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Luta secular

Carta Capital, jun./jul. 2006, Especial, p. 28-35
31 de Jul de 2006

Luta secular

Por Phidia de Athayde

Novos Quilombolas
Descendentes de escravos lutam para conquistar direitos historicamente negados. Mas os obstáculos que enfrentam têm o tamanho das injustiças nacionais

A palavra "quilombola" ainda soa estranha para muitos moradores da região de Gorutuba, bem ao norte de Minas Gerais. Eles são lavradores negros, pobres e, como 99% das mais de 2.500 comunidades remanescentes de quilombos do Brasil, vivem no limiar entre o reconhecimento de suas terras ancestrais e a perpetuação dei ma miséria secular.
Seu Nicolau Quaresma Franco, de 68 anos, é um dos mais velhos da comunidade Gurutubana. Mora com duas filhas e uma neta em uma casa de tijolos artesanais, construída em 1972, que acaba de desinfetar por causa de baratas. Um pouco tímido, mas orgulhoso por ser visitado pela reportagem, ele fala do passado:
- Aqui não tinha nada, só os nego fugido, que eram comprados pra trabalhar, mas o castigo era muito e eles fugiam. Quando eu era menino, esse povo de fora não vinha. Pegava maleta (febre) e morria. Só os nego ficava.
A febre a que Nicolau se refere é a malária, doença que manteve a região isolada até a década de 60, como informa o antropólogo Aderval Costa Filho. Há três anos, convidado a visitar o local por uma ONG que notou semelhanças entre os gurutubanos, Aderval, que é branco de olhos claros, iniciou uma pesquisa de campo. Depois de muito insistir, ganhou a confiança de Nicolau, que foi seu guia em todo o trabalho. É que, em Gorutuba, branco é sinônimo de gente que engana os negros. Nos últimos 50 anos, a expropriação das terras aconteceu tanto com brancos levando os negros, analfabetos, a transferir escrituras sem saber como também através de confrontos armados e ameaças de morte.

Uma realidade que se repete, meio século depois, em outra comunidade remanescente de quilombos. Na praia de Sibaúma (RN), os quilombolas têm recebido ameaças e estão na iminência de um confronto. Estão a apenas 7 quilômetros da paradisíaca praia da Pipa, uma das mais belas do País, visada por empreendedores tanto do Brasil quanto de países como Espanha e Itália. Em março, tratores do Ibama e da prefeitura destruíram três barracos de moradores de Sibaúma, como o de Lindomar Leandro Barbosa (foto), que tem sete filhos. As máquinas deixaram em pé, no entanto, dois barracos que funcionam como barzinhos na praia e pertencem a pessoas de fora da comunidade.
A atenção, recentíssima na história do Brasil, às comunidades quilombolas reflete uma atitude exemplar e simbólica na luta contra a herança escravocrata que mantém a maioria dos descendentes de escravos na miséria. Para ficar em apenas um exemplo, uma pesquisa da ONU mostrou que, em 2000, a renda média per capita dos brasileiros negros ou pardos era de 163 reais, enquanto a dos brancos era mais que o dobro, 406 reais. Neste país, a cor ainda representa uma classe social.

Em Gorutuba, região de 47 mil hectares que engloba sete municípios mineiros, a vida da comunidade negra e miserável começou a mudar depois que Aderval concluiu seu laudo antropológico, usado para dar entrada no processo de titulação e demarcação das terras quilombolas. Sua pesquisa comprovou que aqueles cerca de 5 mil negros que vivem em 27 povoados espremidos entre 15 grandes fazendas são todos parentes, remanescentes de um mesmo quilombo.
Somente a partir de 2003 a palavra 'quilombola' passou a ser ensinada, dita e repetida entre os gurutubanos. Alguns dos mais velhos, isolados entre a tradição perdida e a novidade abraçada pelos jovens, ainda ignoram seu significado. Mas para Dernivaldo Fernandes Lima, de 26 anos, a nova palavra parece ser a chave para o futuro. Ele é o presidente da Associação Quilombola de Gorutuba; que organiza os 27 povoados e leva reivindicações aos governos. De fala pausada e clara, diz:
- Onde está o negro está a pobreza no Brasil. Sempre fomos nativos e temos consciência de que nossas terras foram roubadas. Depois de reconhecidos como quilombolas começou a ter uma ligação maior entre as pessoas. E quando o povo começa a se unir fica difícil parar. O mais importante é que já tinham perdido a esperança de pegar o que foi tomado de nós.
A pobreza nem sempre esteve por lá. Na infância de Dernivaldo, o rio Gorutuba ainda não tinha secado totalmente. Hoje, só corre de dezembro a março, nas chuvas. Ele relata tempos de fartura nos roçados e do rio com muito peixe, capivara e jacaré. Com a seca, provocada em grande medida por barragens que abastecem plantações de banana a 50 quilômetros dali, a falta d'água tornou-se um problema grave, obrigando os gurutubanos a cavar o leito árido do rio para encontrá-la.
Há alguns anos, a Fundação Banco do Brasil (BB), por sugestão de uma funcionária do banco, em Janaúba, a 60 quilômetros de Gorutuba, aproximou-se da comunidade. A idéia era levar um projeto de alfabetização aos quilombolas. Dernivaldo se opôs:
- Expliquei que primeiro precisávamos de água, que a sede não espera. Depois viria a educação. Hoje, estamos lutando por meios de produção e pela terra, que é fundamental para o nosso futuro.

