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Luzes no Campo

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: GRAZIANO, Xico
23 de Dez de 2003

Luzes no campo XICO GRAZIANO
Dias atrás, dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra, pediu uma reza contra aquilo que denominou as "quatro maldições":
latifúndio, transgênicos, agronegócio e trabalho escravo. Desnudou assim, na oração, sua idéia atrasada, preconceituosa, contra o campo.
Nesta época do esplendor natalino, lembrar-se do enterro medieval sugere um bom raciocínio para se contrapor ao obscurantismo que ainda permeia na Igreja. Contra as trevas, a luz da razão. Um novo Iluminismo para rebater a santa ignorância.
O "século das luzes". Assim foi denominada a nova era, clareada pelo saber, com o avanço da ciência e a afirmação dos valores sociais. No século 18, agonizante o regime absolutista na França, a Enciclopédia de Diderot surge rompendo a escuridão bronca, perpetrada desde a Idade Média pela nobreza, com o apoio da Igreja Católica, detentora da maioria das terras na Europa.
Separar o Estado da Igreja, valorizar o espírito crítico e o progresso humano, buscar o respeito à humanidade. O Iluminismo criou uma nova atitude diante dos desafios da civilização. Uma maneira rejuvenescida de pensar o mundo. Voltaire, Descartes, Spinoza, Rousseau, os grandes filósofos devem ter-se mexido nas tumbas ao ouvir a pregação ignara de dom Tomás. Meu Deus, até que ponto se chegará nesse primitivismo agrarista?
Está certo. Presente na agricultura de certos rincões, o trabalho escravo, ou semi-escravo, é abominável sob qualquer ponto de vista. A unanimidade contra a escravidão contemporânea não pode, porém, induzir ao raciocínio vesgo do preconceito contra o rural. Há, também, trabalho degradante nas fábricas perigosas, no lixo urbano, na criança de rua. Todos condenáveis.
Na segunda maldição se vislumbra o diabo, disfarçado de latifúndio. No começo, fazia certo sentido. A reforma agrária, bandeira trazida das Ligas Camponesas do Nordeste, promoveria o desenvolvimento, acabando com a terra ociosa e enfrentando a miséria rural. Sim, rural. Pois, nessa época, o País ainda era essencialmente agrícola. A maioria das pessoas vivia no campo, as cidades dele dependiam.
Tudo mudou. Os latifúndios se transformaram em empresas rurais, a tecnologia avançou, a agricultura se profissionalizou. Cresceram as metrópoles, infladas pelo violento êxodo rural. A indústria suplantou o agro.
Hoje, passados 40 anos, a miséria trocou de lugar. Do campo mudou para a periferia urbana. Mas a idéia da reforma agrária permaneceu forte, agora proposta para enfrentar a desilusão urbana, o desemprego citadino. Saiu a técnica, entrou a política.
E o latifúndio, responsável pelos males do passado, continua pagando o pato da conta no presente. Não percebem seus oponentes que brigam contra sua sombra, mero conceito, transformado em satanás. Ilusões religiosas, ou ideológicas.
De uma década para cá, na agropecuária do Brasil dominam os agronegócios.
Bom para os ricos, sorte para os pobres. O espetacular aumento da produtividade rural garantiu o abastecimento popular e permitiu rebaixar os custos da alimentação. A comida ficou melhor e mais barata.
Não vale mais falar da roça. O mundo moderno da agropecuária envolve cadeias produtivas complexas, antes e depois da porteira das fazendas, gerando empregos e renda fora do meio rural. A falta do emprego no pasto se compensa de sobra com o trabalhos no açougues e nas churrascarias.
Para não falar das divisas: 42% das exportações nacionais se originam no campo, e o superávit do agronegócio trará US$ 24 bilhões para dentro do País. Sem esses dólares as indústrias não importariam as matérias-primas que giram nas fábricas das regiões metropolitanas. O salário urbano deve um tico à soja. Santo agronegócio.
O Brasil caminha para se tornar a maior nação agrícola do mundo. Tradicional exportador de café, fumo e açúcar, de 1980 para cá começou a mandar no mercado de suco de laranja, madeira e celulose e, mais recentemente, de soja, carne bovina e aves. Grandes concorrentes, como os EUA e a Austrália, tomam poeira da agropecuária nacional.
Se souber aproveitar a onda da biotecnologia, a agropecuária nacional conseguirá ampliar suas maravilhosas conquistas, baseadas em tecnologia genuinamente tropical. Nesse contexto, a engenharia genética cumprirá papel relevante. Os produtos transgênicos, com as devidas precauções que a própria ciência estabelece, inauguram novo ciclo de progresso no campo. Tanto quanto na medicina.
Quando passar a turbulência política e se arrumar o arcabouço jurídico adequado, os cientistas, agrônomos e agricultores brasileiros radicalizarão seu show de competência, represado no momento pela superstição que inibe as pesquisas em biotecnologia.
Maldições? Os transgênicos recebem o endosso até do Vaticano, os latifúndios se modernizaram, os agronegócios garantem o emprego e a renda no País, oferecendo comida barata às massas urbanas. Resta o trabalho escravo, símbolo do passado. Colocar tudo no mesmo saco só serve para confundir e atrapalhar. Um desserviço à Nação.
A sociedade poderia fazer um pacto: cientistas cuidam do saber; políticos, do governo; artistas, da cultura; religiosos, do espírito. Todos errariam menos. Kant defendia certo "atrevimento" na busca do saber. Ele, todavia, olhava para a frente, não para o retrovisor. É lamentável que pessoas responsáveis, religiosos ou laicos, se atrevam a bradar contra maldições que, ao contrário, significam bênçãos.
Para enxergar basta virar o holofote. Tirar o facho da velha ideologia agrária e iluminar a nova realidade no campo. Um banho de luz, e sabedoria, não fazem mal a ninguém.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98) E-mail: xicograziano@terra.com.br

OESP, 23/12/2003, p. A2

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