VOLTAR

Mamífero "estrangeiro" ameaça aves em ilha

FSP, Cotidiano, p. C7
18 de Jul de 2004

Mamífero "estrangeiro" ameaça aves em ilha
Animais introduzidos pelo governo paulista no Parque Estadual da Ilha Anchieta (Ubatuba) atacam fauna e vegetação

Dayanne Mikevis
Das regionais, em Ubatuba

A introdução de mamíferos que não faziam parte da fauna local sem estudo de manejo ou laudo de impacto no ambiente do Parque Estadual da Ilha Anchieta, em Ubatuba (litoral norte de SP), pelo governo paulista em 1983 gerou um desequilíbrio ecológico que compromete populações animais na ilha, principalmente as de aves.
Nos 828 hectares do parque, que recebe 60 mil visitantes por ano e é um dos principais destinos turísticos do litoral norte paulista, animais como sagüis, capivaras e cutias disputam alimento e afastam a fauna nativa -as aves acabam não se fixando-, além de afetar a recuperação de trechos degradados da mata atlântica.
Para contornar o problema, o Instituto Florestal, que administra o parque, cogita até introduzir na ilha outro mamífero, possivelmente um predador felino.
Por ali já não se vêem mais ninhos de arapongas, tucanos, saracuras, pintos-do-mato e papagaios de todas as espécies, devido principalmente à predação pelos sagüis. Segundo um dos principais pesquisadores que estudam a ilha, o biólogo Mauro Galetti, os sagüis já devem ter atingido seu limite de população na ilha.
Galetti é professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e um dos responsáveis pelo projeto Bioma, que tenta fazer um censo dos animais em parques florestais com vegetação de mata atlântica no Estado de São Paulo.
Década de 80
Exatamente 95 mamíferos foram levados à ilha pela Fundação Parque Zoológico de São Paulo na década de 80, para que fosse montado um parque com animais soltos no litoral norte paulista.
Segundo o biólogo Marcos Rodrigues, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), as aves não conseguem fixar ninhos no local, pois seus ovos são consumidos pelos animais ""estrangeiros".
Pela proximidade do continente, a cerca de 500 metros da ilha, as aves podem até sobrevoar o local, mas não conseguem se estabelecer. E esse é apenas um de uma série de desequilíbrios.
Os morcegos, conforme pesquisa de Ariovaldo Neto, professor de zoologia da Unesp, apresentam, em média, 20% a menos do peso de indivíduos semelhantes em outros trechos de mata atlântica. Isso porque todos se alimentam de frutas, muito escassas dada a concorrência sobretudo com os sagüis, que também atacam ninhos de pássaros.
Outro animal que sofre com a falta de alimento é a cobra jararaca. Devido à extinção de ratos silvestres, os répteis são obrigados a se alimentar exclusivamente de moluscos e pequenas aves, o que acarreta um nanismo em tais espécies, segundo Galetti.
No local, a atividade predatória de sagüis e quatis também deixou populações de anfíbios reduzidas.
Vegetação
A vegetação também sofre com o excesso de algumas espécies. As capivaras, por exemplo, elegeram as bromélias como alimento preferido na ilha.
As cutias, em geral benéficas por serem grandes dispersoras de sementes, apesar de se alimentarem delas, não deixam muito para germinar no solo.
De acordo com Galetti, a concentração de sagüis, que pode chegar a até 1.200 indivíduos espalhados pela ilha, é seis vezes superior à maior já encontrada em áreas de mata atlântica.
Além da renovação da mata, o uso de sementes como alimento pode ser responsável pelo retardo da recuperação de partes da ilha que foram desmatadas no passado. O local se tornou reserva ambiental em 1977, mas antes havia sido desmatado.
A mata original deu lugar à criação de caprinos. De acordo com Galetti, áreas semelhantes de mata atlântica já apresentam floresta secundária hoje, ou seja, estão bem adiante no processo de recuperação da cobertura vegetal.
