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Lévi-Strauss 100 anos

OESP, Caderno 2, p. D1, D4-D11, D16
23 de Nov de 2008

Lévi-Strauss 100 anos
Tratado na França como o último dos grandes intelectuais, capaz de influenciar múltiplas áreas, o antropólogo tem sua obra vista como parada incontornável na história das idéias do último século

O grande mestre, nascido na Bélgica, mas radicado na França, completa 100 anos no dia 28 celebrado como um dos mais importantes intelectuais do século 20. Responsável por uma revolução no estudo antropológico, fruto do contato com sociedades indígenas brasileiras nos anos 30, ele mostrou que o "pensamento selvagem", ao contrário do que o termo pode sugerir, é ativo, minucioso, sutil, composto por jogos de relações extremamente delicadas. Não por acaso, seu modelo de análise dos mitos se mantém como paradigma, a ser seguido ou negado por novos antropólogos, demonstrando uma atualidade que é discutida nesta edição.

"Quando voltei do Brasil, em 1939, comecei a escrever um romance, Tristes Trópicos. Creio que escrevi em torno de 30 páginas... o bastante para me convencer de que não fui feito para esse gênero de literatura", diz Lévi-Strauss sobre a gênese de seu mais célebre trabalho, em entrevista inédita concedida em 2006 ao antropólogo e documentarista Marcelo Fortaleza Flores, e que é publicada com exclusividade pelo Cultura. É de Flores também o depoimento emocionado sobre a volta, neste início de século 21, às tribos visitadas nos anos 30 por Lévi-Strauss (foto acima), durante a confecção do documentário Trópico da Saudade, recém-apresentado em Paris.

"E eis que o homem das longas durações se acerca de seu centésimo ano. A glória o envolve. Imagino que ele acolha seu aroma com aquele sorrisinho discreto que nele representa o ápice do entusiasmo", escreve o correspondente em Paris Gilles Lapouge, relembrando décadas de contato e conversas com o antropólogo. Apontado por Lévi-Strauss como o fundador de uma "nova escola antropológica", o brasileiro Eduardo Viveiros de Castro discute a maneira como a obra do homenageado é interpretada hoje, apontando sua relevância em tempos de crise. Tristes Trópicos é analisado por Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago e ex-aluna de Lévi-Strauss. O professor de Teoria Literária Sérgio Medeiros escolhe como objeto de reflexão História de Lince, livro em que o mestre "reviu toda sua obra e fez uma defesa contundente do método que sempre empregou para analisar os mitos".

Antropóloga da Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz investiga as bases desse método, enquanto Leda Tenório da Motta, da PUC-SP, revê influências na formação de Lévi-Strauss. Walnice Nogueira Galvão, da USP, fala da chegada do então jovem filósofo europeu ao Brasil dos anos 30. Mariza Werneck discute o papel das artes no trabalho do antropólogo, pioneiro na defesa de uma nova relação entre o homem e o meio ambiente, como comprova o professor e escritor Mauro Leonel.

'Não encontrei a cultura tupi no auge. O que vi foram fragmentos''
Lévi-Strauss fala dos obstáculos, riscos e bons acasos que cercaram suas expedições às tribos indígenas, nos anos 1930

Em novembro de 2006, durante as filmagens do documentário Trópico da Saudade, visto em avant-première na semana passada em Paris, o antropólogo e cineasta Marcelo Fortaleza Flores, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, realizou uma série de entrevistas com o antropólogo Claude Lévi-Strauss. Do material, ele selecionou os trechos a seguir, publicados com exclusividade pelo Estado, em que o antropólogo relembra a confecção de Tristes Trópicos, as primeiras visitas a sociedades indígenas e o ambiente intelectual que encontrou no Brasil dos anos 1930.

Ao que parece, existe um mal-entendido sobre a razão pela qual o senhor chamou seu livro de memórias do Brasil e outros países tropicais de Tristes Trópicos. Por que, afinal, os trópicos são tristes?

