito. Essa tese foi citada na decisão sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol porque havia um esbulho recente de arrozeiros que à força, como sempre, haviam entrado na terra. Imediatamente, e sem escrúpulos, a Advocacia Geral da União determinou que a ideia fosse aplicada em todas as demarcações. A decisão da AGU nunca foi totalmente aplicada, mas também nunca foi integralmente revogada e causou danos. Membros anti indígenas do Congresso Nacional propuseram projetos de leis para impedir que a União demarcasse terras e, se o fizesse, aplicasse o marco temporal. O como e o quando são armadilhas para estrangular o quê e o onde!

Como se trata de matéria constitucional o STF foi chamado a se pronunciar sobre o marco temporal e a oportunidade surgiu no Recurso Extraordinário sobre parte da Terra Indígena Xokleng que o Estado de Santa Catarina queria desconstituir como terra indígena usando a tese. A questão foi reconhecida como tema de repercussão geral e, afinal, o Supremo decidiria sobre a sufocante armadilha. Depois de muitas idas, vindas e disputas, foi marcado o julgamento para o dia 30 de junho. Mais de 850 pessoas de 50 povos diferentes foram à Brasília acompanhar o desfecho da ação, estavam ansiosos, atentos e esperançosos. A pauta se iniciou com atraso e o tema não foi anunciado, mais um processo e nada, veio o intervalo, uma hora depois reiniciou a sessão e foi anunciado outro tema. No fim da tarde o presidente do STF anuncia, não o julgamento, mas a sua transferência para o mês de agosto, afinal, julho o Judiciário estará em férias. Os indígenas, decepcionados mas não surpresos, prometeram que esperarão em Brasília todo o frio mês de julho, não porque seja mês de férias, mas porque querem acompanhar de perto o voto de cada Ministro e não têm certeza de que haverá tempo de ir para casa e voltar para o incerto julgamento. Até quando?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.

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