Dessa forma a comunidade convenceu o BB a investir, no início do ano passado, 377 mil reais na perfuração de poços artesianos, na compra de bombas d'água e encanamento, que já leva água a 85% dos lares gurutubanos. A seguir, veio o BB Educar Quilombola (ao custo de 360 mil reais), projeto de alfabetização baseado nos princípios de Paulo Freire que treina pessoas da própria comunidade para serem professores. Seu Nicolau é um dos alunos. Tem aulas com sua neta, Sandra Quaresma Franco, de 18 anos. Ela está no segundo ano do Ensino Médio e, depois de receber o treinamento, dá aulas para 18 gurutubanos. Seu avô conta que, com ela, aprendeu a redigir o próprio nome:
- O mais difícil de escrever é conhecer as letras e juntar. Tem vezes que falta letra.
Dia 18 de abril, formaram-se os 403 primeiros adultos alfabetizados pelo projeto. Uniformizados, viajaram de ônibus até Janaúba para receber diplomas e um almoço de confraternização. Ali se cruzavam relatos que transcendem o ler e escrever, como o de dona Ilda Maria da Silva:
- Eu sabia meu nome de família e aprendi mais umas coisinhas aí. Depois que entrei lá nos quilombolas (referindo-se ao projeto de alfabetização) aprendi até a conversar. Hoje eu escuto a senhora falar, para depois eu falar.
Antônia Antunes da Silva dá aulas para seu esposo, Rufino Antunes da Silva, em um dos núcleos do projeto. O marido se vangloria:
- Só de saber qual o banheiro feminino e o masculino, quando vou pra cidade, já é uma coisa boa. Antes eu esperava alguém entrar para depois ir.
Antônia e Rufino vivem no povoado Nova Palmares, uma fazenda improdutiva que foi ocupada por 29 famílias gurutubanas em janeiro deste ano. Lá, vivem em barracos feitos de lona preta, galhos e troncos de madeira. Cada barraco tem uma lâmpada à porta e alguns têm rádio. O programa federal Luz para Todos instalou diversos cabos de energia elétrica na região nos últimos dois anos. A sede da antiga fazenda foi convertida em escola estadual de primeiro grau, a única da região, e considerada uma conquista da Associação Quilombola.

Nos 2.700 hectares da antiga fazenda, há 110 de roça plantada, divididos em lotes de 6 hectares por família. Antônia e Rufino têm uma pequena horta ao lado do barraco e em seu lote plantaram milho, feijão-gurutuba (típico da região), sorgo, amendoim, arroz, melancia e abóbora, entre outras roças.
- Era pra dar 300 sacos de milho, vai dar 20 por causa da seca. O feijão ainda vai ser salvo. A vida é de muita diculidade (dificuldade), aqui é um lugar muito sofrido. - relata Rufino.
- O nosso sonho é ter de volta a terra que um dia foi nossa. Sem a terra nós num véve (vive). - complementa Antônia.
Antônia e Rufino são uma espécie de prefeitos do Nova Palmares. Grandes problemas ou pequenos atritos chegam até eles, desde a bebedeira de um até o fim do arroz de outro e a briga das crianças na hora do recreio. Antônia relata, com pesar, a história de Sofia Ferreira Neves, de 42 anos, viúva e mãe de seis filhos. Sofia perdeu o marido há quatro anos. Não trabalha, tem dois filhos doentes, um morando com a avó. Mora em um barraco de dois cômodos e sobrevive das cestas básicas que recebe do programa federal Fome Zero:
- Meu marido bebeu um mês inteiro, até morrer. Eu vim pra cá na esperança de ganhar um lugarzinho pra morar.
A vontade de Sofia, de Antônia, de Rufino e das outras famílias acampadas, no entanto, está ameaçada. Há uma ordem de despejo a ser executada dia P de julho. A fazenda tem dívidas maiores do que o valor da terra. Ainda assim, o dono entrou com o pedido de reintegração de posse. O futuro do Nova Palmares é incerto, pois. dependerá tanto das decisões da justiça mineira como da agilização do processo, já iniciado, de titulação e demarcação das terras feito pelo governo federal.
Há problemas de um lado e avanços do outro. Na sede da Associação, um galpão que fica no povoado de Taperinha (no município de Pai Pedro), acontecem oficinas de capoeira e cursos de bordado semanalmente. Ao lado, Dernivaldo mostra, orgulhoso, as obras do que será o futuro Centro Cultural. O projeto inclui um museu para contar a história do quilombo e expor objetos "que estão se perdendo"; como roda de fiar, cangalha, vasilha de barro, tear, pilão etc. Além dele, estão previstas salas de escritório e de oficinas onde os gurutubanos poderão ter aulas de métodos de produção, como criação de galinha, produção de farinha e lavoura comunitária, entre outros.