É uma velha história, enfim... De fato, quando voltei do Brasil, em 1939, alguns meses antes da guerra, comecei a escrever um romance, e o título desse romance era Tristes Trópicos. Creio que escrevi em torno de 30 páginas, o bastante para me convencer de que não fui feito para esse gênero de literatura, e o abandonei completamente. Anos mais tarde, em 1954, escrevi o livro que levou este título, que era justamente daquele romance e ficou pairando na minha memória. Mas não há nenhuma relação direta, salvo o fato de que tanto nos trópicos vazios da América do Sul como nos trópicos abarrotados da Ásia do Sul, onde estive alguns anos depois, eu tive, por razões diversas, a mesma sensação de tristeza. Assim, o título, de algum modo, se justificava em termos retrospectivos, mas sem que haja um verdadeiro elo histórico. Trouxe dessas viagens um sentimento de tristeza que, de alguma maneira, justificou o título que eu tinha usado antes, por razões completamente diferentes.

O senhor não continuou o romance?

Não. E foi melhor assim. Era muito ruim.

No entanto, há passagens bem literárias em Tristes Trópicos. Como o pôr-do-sol no início do livro...

Bom, esse pôr-do-sol, eu o descrevi ao ver o Sol se pondo do navio que, em 1935, me levava ao Brasil.

O senhor disse que chegou ao Brasil com um único livro de bolso, Voyage à la Terre du Brésil, de Jean de Léry (1534-1611). Qual foi a importância da obra durante a viagem?

Carreguei este livro comigo porque já o tinha lido antes de partir. Procurei me informar, me documentar sobre o que me esperava e o que mais me interessaria. E, claro, sobre os primeiros contatos entre os ocidentais e os indígenas. Léry deixou um testemunho inesquecível. Para mim, seu livro foi uma espécie de catecismo, se posso dizer assim. Eu o carreguei sempre comigo e constantemente relia algumas passagens. Quando me deparei, depois de séculos, com aquelas que foram as primeiras experiências de contatos com os indígenas, senti-me mais próximo de Jean de Léry do que a distância dos séculos não poderia fazer crer.

O senhor escreveu também que encontrou ali um pouco do universo indígena que o próprio Léry tinha já descoberto.

Escute... eu imaginei... com certeza, foi por acaso... Mas quando, um dia, nos confins da baía do Rio de Janeiro, dona Heloisa Alberto Torres, que era diretora do Museu Nacional, levou-me a um sítio arqueológico recém-descoberto, e vi sendo tirada da terra uma grande urna tupi, decorada exatamente como Léry tinha descrito, e encontrada no mesmo local... sim, tive a sensação que retornava nos séculos.

Durante sua permanência no Brasil, o senhor manteve contato com artistas e intelectuais brasileiros?

Com artistas, não muito. Mas com vários intelectuais, sim. O ambiente do Departamento de Cultura de São Paulo era muito animado, muito ativo, e com meus colegas... enfim, mantive uma grande amizade com alguns deles, como o historiador Sérgio Milliet, o bibliógrafo Rubens Borda de Morais, o sociólogo Caio Prado Júnior e particularmente Paulo Duarte, jornalista e escritor, que teve um grande papel na revolução constitucionalista em 1932, uma amizade que não se restringiu apenas ao Brasil, mas continuou nos Estados Unidos, onde ele se refugiou durante a guerra, e em Paris, onde viveu muito tempo após a guerra. Paulo era escritor. Deixou livros de memórias em vários volumes, que aliás, estão aqui...

Como foi seu relacionamento com Mário de Andrade?

Mário de Andrade, que eu admirava muito como escritor, era então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e fizemos juntos excursões a pequenas cidades em torno de São Paulo, por ocasião de festas populares. Foi graças a ele que conheci um pouco do folclore tradicional brasileiro, como os combates mouros e cristãos (o bumba-meu-boi). Sou especialmente agradecido a ele porque, quando armei minha expedição para visitar a tribo dos índios nhambiquaras, tive dificuldades políticas. Era a época da ditadura de Getúlio Vargas, do Estado Novo, havia muita xenofobia e os militares se opunham a que um estrangeiro penetrasse numa região que consideravam estratégica, pois estava próxima das fronteiras. Só realizamos a expedição com a ajuda de Mário de Andrade, e então ela foi transformada de expedição puramente francesa numa expedição franco-brasileira. Na minha primeira expedição não houve problema algum. A situação em 1938 era bem diferente da de 36.