Biólogo sugere a remoção de espécies
Para evitar mais danos e dar início a um processo de recuperação do que já foi causado à ilha, o biólogo Mauro Galetti recomenda começar pela remoção total de algumas espécies, como capivaras e sagüis, do local.
Entretanto, dado o número de animais, uma operação desse porte não seria fácil nem de baixo custo, mas pode ser necessária, de acordo com Galetti. "Destruir é fácil, mas recuperar...", disse.
Além disso, o biólogo afirmou que é necessário retirar do Parque Estadual da Ilha Anchieta parte de algumas populações de mamíferos, como as de quatis e cutias.
Um projeto de recuperação ambiental da ilha deve ser apresentado por Galetti ao Instituto Florestal, órgão vinculado ao governo do Estado de São Paulo, que administra a área. O pesquisador, no entanto, não delimitou uma data para a entrega do trabalho.
Segundo o biólogo, o modelo de recuperação da ilha deve incluir o controle da fauna, mas também da flora, e deve ser feito por lotes. O projeto foi baseado na recuperação de florestas da serra Nevada, uma região montanhosa no sul da Espanha, onde a antiga vegetação havia dado lugar a pastagem para caprinos.
Felino
O diretor do parque estadual, Manoel Fontes, endossa a alternativa de Galetti, mas comenta que uma outra possibilidade seria a introdução de outro animal na ilha: uma jaguatirica, possivelmente. Assim o felino, ou alguns deles, desde que do mesmo sexo, poderiam ajudar no controle dos mamíferos.
O biólogo Galetti vê com ressalvas a proposta de Fontes, que certamente custaria menos aos cofres do governo estadual, mas que pode não ser efetiva. Isso porque o animal poderia caçar aves que pousam no local ou ainda o habitam e acabar agravando o desequilíbrio ecológico já existente na ilha. Mesmo o diretor comenta a alternativa com ressalvas, devido também ao risco de que ela não seja efetiva.
Zoológico introduziu animais em 1983
A idéia de levar animais para o Parque Estadual da Ilha Anchieta, em Ubatuba, era para transformar o local em um centro de visitação com animais livres passeando no local, de acordo com o diretor do local, Manoel Fontes.
Em março de 1983, a Fundação Parque Zoológico de São Paulo, a pedido do governo do Estado, desembarcou 95 mamíferos na ilha.
Na opinião do biólogo Mauro Galetti, apesar de haver mata atlântica no local, isso não significa que há espaço e um ecossistema completo para simplesmente implantar qualquer animal na região sem um estudo prévio.
Ainda assim, nem todos os animais levados ao local eram originários de mata atlântica -um exemplo é o ratão-do-banhado, um roedor típico de pastagens alagadas do Sul do Brasil.
Uma outra questão é que, além dos animais e da quantidade, não há mais informações sobre as espécies que foram enviadas à ilha. Ou seja, os três veados que foram implantados no local poderiam ser todos machos ou fêmeas, de acordo com Galetti.
Um mistério que ronda a ilha é o tamanduá, pois apenas um indivíduo foi levado à ilha, mas os pesquisadores já encontraram cinco animais no local.
De acordo com Galetti, há três explicações: ou já havia algum indivíduo no local ou foi levada uma fêmea grávida, provavelmente de gêmeos, ou algum foi trazido do continente de forma clandestina.
Legislação
Quando os animais foram levados à ilha, o país ainda não tinha uma lei sobre zoológicos.
Tal norma, a lei no 7.173, de dezembro de 1983, foi regulamentada apenas em 1989. Hoje, os zoológicos licenciados, como o de São Paulo, ainda respeitam a instrução normativa 04, implantada em 2002.
Com ela, estabeleceu-se que as instituições devem ter um caderno de entrada e saída dos animais, além de fichas veterinárias para cada indivíduo.

FSP, 18/07/2004, Cotidiano, p. C7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.