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Luta para passar tradição

A Crítica, Cidades, p. C3
11 de Ago de 2002

Luta para passar tradição

"Mointimã Petigah Papagu." É dessa forma que os filhos ticuna parabenizam seus pais em seu dia. Guardiões dos rituais e tradições de seu povo e principais transmissores dos segredos e técnicas da pesca, caça e artesanato, os pais indígenas tiveram seu valor diminuído historicamente no contato com a cultura do homem branco. A nova influência também chegou a disseminar hábitos antes impensados, como o castigo físico como punição por atitudes consideradas inadequadas. Na maioria das etnias indígenas, tanto a figura materna quanto a paterna não é exercida apenas por um casal. A comunidade toda assume o papel de oferecer apoio, amor e providência para seus curumins e cunhantãs.

Conforme o acadêmico de história de origem baniua, Luiz Fidélis, 28, a figura do pai indígena teve seu papel minorizado com o contato com a cultura ocidental judaico-cristã devido às novas exigências que esse contato produziu. A subsistência por atividades como a pesca e a caça foram desvalorizadas e as explicações científicas para os fenômenos naturais eram mais atraentes que as antigas lendas contadas de pai para filho.

Até a educação escolar serviu para tirar dos pais o referencial de principal detentor da sabedoria e das explicações sobre as principais indagações de seus filhos. As perguntas eram outras e eles não conseguiam mais atender. "Meu avô chegou a tirar meu pai da escola e eu tive conflitos com meu pai por conta dos novos conhecimentos que aprendia na escola", conta, ressaltando que para muitos indígenas desvalorizar a figura do pai era uma forma de negar suas origens e sua identidade.

"Um bom pai indígena é alguém que sustenta bem seus filhos e consegue passar conhecimentos que lhes serão úteis para o resto de sua vida", frisa Fidélis, que possui três filhos e planeja para eles aliar o conhecimento de uma faculdade e cursos de inglês com a cultura de sua etnia. Segundo o acadêmico da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), os baniuas não reservam um dia especial para os pais, já que toda a comunidade assume esse papel.

"Ninguém dá ou recebe presentes porque o costume é trocar objetos e mercadorias de acordo com a necessidade dos que realizam a transação", detalha. Também não teria conflito de gerações já que ao chegar na adolescência os jovens índios são preparados para se casar e formar uma nova família.

No Amazonas há 4 mil baniuas que moram, principalmente, em comunidades no Alto Solimões e, somados aos da Venezuela e Colômbia, totalizam 12 mil pessoas.

Homem também tem resguardo

Na etnia ticuna, assim que a família ganha um bebê a mãe precisa cumprir um resguardo de 60 dias e o pai um com duração de 30 dias. Durante um ano e seis meses o casal também não pode manter relações sexuais por ser o período em que a criança está "amadurecendo". Durante o período de resguardo do pai, que precisa ficar deitado na rede, são os parentes próximos os responsáveis pela subsistência da família.
O resguardo do pai, explica Domingos, é um período sagrado e serve para evitar que toque ou provoque sofrimento ou morte de algum animal ou elemento da natureza. "Caso isso aconteça a criança fica chorando durante toda a noite ou pode até morrer", explica, acrescentando que em Manaus teve que reduzir seu resguardo para cinco dias por causa da exigência do emprego, mas manteve o cuidado de não provocar sofrimento a nada da natureza. Há 33,5 mil ticunas e só no Amazonas são 5 mil pessoas.

Homenagem
Festa prolongada
PAIS GANHAM RITUAIS REGADOS À BEBIDA "PAIARU"

De acordo com o artesão e auxiliar de serviços gerais Domingos Florentino, 33, os ticunas costumam dedicar um período para homenagear os pais em festas e rituais que duram vários dias e são regados a muito "paiaru", bebida doce feita de macaxeira. Morador de uma comunidade composta por sete famílias ticunas localizada na Cidade de Deus, Zona Leste, ele se alegra de ver seus filhos Yang, 6, e Yonne, 3, aprendendo a falar e a cantar no idioma da sua etnia. Mas reclama da perda do estreitamento familiar já que seu pai ainda não -conhece os netos.
Vivendo num local que mais parece uma semi-invasão, ele confessa sentir saudades das terras de sua tribo e acha que seus filhos teriam um futuro com mais qualidade de vida se mudasse para lá. "Lá não tem violência, há locais para pescar, caçar e comer frutas. A vida é bem melhor", diz, frisando que recebe pouco mais R$ 300 como auxiliar de serviços gerais e que a renda da família é completada com a venda de peças de artesanato, que em períodos especiais chega a R$ 50 por dia.
Na comunidade de 69 ticunas há também espaço para ocorrências raríssimas como o nascimento de gêmeos. Caso do segurança comunitário Bernardino Alexandre Pereira, 40, pai dos pequenos Eron e Braz de apenas sete meses, além de mais quatro filhos. Ele também faz peças de artesanato indígena, mas como precisa ir até Tabatinga (a l.l05 quilômetros de Manaus) para adquirir as matérias-primas está com falta de material. "Um bom pai indígena é aquele que forma um bom filho", resume.

A Crítica, 11/08/2002, Cidades, p. C3

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