Dernivaldo lamenta, no entanto, que o Centro Cultural não comportará um tablado para apresentações do Batuque, a dança tradicional típica dos gurutubanos. Mesmo com o novo centro, continuarão a dançar no chão de terra batida.
Assim como em Gorutuba, a história das comunidades quilombolas no Brasil começou a mudar há muito pouco tempo. A Constituição de 1988 previu a possibilidade de desapropriações de terras particulares onde houvesse remanescentes de quilombos. Em novembro de 2003, o Decreto Presidencial no 4.887 atribuiu ao Ministério do Desenvolvimento Agrário a incumbência da regularização de terras quilombolas. A partir daí, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ficou responsável pelo reconhecimento, demarcação e titulação das terras, além do complicado processo de "desintrusão'; ou seja, a desapropriação e retirada das pessoas da área.
No mesmo ano, a Fundação Cultural Palmares, que existe desde 1988, passou a emitir Certificados de Autodefinição para as comunidades quilombolas. O documento funciona como uma espécie de certidão de nascimento para a comunidade receber políticas públicas específicas para remanescentes de quilombos. Também é o primeiro passo para o pedido de regularização da terra junto ao Incra. Atualmente, existem 770 comunidades com esse certificado no Brasil.
Também em 2003, um convênio entre a Fundação e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no valor de 5 milhões de reais, distribuiu equipamentos para agricultura, pesca, artesanato e outras atividades econômicas a 156 comunidades cadastradas.

Para 2006, há orçamento de 700 mil reais para treinamento de líderes dessas comunidades, através de oficinas regionais. Maria Bernadete Lopes, diretora de proteção de patrimônio afro-brasileiro da Fundação, reconhece limitações orçamentárias, mas, apesar delas, vê avanços na situação dos quilombolas brasileiros:
- Há um problema inegável de orçamento. Temos consciência de que devíamos ter feito muito mais. Temos dado apoio jurídico e político quando as comunidades são ameaçadas de despejo. Vou a muitas discutir com o estado, com o município, com o Ibama, com fazendeiros. Apesar dos problemas, a integração entre as comunidades nos últimos anos foi um passo fundamental. A comunidade se autodefinir e dizer "eu sou, eu existo, eu exijo" é um grande avanço. Ter a consciência de que tem a proteção do governo, de que o governo tem o compromisso de defendê-la, é um grande avanço.
As ações governamentais para os quilombolas envolvem 23 ministérios e são coordenadas pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ligada à Casa Civil. O programa federal Brasil Quilombola existe desde 2004 e, para os próximos dois anos, tem previstos mais de 109 milhões de reais de orçamento.
Um exemplo é o programa Bolsa Família, que está cadastrando cerca de 20 mil famílias quilombolas, em 230 comunidades, de sete estados brasileiros: Maranhão, Bahia, Pará, Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Carlos Eduardo Trindade, subsecretário de comunidades tradicionais da Seppir, também admite as limitações do programa, cujos benefícios não alcançam todas as comunidades do País:
- Não há nenhuma ilusão de que falta muito mais a fazer. Falta terra, e terra, no Brasil, não é uma questão que se resolva de um dia para o outro.
No Incra há, atualmente, 337 processos de regularização de terras em área remanescente de quilombos em andamento. Pouco perto das mais de 2.500 conhecidas no País. Rui Leandro da Silva Santos, coordenador-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, explica suas dificuldades:
- A maior parte das comunidades do País já foi reconhecida e está esperando o Incra trabalhar. A demanda é muito grande e não temos estrutura para comportá-la. Além disso, o trabalho com os quilombolas começou apenas em 2003 e dentro do próprio Incra há muita resistência em assimilar essa cultura, que é muito diferente.
Santos também relata dificuldades orçamentárias. Diz haver 30 milhões de reais para as desapropriações e retirada de pessoas das áreas quilombolas (desintrusão) para este ano, valor que considera ínfimo. Ele explica que, mesmo depois de desapropriadas, é normal haver uma discussão na justiça acerca dos valores, que leva anos. A meta do Incra, até o fim de 2006, é concretizar 20 titulações de comunidades. Um número difícil de ser atingido, na avaliação de Santos.