O que o senhor viveu em termos de xenofobia no Brasil durante o Estado Novo?

Tive dificuldade de deixar o Brasil, porque os primeiros acordos previam que as coleções de objetos seriam compartilhadas entre o Museu do Homem, na França, e o Museu Nacional, no Rio. Só que, durante o tempo em que eu trabalhava em campo, o Museu Nacional, por causa de acordo firmado com Mário de Andrade, decidiu que a parte brasileira das coleções iria para o Departamento de Cultura - e não para o próprio museu. Só que os serviços de polícia não sabiam. Portanto, no momento de partir, houve problemas, quase não consegui deixar o País. No final, tudo se acertou.

Junto com Mário de Andrade o senhor visitou grupos indígenas perto de São Paulo?

Não com Mário de Andrade. Realizei algumas pequenas viagens, principalmente no Estado do Paraná, visitando os índios caingangues. Mas não foi com Mário de Andrade, que nesse momento estava interessado essencialmente no folclore.

Fez essas viagens com outros pesquisadores franceses? Consta que as viagens ao Paraná foram realizadas com o geógrafo Pierre Monbeig. Visitou os caingangues com ele?

Pierre Monbeig jamais fez parte dessas expedições. Fizemos algumas viagens juntos nas zonas pioneiras do Paraná, mas uma coisa totalmente diferente. Participei intensamente dessas viagens, já que Monbeig estava mais interessado nas instalações de novos colonos em regiões até então desabitadas ou pouco povoadas. Jamais visitamos juntos as tribos indígenas. Estivemos em viagens a cidadezinhas e pequenas estações de estrada de ferro a Noroeste, estações que os ingleses construíam pelo Estado do Paraná.

O senhor poderia descrever o incidente que mencionou no livro Tristes Trópicos, quando levou balões à tribo dos nhambiquaras e o perigo que esses balões representaram?

Durante festas populares em São Paulo eu vi esses balões e tive a idéia de levar alguns até as aldeias para divertir os indígenas. Evidentemente, não duvidava que eles ficariam aterrorizados. Levei os balões. Uma bela noite, resolvi organizar uma pequena festa para eles, para distraí-los. E então acendi os balões. Eles inflaram e subiram ao céu. Até então tudo correu bem. Mas, nesse momento, um verdadeiro clima de terror se verificou em meio ao grupo com o qual eu estava e eu só ouvia o termo "atasu, atasu", que designa os espíritos do mal. Nesse momento, a situação ficou muito ruim. Na manhã do dia seguinte, tentei dar um pequeno curso divertido de física para os índios e mostrar a eles que, quando se acendia o fogo e se deixava um pedaço de papel de seda embaixo, ele subia com a fumaça e isso era um fenômeno normal. Mas não sei se ficaram interessados. Enfim, o medo passou e nossas relações continuaram tão amigáveis como antes.

Em Tristes Trópicos, o senhor mencionou o episódio de uma conversa com uma criança, que acho muito esclarecedora sobre o respeito que os índios têm pelos pequenos. Tinha algo a ver com um macaquinho...

Não me lembro muito bem... Estou perdendo a memória com a idade... Não, o macaco foi com os nhambiquaras. Lembro-me que eu queria um objeto... creio que estava com um pequeno grupo de índios carajás, que encontrei no Araguaia. Jamais trabalhei com os carajás, mas havia duas ou três famílias que estavam acampadas ali, à margem do rio. A menina tinha uma dessas bonecas que são tão bonitas, tão inquietantes, lembram muito aqueles orientais do segundo ou terceiro milênio antes da nossa era. Eu queria uma dessas bonecas e então pedi à mãe, que as confeccionara. Ela me respondeu "não, não é minha, é da minha filha". Precisei me entender com a menina, ofereci um anel, um colar, até ela se decidir a me dar a boneca.

