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Maior aposta do setor elétrico do país atrasa

FSP, Mercado, p. B5-B6
Autor: LEITE, Marcelo; ALMEIDA, Lalo de
01 de Fev de 2015

Maior aposta do setor elétrico do país atrasa
Usina no Pará, cuja primeira turbina entraria em ação neste mês, depende de remanejamento da população local
Folha visita obra um ano após reportagem multimídia sobre Belo Monte e constata atraso de pelo menos 9 meses

MARCELO LEITE LALO DE ALMEIDA ENVIADOS ESPECIAIS A ALTAMIRA (PA)

Terceira maior obra do PAC, com investimento previsto de R$ 28,9 bilhões em valores atuais, a hidrelétrica de Belo Monte depende de palafitas. Melhor dizendo, da demolição --até o fim de março-- de milhares desses casebres nas áreas alagáveis de Altamira (PA).
Belo Monte é também o maior empreendimento do setor elétrico no Brasil.
Deve acrescentar 11.233 megawatts (MW), mas só em 2019, à capacidade de geração instalada no país, de 133,9 mil MW, que já não está dando conta da demanda.
A Folha voltou a Altamira, um ano após a publicação da reportagem especial multimídia "A Batalha de Belo Monte" (folha.com/belomonte), para verificar seu andamento. A usina está atrasada, apesar dos 67% da obra civil realizados até meados de dezembro e de estar em marcha acelerada o reassentamento de moradores de áreas que serão alagadas.
A primeira turbina da casa de força auxiliar (total de 233 MW) deveria entrar em ação agora em fevereiro. Por causa das greves e invasões que interromperam as obras, isso foi adiado para novembro deste ano.
A concessionária Norte Energia S.A. (Nesa) ressalva que o atraso afeta uma turbina de baixa potência (38,8 MW). Menos de 0,4% da capacidade de Belo Monte. Na casa de força principal (11 mil MW) não haveria atraso, diz.
INCONGRUÊNCIA
No entanto, a empresa solicitou à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) isenção de responsabilidade pelos atrasos e prorrogação do cronograma de geração nas duas casas de força em 441 e 365 dias, respectivamente. Se não acionar as turbinas nas datas previstas, entre 2015 e 2019, teria de pagar pela energia que deixar de produzir.
O pedido foi analisado por procuradores e pela área técnica da agência, mas carece de decisão de sua diretoria.
"Não interessa à empresa que haja nenhum atraso, tanto que ela já arcou até agora, sozinha, com os custos para minimizá-los, antes de qualquer decisão da Aneel", afirma José Ramos Filho, superintendente de Relações Institucionais da Norte Energia.
"O que não se pode admitir é que os custos já incorridos, e outros potenciais referentes ao marco regulatório, recaiam sobre o investidor, que não teve responsabilidade sobre tais atrasos."
Colaborou DIMMI AMORA, de Brasília
Leia reportagem completa
folha.com/belo-monte

Empresa deveria ter equacionado problemas, apontam avaliações

DOS ENVIADOS A ALTAMIRA (PA)

Pela forma como o pedido foi feito, há duas possibilidades mais prováveis para o pedido de isenção de responsabilidade pelos atrasos e prorrogação do cronograma feito pela Norte Energia S.A..

Uma: a empresa quer uma espécie de seguro da Aneel para possíveis atrasos futuros. Duas: planeja cumprir o cronograma original e, assim, ganharia o direito de vender a energia produzida antes dos novos prazos por preço até quatro vezes superior ao que receberia no prazo antigo.

"O assunto é sensível para avançarmos em interpretações", exime-se Ramos Filho.

Por enquanto não foi acatada a tese da empresa de que problemas como atraso de licenciamento, invasões e greves lhe dão o direito de não entregar a energia no tempo previsto. Duas superintendências técnicas da Aneel já negaram o pedido.

A Procuradoria Federal que atua na agência reguladora segue o mesmo caminho. Todos entendem que os problemas eram previsíveis nesse tipo de obra.

Para que a decisão seja diferente da recomendada, a maioria dos cinco diretores da agência terá de admitir a alegação da empresa e contrariar pareceres. Não há data para a decisão ser tomada.

OPERAÇÃO DESINTRUSÃO

Funai e Ibama também podem empatar Belo Monte, embora se dê como certo que o segundo esteja empenhado em emitir a licença de operação (LO) até meados do ano.

Cabe ao Ibama monitorar e dar por atendidas as dezenas de "condicionantes" socioambientais assumidas pela empresa como precondição para a LO. Sem a licença não se enchem os lagos nem se movimentam as turbinas.