No Brasil, hoje, apenas 116 comunidades quilombolas têm a posse definitiva de suas terras. Aderval Costa Filho, o antropólogo que estudou os gurutubanos, faz uma pergunta que continua no ar:
- Como é que eles poderão desenvolver projetos mais estruturantes e políticas sociais se não têm terra?
Essa e outras perguntas continuam sem resposta também em Sibaúma, no Rio Grande do Norte. Como a maioria dos remanescentes de quilombos brasileiros, a comunidade de Sibaúma permaneceu por décadas isolada. Há 30 anos, o povoado tinha apenas uma rua e era formado por dez casinhas. Hoje existem hotéis, resorts, praça, escola, posto de saúde e lá vivem 72 famílias, das quais 47 são de descendentes dos negros do quilombo. Há 1.200 negros em Sibaúma e a comunidade está dividida. De um lado, as promessas de desenvolvimento e progresso feitas pelos brasileiros e estrangeiros que querem comprar as terras e, do outro, o desafio de manterem a cultura negra e as tradições quilombolas.
Mestre Tiego, negro, radicado em Sibaúma há 15 anos, é um dos principais líderes da comunidade. Através das aulas de capoeira e da dança zambê que ministra, ajudou os nativos a retomarem suas tradições. Há seis anos, fundou a Associação dos Remanescentes de Quilombola da Praia de Sibaúma.

A comunidade tem o certificado da Fundação Palmares desde 2004 e aguarda a conclusão do laudo antropológico para, a seguir, pedir a demarcação de seus 12 quilômetros quadrados de terra ao Incra Para o Incra, o caso de Sibaúma é complicado porque a comunidade quer ser reconhecida como quilombola, mas resiste à demarcação das terras. Há dois meses, Tiego foi ameaçado de morte por simpatizantes do empresário que se diz dono da área:
- Eles dizem que vão me matar, então, me ausentei. Mas não deixei de lutar. Estive com o procurador-chefe do estado, e mais uma vez pedi um posto policial aqui em Sibaúma, mas ele não pôde me garantir que vai conseguir.
Tiego conta com a ajuda do também capoeirista Mestre Marcos, que avalia a situação:
- O governo nos dá o direito, mas não dá segurança para a comunidade defender esse direito.
Desde o ano passado, Sibaúma ficou menos isolada do mundo. Uma nova estrada liga, agora rapidamente, os 7 quilômetros que a separam da Praia da Pipa. O asfalto trouxe benefícios, diz Tiego, por aproximar mais os quilombolas do mundo. A aproximação também trouxe problemas, comuns à maior parte dos descendentes diretos dos escravos fugidos no Brasil:
- Não estamos acostumados com esse movimento todo. Temos problemas de drogas, prostituição e, principalmente, a exploração imobiliária na praia. Estão enganando os nativos, que são primitivos. O asfalto está nos atropelando.

Sala de Aula
Heróis da resistência
HISTORIA
Os quilombos atualizam a luta contra a escravidão ao tocar em outra questão social importante, a posse da terra