Qual foi a participação da sua primeira mulher, Dinah, nas expedições que o senhor realizou no Brasil?

Na expedição de 1936, é bom dizer que não tínhamos uma verdadeira formação no campo da etnografia. Ambos havíamos prestado concurso para professor universitário suplente na área de filosofia. Éramos filósofos de formação. Mas decidi me dedicar à etnologia e comecei, sem seguir nenhum curso específico, aprendendo como autodidata. Minha primeira mulher, que se sentia muito mais filósofa, não tinha nenhum interesse pela etnografia. Mas, quando chegamos a São Paulo, sentimos uma tal curiosidade, uma tal necessidade, vimos que teríamos de compensar a falta de conhecimentos. Tínhamos instruções do Museu do Homem, livros, então disse à Dinah: "Bom, você vai se ocupar dos elementos de antropologia física" - como medir um crânio, era muito importante ainda naquela época, hoje já não é tão usado - "e se ocupar também do folclore". Foi assim que ela fez amizade com Mário de Andrade. Quanto a mim, me dediquei à sociologia e à etnografia propriamente dita. Foi assim que começamos, aprendendo à medida que transmitíamos os ensinamentos. Embora, na primeira expedição até os cadiuéus e os bororos, Dinah tenha se ocupado essencialmente da cultura material. Foi ela quem confeccionou a maior parte das fichas dos objetos que recolhemos, enquanto eu me ocupava da organização social e de parentesco e outras coisas. Quanto à segunda expedição, ela não participou porque, tão logo chegamos à tribo dos nhambiquaras, Dinah foi atingida por uma oftalmia purulenta grave que quase a deixou cega, e ela precisou ser retirada do local urgentemente.

Como foi sua relação com Luis de Castro Faria, o antropólogo brasileiro que o acompanhou na expedição de 1938?

Ele foi indicado pelo Museu Nacional como "fiscal" da expedição, pois achavam que não se podia deixar estrangeiros entrando nessas áreas sozinhos. Ele era muito jovem. Mais jovem do que eu... bom, eu não era velho, mas ele era mais jovem do que eu e totalmente inexperiente. Viajamos juntos por meses, salvo durante dois períodos em que Castro Faria também foi afetado por aquela oftalmia purulenta, obrigado a ficar em Campos Novos. E uma outra vez, quando estávamos com os índios tupis-guaranis, houve um grave acidente com um de nossos homens, cujo fuzil de caça explodiu na própria mão, deixando-a triturada. Como representante das autoridades brasileiras, ele era o responsável pela vida daquele jovem, então o levou ao nosso médico, que também estava doente, para ser cuidado. Por isso, passei algumas semanas sozinho entre os índios tupis. Durante o resto do tempo, viajamos como bons camaradas. Mas, enfim, na sua juventude, Castro Faria se sentia um pouco pressionado pelas responsabilidades, portanto, fui obrigado a renunciar a muitas coisas que gostaria de ter feito naquele momento.

Poderia falar sobre sua experiência com os mundés, cuja tribo visitou em 1938, mas que até então não haviam tido contato com o exterior?

Quando estava entre os tupis-guaranis, encontrei-me com um ambulante negro que estava por ali, nas suas peregrinações. Esses ambulantes faziam coisas muito difíceis, como passar de piroga com sua mercadoria pelas bacias do Machado e Guaporé. Por isso, ele teve de fazer um desvio por terra, levando vários dias para passar de uma bacia fluvial para outra. Uma grande aventura. Foi ele quem me revelou a existência de índios dos quais a literatura não tratava na época. E eram os índios mundés (aicanãs). Naturalmente, tive vontade de vê-los. Montamos uma pequena expedição, o que foi muito apaixonante porque, para um etnólogo, ver índios que ninguém jamais viu sempre emociona. Mas, por outro lado, eu não sabia que língua falavam. E não poderia ficar ali por muito tempo para aprendê-la. Foi uma experiência ao mesmo tempo comovente e decepcionante.