As obras de saneamento básico e das casas para reassentamento não devem ser obstáculo. A Nesa já investiu nelas R$ 385 milhões e R$ 400 milhões, respectivamente.

Do Plano Básico Ambiental acordado com a empresa, um investimento de quase R$ 4 bilhões em três décadas, o atraso maior se deu no componente indígena. Só em 2014 começaram de fato as melhorias nas aldeias das sete terras indígenas sob influência de Belo Monte.

Há mais problemas. Um deles é a desintrusão (expulsão de não índios) das terras indígenas Cachoeira Seca do Iriri (dos araras) e Apyterewa, (paracanãs), que figura entre as condicionantes da usina.

O processo está longe de ser concluído, até porque há tensão no local com a ação de quadrilhas de exploração ilegal de madeira e grilagem de terras. Nem Funai nem Ibama dão resposta direta sobre ser a desintrusão uma condição necessária para a LO.

"A desintrusão das terras indígenas Cachoeira Seca e Apyterewa é apenas parte das condicionantes constantes no Plano Básico Ambiental da UHE Belo Monte", ressalva a assessoria da Funai.

"Há uma série de atrasos e descumprimento de condicionantes pelo empreendedor, em outros aspectos, como o socioeconômico, ambiental e cultural. [...] Contudo, cabe ao Ibama a emissão da LO, já que a Funai não é órgão licenciador."

O Ibama empurra a questão de volta: "As avaliações referentes aos impactos às populações indígenas são de competência da Funai".

A agência ambiental, no entanto, parece inclinada a desvincular as duas questões: "As condições para a concessão da LO são aquelas relativas aos impactos que ocorrem com o evento do enchimento do reservatório e operação da usina, os quais devem estar equacionados antes da emissão da licença para que o enchimento não gere impactos adicionais".

Empreiteira corre para remover moradores
Apenas 1/3 das 2.600 famílias cadastradas para relocação foram reinstaladas; população se queixa de indenização
Saneamento e pontes têm que estar prontos antes de reservatório de Belo Monte começar a encher, em agosto

DOS ENVIADOS A ALTAMIRA

Às oito horas da manhã, o bar e restaurante Bom Paladar, no limite dos "baixões" (áreas inundáveis) de Altamira, já está fervilhando.