Por Joel Rufino dos Santos, escritor e historiador, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 manda a União "reconhecer a propriedade definitiva dos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo ao Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Esse avanço da nossa democracia social não aconteceu por acaso nem por descuido dos constituintes. Há mais de um século a "questão do negro" está relacionada com a da terra.
Vamos a alguns antecedentes.
1. Em 1850, o Império promulgou a Lei de Terras, que definia as duas formas de acesso ã propriedade rural: por doação ou por compra. Negros livres ou escravos podiam se beneficiar da primeira, mas era praticamente impossível se beneficiar da segunda. Desse jeito, as comunidades quilombolas atuais (Carta Capital no 396, republicada nas páginas anteriores) se originaram (1) de terra doada por fazendeiro generoso, geralmente em testamento, e por autoridade, inclusive o Imperador; ou (2) de povoados de negros fugidos que se estabeleceram em locais ermos.
Contudo, mesmo essas formas de acesso foram problemáticas para o negro. Os papéis de doação muitas vezes não eram emitidos, se perdiam, eram destruídos criminosamente, acabavam contestados por terceiros etc. Ou as terras da comunidade eram, posteriormente, griladas.
2. Na Abolição, uma corrente abolicionista (André Rebouças, Antônio Bento, Luís Gama, Raul Pompéia e outros) lutou pela conjugação da liberação dos negros com a partilha dos latifúndios. A Lei de Terras continuou, porém, em vigor e, durante a República, os movimentos democráticos continuaram lutando pela democracia rural, consubstanciada na Reforma Agrária, mas "esqueceram" as "terras de preto" :
3. Com o surgimento dos movimentos negros (de 1970 para cá), as comunidades remanescentes de quilombos entram na ordem do dia. A reivindicação de titulação para essas comunidades, seja qual for a sua origem (doação ou ocupação) foi aceita, com alguma resistência, pelos constituintes de 1988, tanto que se abrigou não exatamente no corpo da Constituição cidadã, mas nas suas "disposições transitórias". Os movimentos negros (conjunto de instituições e pessoas que lutam organizadamente contra o racismo), através da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, encaminharam, em meados dos anos 80, os primeiros processos de titulação.
Movimento negro dividido
Os movimentos negros, é importante registrar, não são unânimes quanto á importância estratégica dos "quilombos contemporâneos" na luta para superar o racismo. Muitos preferem concentrar suas energias em reivindicações da classe média negra urbana (pan-africanismo, sistema de cotas, não discriminação em hotéis, restaurantes, profissões sofisticadas, publicidade etc.). Para outros, porém, o "quilombismo" está no centro de uma questão vital para o País: a da terra. Ao situá-la como questão principal do negro brasileiro - ao lado da educação e do mercado de trabalho - colocam o problema racial na agenda política nacional. Alguns estendem mesmo o conceito de quilombo (posse útil da terra) a formas de ocupação urbana, com o que o quilombismo passaria a incluir as comunidades faveladas das nossas principais cidades. Nessa visão ampliada, quilombo seria toda aglomeração de descendentes de escravos, destituída de patrimônio territorial. Parece também importante para essas lideranças, em boa parte jovens estudantes saídos das comunidades remanescentes, distingui-Ias de comunidades camponesas ou de sem-terra. É que, no caso das "terras de preto" (como se diz no Norte e Nordeste), estariam em jogo a territorialidade, a unidade étnica e o contexto cultural - tanto quanto a posse da terra. Isso aproximou o movimento quilombola do movimento de nações indígenas, que reivindica território e não posse da terra.
Quilombos ontem
A história da escravidão é a história da luta contra a escravidão. No Brasil, essa luta sistemática, sem quartel, teve várias formas: levante, insurreição, rebelião, guerra de guerrilha, adesão a rebeliões anticoloniais, justiçamento de feitores, incêndio de fazendas, sabotagem, infanticídio, suicídio e até mesmo greve. A formação de quilombo (do quimbundo kilombo: acampamento, arraial, povoado) foi, apenas, a mais espetacular, a que a história oficial identifica como "ajuntamento de escravos fugidos". Espetacular e universal na América, do Sul dos Estados Unidos ao Uruguai, passando pelo Caribe, a selva amazônica, o altiplano brasileiro, a Mata Atlântica, a Serra Gaúcha, o pampa.
Os de mais longa duração, quase cem anos, foram os de Palmares (cerca de 1600-1695), localizados no interior da atual Alagoas. A Serra da Barriga, capital dos Palmares (eram centenas de quilombos confederados) tornou-se local de peregrinação anual de negros daqui e do exterior, políticos em campanha, autoridades, intelectuais etc. É um caso típico de fato histórico "descoberto" por movimento social: há 30 anos, Palmares não ocupava mais que duas linhas nos manuais didáticos. O dia da morte de Zumbi (20 de novembro), elevado ao Panteão Nacional, em Brasília, ao lado de Caxias e outros heróis, tornou-se o Dia Nacional da Consciência Negra.
A duração e a demografia dos Palmares (30 mil habitantes, no apogeu, alta para a época) fizeram surgir uma sociedade distinta, antagônica, em vários aspectos, da colonial-escravista: posse útil da terra, lavoura de subsistência, nobreza guerreira, escravidão doméstica, não mercantil, poder colegiado, poliandria. Essas foram as tendências sociais dos quilombos em toda parte, sempre, naturalmente, que a repressão lhes permitia durar e crescer, como no Quilombo Grande (ou do Ambrósio), no interior de Minas, ou no Quilombo da Carlota, no Mato Grosso, ambos do século XVIII. Bem diferente, portanto, da visão estereotipada de que o negro escravo, no máximo, conseguia fugir.
Os quilombos foram importantes também na liquidação do sistema escravista. De Norte a Sul do País, a partir de 1870, quilombos antigos ou recém-formados nas proximidades de grandes cidades, às vezes com simpatia da liderança abolicionista, trouxeram medo e insegurança à classe dirigente, alterando o custo benefício da instituição - como foi o caso, entre outros, do Jabaquara, em São Paulo, e Campos e Leblon, no Rio de janeiro.
Quilombos hoje
Desde o artigo constitucional, a titulação dos "remanescentes de quilombo" avançou. Foram titulados os quilombos de Oriximiná, no Pará; o do Frechal, no Maranhão; a comunidade dos Calungas, ou Pretos do Cedro, em Goiás; o do Rio das Rãs, na Bahia; o do Cafundó, em São Paulo; o do Campinho da Independência e o da Fazenda do Largo, no Rio de janeiro; o do Espírito Santo-São Mateus, no Espírito Santo, e muitos outros. É muito pouco em face do que o mapeamento e o cadastro nacional dessas comunidades registram.
Quais os principais obstáculos ao cumprimento do artigo 68?
A titulação das "terras de preto" mexe com a estrutura fundiária do País de uma forma mais profunda do que a reforma agrária, pois inclui os vetores da territorialidade e da etnicidade - num país que louva, por princípio, a integração e harmonia dos seus diferentes regionais e raciais. Gostamos de pensar que não há uma questão do negro no Brasil, mas apenas a dos pobres e sem-terra. Por outras palavras, o direito do negro à terra, enquanto comunidade, contraria o mito de fundação do Brasil.
Outro obstáculo é o avanço da fronteira agrícola de exportação, que, há cerca de um século, aparece, na prática e na teoria, como irremediável. Os "isolados negros" (outro nome de quilombos contemporâneos) são, no imaginário nacional, o arcaico a ser removido em nome da modernização e do desenvolvimento. As próprias transformações no campo, tendendo a substituir o ocupante permanente da terra pelo assalariado, identificam como atraso econômico (embora justa socialmente) a titulação comunitária. E, enfim, a rápida inversão da relação demográfica campo-cidade, consumada nos últimos 50 anos, descarregou as baterias das reivindicações minoritárias do campo - se apresentadas, na letra do artigo 68, como "comunidades remanescentes de quilombos":