Como ocorreu com Jean de Léry ?

Sim... Léry... ele ficou bastante tempo com os índios ... para falar um pouco a língua. Eu... não... era o fim da expedição... já não tinha mais recursos. Não tinha mais dinheiro e só podia permanecer ali apenas alguns dias. Você sabe, Léry conheceu a cultura tupi no auge. Eu encontrei apenas fragmentos... um pequeno clã formado por uma dezena de pessoas. Parece que acabaram de encontrar um outro grupo, não muito distante dali, que também não teve contato algum até agora. Mas são restos apenas...

O senhor disse que os índios bororos vieram à França visitá-lo. Como foi isso?

Eles vieram na companhia de pesquisadores da Universidade Salesiana de Campo Grande. Foram a Gênova, na Itália, para participar de uma exposição ou algo assim. Eram jovens bororos, nos quais identifiquei exatamente a imagem daqueles que encontrei lá trás - os bororos estão entre os mais belos índios do sertão brasileiro. Também encontrei colegas que ensinavam a língua bororo na universidade salesiana. Foi uma experiência paradoxal, pois embora fôssemos todos colegas, eles resolveram cantar e dançar para mim, neste escritório. E eu reconheci exatamente os cantos e danças que ouvi 70 anos atrás.

Que impressões teve do Brasil quando de sua visita em 1985. O País havia mudado muito?

Passei exatamente cinco dias no Brasil. Portanto, foi uma viagem curta demais para formar uma opinião. Com certeza, São Paulo não tinha mais nenhuma relação com a cidade meio colonial que eu conheci.

Poderia falar sobre os Carnets de Voyage (Cadernos de Viagem) que reencontrou recentemente (obra publicada pela Editora Plêiade)?

Durante a viagem de Cuiabá a Utiariti, que durou uns dez dias, fiz um diário, que perdi completamente e reencontrei por acaso há um ou dois anos. Mas não é nada, só uma dezena de páginas de anotações. Pretendo republicá-las em anexo ao livro (Tristes Trópicos), para mostrar a diferença entre uma viagem narrada com base em lembranças que datam de 15 anos e as impressões recolhidas in loco na época.

Cronologia

1908 Claude Lévi-Strauss nasce em Bruxelas, Bélgica, no dia 28 de novembro

1926 Faz estudos de filosofia e direito em Paris

1935 Desembarca no Brasil e assume o cargo de professor de sociologia na USP, onde fica até 1938, ano em que realiza uma grande expedição a Mato Grosso e à Amazônia. (Em 1935, viajara ao Paraná e Goiás e, em 1936, realizara curta expedição ao Pantanal.) Retorna à
França, de onde sai em 1941, por conta do nazismo. Vai morar nos EUA. Regressa em 1947

1955 Publica Tristes Trópicos, seis anos depois de Estruturas Elementares do Parentesco, primeira obra. Lança Antropologia Estrutural (1958) e entra para o Collège de France

1964 Lança O Cru e O Cozido, primeiro dos quatro volumes de Mitológicas

1985 Volta ao Brasil pela primeira vez

1994 Lança Saudades do Brasil. Dois anos depois, vem Saudades de São Paulo. Essas obras sucedem História de Lince e Olhar, Escutar, Ler

2005 Recebe o 17. Prêmio Catalunha, na Espanha

Senhor das longas durações e das coisas que ficam
Ele se entediava com a filosofia. O Brasil o salvou. E levou-o a entender por que o pensamento selvagem nada tem de atraso

Gilles Lapouge
Paris

Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas, de pais franceses. Em breve será centenário. Isso é uma façanha, mas as relações que Lévi-Strauss manteve com a passagem do tempo sempre foram estranhas. Ele prefere o tempo que não passa.

Há alguns anos, ele me dizia que à força de freqüentar os povos "primitivos", seus mitos e suas fábulas, tinha virado um homem do neolítico. Não era uma boutade. Lévi-Strauss se debruçou, não sobre a "longa duração", mas sobre durações muito, muito longas, as durações letárgicas, quase paralisadas. A ciência que o solicitou e guiou com mais constância não foi nem a antropologia, nem a filosofia, nem a história, nem a sociologia. Foi a geologia.

