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As línguas, os índios e os direitos linguísticos

Revista Continente n. 196, abr., 2017, p. 44-45
Autor: FREIRE, José Ribamar Bessa
30 de Abr de 2017

As línguas, os índios e os direitos linguísticos

José Ribamar Bessa Freire

"Teve um tempo que nós, para viver, precisamos nos calar. Hoje, nós, para viver, precisamos falar". (Pajé Luiz Caboclo - índio Tremembé do Ceará)

A língua é como Deus, está em todas as partes, mas ninguém a vê de tão naturalizada que é. É preciso ter muita fé para acreditar nela, inclusive como suporte - não o único, mas seguramente o principal - no qual se estabelecem as relações, organiza-se a luta pela sobrevivência e se preserva a memória. A língua é arquivo da história, é a canoa do tempo, responsável por guardar e levar os conhecimentos de uma geração à outra.
No planeta Terra, são faladas cerca de 6.700 línguas, mais de 5 mil delas ameaçadas, moribundas umas, anêmicas outras. Quando uma língua é extinta, o que acontece com as experiências milenares que ela guardava e veiculava? A cada 15 dias - calcula o linguista David Crystal, que estudou o assunto -, morre uma língua no planeta, entre outras razões porque seus usuários foram forçados a deixar de falá-la.
Essas línguas em perigo, denominadas de línguas minoritárias por terem poucos falantes, foram, na realidade, minorizadas no processo histórico. Se considerarmos a quantidade de línguas, podemos dizer que elas representam 95% das existentes no Atlas linguístico mundial. Por isso, quando se reivindicam os direitos linguísticos, eles se referem a uma minoria de falantes, mas à maioria das línguas existentes no mundo. Trata-se assim da luta pela manutenção da diversidade linguística.
No caso das línguas indígenas, o apagamento delas se deu de forma drástica. Como decorrência de políticas de línguas, ocorreu um processo de deslocamento e de extinção em que a escola parece ter dado uma contribuição decisiva. Quando as caravelas portuguesas aportaram no litoral, em 1500, no território que é hoje o Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. Cinco séculos depois, o censo oficial do IBGE (2010) contabilizou, além das línguas dos imigrantes, 274 línguas indígenas, tendo como referência as denominações fornecidas pelos próprios falantes. Os linguistas identificaram pelo menos 180 línguas faladas hoje por uma parte dos 896.900 índios que vivem em 5.565 municípios do país.
No entanto, o brasileiro não tem informação - quando a tem é de maneira fragmentada - sobre a diversidade e sobre a sua importância para o país e para a humanidade. No Brasil, o senso comum, dominante na escola, na mídia, no Judiciário, no Congresso Nacional e em qualquer instância de poder, fortalece a imagem de um país monolíngue em português, e isso já foi naturalizado por grande parte da população, tornando mais invisíveis ainda as línguas indígenas e a diversidade.
Durante cinco séculos, essa diversidade, quando percebida, era vista como algo negativo, como ameaça à unidade nacional. As políticas públicas atropelaram o direito do uso da língua de identidade, procurando eliminar qualquer língua que não fosse o português, sob o argumento de que, com isso, permitiam a comunicação entre os brasileiros. A própria ideia de unidade e de identidade nacional passa sempre pela imagem de "uma só nação, uma só língua".
As línguas indígenas foram proibidas, discriminadas, perseguidas, sob o pretexto de serem "línguas atrasadas", quando os critérios linguísticos indicam que nenhuma língua é melhor do que outra e que qualquer língua é capaz de expressar qualquer ideia, pensamento, sentimento. O padre João Daniel, jesuíta que viveu muitos anos no Pará, conta que, em 1750, um missionário espancou uma índia do Marajó com "bolos" de palmatória, dizendo: "Só paro de bater quando você disser 'basta', mas não na tua língua". Ela calou. Suas mãos sangraram, mas ela não traiu a língua-mãe.
Para viver, era necessário calar, viver na clandestinidade, cochichar, sussurrar. Banida e enxotada das escolas, quem falasse uma língua indígena era severamente castigado.
Dessa forma é que cerca de 1.100 foram extintas na base da porrada e com elas desapareceram saberes milenares. Só muito recentemente, em 1988, a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte reconheceu aos índios o direito a usar suas línguas, aquela aprendida no colo da mãe, como língua de instrução nas escolas.
Os Fulni-ô, que vivem em Pernambuco, constituem o único povo indígena do Nordeste que conseguiu preservar sua língua materna - o yaathé -, que convive com o português em situação conflitiva de bilinguismo. Dona Itaci, uma pajé Fulni-ô falecida em 2013, compara sua língua com o ritual do ouricuri: "A língua é sagrada, como o ouricuri, porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falar em português, por exemplo, a palavra casa, você só vai lembrar o prédio, as paredes, mas se eu falo cetutxiá, aí você sabe que é, sobretudo, um lugar onde a gente encontra alegria, paz e serenidade".
É em busca de preservar o pensamento indígena que muitos povos estão reivindicando a revitalização de suas línguas, que são línguas de resistência. Elas eram faladas apenas nas aldeias, passaram a ser usadas em quase duas mil escolas indígenas - são mais de 2.700 escolas, segundo o censo escolar do INEP de 2010, mas em 787 delas só se usa o português. Agora, o movimento indígena quer ampliar o uso social dessas línguas com o apoio de novas tecnologias: rádio, telefone, gravador, filmadora, TV, computador e combinações de uns com os outros - fax-modem, base de dados, multimídia. Trata-se de fortalecer a língua e a tradição. Seguindo a reflexão do pajé Luiz Caboclo, índio Tremembé do Ceará: "Hoje, nós, para viver, precisamos falar, em vez de calar. Para isso, basta, trocar uma letra. Essa é uma questão de vida ou morte das línguas, mas também dos próprios índios".
O êxito dessa luta depende, em grande medida, da luta contra a ignorância e o preconceito glotocêntrico na sociedade nacional, canalizado contra as línguas indígenas e contra as variedades dialetais do português. Como disse José Saramago, "Existem várias línguas faladas em português". A luta pela diversidade de línguas passa também pelo reconhecimento das diferentes formas de falar a língua portuguesa e os direitos dos diferentes povos e grupos sociais continuarem pensando, cantando, amando, narrando, trabalhando e negociando sua força de trabalho nas suas várias línguas.

Revista Continente n. 196, abr., 2017, p. 44-45

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