Em sala
Competência
Construir argumentações
Valorizar a diversidade dos patrimônios etno-culturais e artísticos, identificando-a em suas manifestações e representações em diferentes sociedades.

Um debate sobre a questão dos quilombos pode tornar-se bem interessante, tendo como ponto de partida duas questões que, embora de formulação simples, ao ser desenvolvidas poderão contextualizar a discussão atual.
1. Se o artigo 68 é uma conquista democrática, há na Constituição outros artigos que também o sejam?
2. Em que consistiriam a semelhança e a diferença do movimento pela titulação dos remanescentes de quilombo com o movimento de nações indígenas por demarcação de terras?

Saiba mais

Livros
LOPES. Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, São Paulo, Selo Negro, 2004.
SANTOS, Joel Rufino. - 0 Negro na Sala de Aula, São Paulo, Ática, 1990.
SANTOS, Joel Rufino. Zumbi, São Paulo, Global, 2006.
SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
SILVA, Alberto da Costa, Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira -EdUERJ.
FREITAS, Décio. Palmares, a Guerra dos Escravos, Rio de Janeiro, Graal,1974.
LIMA, Lana Lage da Gama, Rebeldia Negra e Abolicionismo, Rio de Janeiro, Achiamé,1981.
SCIZINIO, Alaor Eduardo. Escravidão e a Saga de Manoel Congo, Rio de Janeiro, Achiamé,1988.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro, São Paulo, Ática, 1988.

Filme
Quilombo, de Cacá Diegues, 1984.

Carta Capital, jun./jul. 2006, Especial, p. 28-35

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