Pelo menos seis caminhões de mudança de franqueados da Granero estão estacionados na frente do bar. Cerca de 40 carregadores, capatazes e uma dezena de assistentes sociais da empresa CNEC Worley Parsons discutem a organização das 62 mudanças agendadas para o dia.
Meia hora depois, cessa o vaivém. Os operários formam um semicírculo na rua de terra, e um puxa a reza: "Vamos remover essas pessoas de lugares perigosos para o que Deus reservou a elas". Segue-se um pai-nosso. E palmas.
A coordenadora Maria Aparecida enfim consegue contato com uma moradora que aceita mudar sob os olhos e lentes da reportagem: Fabiana Teixeira da Veiga.
A empregada doméstica vivia desde 2011 com o marido, três filhos e o vira-latas Shrek num barraco que custou R$ 7.000 em madeira (ela ganha R$ 1.200 por mês).
Fabiana, 34, está na terceira casa e no terceiro marido. Vai para o número 840 da rua Q da quadra 24 da gleba Jatobá, que recebeu da Norte Energia, concessionária de Belo Monte. "Essa não dou para homem nenhum, não."
Os carregadores esvaziam o barraco rápido. "Estou achando bom, não aguento mais essa sujeira", diz.
Debaixo das palafitas sempre há lixo, muito. A cada enchente, os detritos boiam e se espalham. Fabiana diz que os ratos assistiam TV com ela.
Cerca de 1.500 famílias já foram removidas para os novos bairros construídos pela Nesa, batizados pela concessionária como "Reassentamentos Urbanos Coletivos".
Em dezembro faltava relocar pelo menos 2.600 famílias, 64% do total cadastrado. Em contraste, restavam só 33% das obras civis da usina por concluir. Quase 30 mudanças são feitas por dia.
Em teoria, o reassentamento teria de terminar no final de março, mas deve atrasar. Até julho a Norte Energia precisaria concluir o saneamento dos igarapés Altamira, Ambé e Panelas e construir pontes sobre áreas que permanecerão inundadas quando o reservatório principal começar a encher, em agosto.
Até agora, com o "inverno" amazônico engrossando as chuvas em janeiro, mesmo casas construídas sobre postes de madeira terminavam alagadas, e os moradores tinham de ser abrigados no pavilhão de exposição agrícola.
Com o barramento do rio, essa seria a condição definitiva. Daí a pressa na remoção.
SEM DIREITOS
A cozinheira Ritna Almeida Vitalino, 40, não teve a mesma sorte de Fabiana. Ela tem de deixar a rua em que mora há 34 anos, mas vai para uma casa que comprou "no Bacana" (bairro altamirense).
"É injusto", se queixa. Recebeu indenização pelas benfeitorias, R$ 22 mil, e nada pelo terreno, que não é seu.
Ritna e o marido ergueram a casa no terreno do irmão dele. Pregaram tábua por tábua, que agora despregam e levam para um caminhão alugado.
A madeira será usada para um puxadinho no Bacana. A moradia foi comprada por R$ 40 mil, com ajuda da família da mãe, que morava numa casa de alvenaria e teve indenização de R$ 118 mil.
A cozinheira ganha R$ 1.275 no Hospital Regional e tem três filhos. Afirma que se sente feliz por mudar, mas se diz revoltada com a Nesa. "Estão expulsando a gente."
Um ano atrás, os altamirenses que se consideram prejudicados contavam com o apoio da defensora pública Andreia Barreto. Em 2014, porém, ela deixou a cidade.
Hoje, só há a procuradora da República Thais Santi. Ela organizou em novembro uma audiência sobre as remoções.
"É incompreensível que, em uma obra que cause um impacto socioambiental como Belo Monte, a população esteja desassistida", disse Santi ao jornal "El País", qualificando a usina como "etnocídio" em referência aos povos indígenas afetados.
Para Luiz Antonio Zoccal Garcia, superintendente de Assuntos Fundiários e Relocações da Nesa, a procuradora "exacerbou" e emitiu opiniões pessoais. Ele informa que mais de 4.200 imóveis já foram negociados, restando pouco mais de mil pendentes pelas empresas subcontratadas Diagonal e Engemab.
Zoccal diz que em menos de 3% dos casos o acordo que a Nesa propôs foi recusado.
POLÍTICA EMPRESARIAL
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) afirma que só metade das 7.790 famílias afetadas são atendidas com as casas dos novos bairros e que o cadastramento deveria ser reaberto.
Não há política para atingidos no Brasil", diz Elisa Estronioli, do MAB. "Defendemos que deve ser o Estado, mas fica a cargos das empresas", aponta. "As indenizações são irrisórias e eles não têm condições de negociar."
Com a pressa para não atrasar a usina, a relocação não estaria cumprindo o objetivo de permitir que os atingidos recomponham suas vidas. "[Os reassentamentos] não têm escolas nem creches", aponta o professor Fabiano Vitoriano, do MAB.
Para eles, a Nesa teria reconhecido as falhas e reaberto o cadastramento.
Zoccal, da Norte Energia, nega a reaberutura e diz que a empresa está apenas efetuando "estudos de caso".
O superintendente prevê que 4.140 casas devem ser suficientes, mas não descarta ampliar a oferta.
SONHO E REALIDADE
Em dia de pagamento dos trabalhadores da obra de Belo Monte, Altamira continua virando um caos, conta Antonia Pereira Martins, a Toinha, da ONG Fundação Viver, Produzir e Preservar.
"Muita gente bebendo, brigas, acidentes", reclama.
A rede de saneamento básico está quase pronta. Antes, inexistia. Não há definição, porém, sobre quem vai pagar a ligação de cada imóvel às tubulações --a Nesa diz que é atribuição da prefeitura.
A prostituição, inclusive de adolescentes, sumiu das ruas, mas Toinha diz que ainda campeia nas boates. Em reuniões na Delegacia da Mulher, constata que estão em alta crimes como o estupro.
Reconhece, porém, melhoras --as casas, por exemplo.
"Serão 8.000 a 9.000 pessoas livres da enchente no inverno", afirma o engenheiro elétrico sergipano Duílio Diniz de Figueiredo, 66, diretor-presidente da Nesa. "Belo Monte foi além, [fez] ações que seriam do Estado."
Figueiredo diz que toda construção de hidrelétrica tem quatro fases. Na primeira, o "pessoal do contra cria um ambiente de que tudo é só promessa".
Num segundo momento, o atual, tudo é desconforto: o trânsito, os aluguéis, a violência. No terceiro, as compensações começam a se tornar evidentes.
Na quarta fase, afirma, "[a usina] passa a fazer parte da paisagem".
(MARCELO LEITE E LALO DE ALMEIDA)

FSP, 01/02/2015, Mercado, p. B5-B6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/206404-maior-aposta-do-setor-e…

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/206405-empresa-deveria-ter-equ…

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/206407-empreiteira-corre-para-…

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