Quando descobriu, muito jovem, Freud, ele viu a psicanálise "como uma aplicação ao homem individual de um método do qual a geologia representava o cânone". É fato que ele sempre manifestou um interesse singular pelos objetos da natureza - árvores e flores, animais, rios. Mas, entre todos esses objetos, foi a pedra que primeiro o fascinou, o pedregulho.

Uma bela pedra, um bonito veio de basalto ou uma chapada de arenito, e ele fica em transe. Uma de suas mais belas lembranças é geológica. Muito jovem, ele estava de férias nas Causses de Cévennes. Observando a montanha, ele imaginou, de repente, que ali estava, debaixo de seus olhos, ao alcance de sua mão, algumas centenas de milhões de anos fixados e congelados no ponto de encontro de duas camadas geológicas entrelaçadas. Exultou.

Sua juventude conheceu outros prazeres. Seu pai era um pintor de retratos. Ele tinha o gosto pelas coleções, bem no espírito do século 18, quando se apreciavam os "gabinetes de curiosidades". A criança contraiu o vírus. Recolhia objetos desemparelhados, plumas, instrumentos musicais. "Aos 15 anos", ele conta, "eu era equipado com algumas convicções rústicas que ainda me guiam." Não seria sua obra um imenso e fabuloso "gabinete de curiosidades", dentro do qual ele ordena, classifica e ilumina, não os objetos insólitos, mas mitos, modos à mesa, pensamentos selvagens ou não, fonemas, estruturas de parentesco?

Bons estudos. Primeiro, professor suplente de filosofia em 1931. Depois, professor titular. A filosofia o aborrecia. O Brasil o salvou. Ao conseguir um posto de professor na USP, exultou. Quanto à natureza, com o Brasil ele estava servido! Seu "olho deslumbrado mediu a riqueza e a variedade dos objetos". Ele passaria belos anos em São Paulo em companhia de uma plêiade de professores franceses excepcionais, o historiador Fernand Braudel, o "Bastidinho" (Roger Bastide) e o "Bastidão" (Paul Arbousse-Bastide), Jean Maugüé, Pierre Monbeig.

Mas Lévi-Strauss não esqueceu que se afastou da filosofia para melhor se aproximar dos homens pela antropologia. Ele fez várias incursões nas terras dos bororos. Em 1938 aconteceu sua grande expedição para a Amazônia, Mato Grosso, na qual estudou os nhambiquaras e os tupi-kawahib. O Brasil é, pois, uma das chaves de seu destino notável. Não só permitiu que Lévi-Strauss trocasse "uma cadeira de professor numa pequena cidade francesa pelo ensino numa das maiores cidades do mundo", como toda sua obra futura se articularia em torno do estudo das sociedades indígenas. O Brasil forma a coluna vertebral dessa obra, uma das mais grandiosas deste tempo.

Por que o Brasil? Há 20 anos, ele me havia dito: "Cheguei ao Brasil por acaso. Eu poderia perfeitamente ter ido para um outro país. Do mundo, eu não conhecia nada... E, de repente, o Brasil. Eram os 'trópicos', com tudo que este termo evoca de poesia, de mistério, de literatura. Eu esperava uma grande aventura, tomar contato com uma natureza desconhecida e que nunca deixou de me fascinar."

Em 1939, a guerra. Ele voltou à França. Um dia, durante o recuo francês, ele estava escondido no campo com outros soldados. Para passar o tempo, observou uma flor de dente-de-leão. Esqueceu tudo, as bombas, as metralhadoras, para "admirar a estrutura maravilhosamente regular". Esse dente-de-leão, ou as outras flores, nunca deixou de ser mencionado na obra por nascer.

Como judeu, o professor Lévi-Strauss foi destituído pelo governo colaboracionista do marechal Pétain. Ele chegou a ir para os EUA, onde lecionou na New School for Social Researches. Conheceu o lingüista Roman Jakobson, que inventara, para aplicar em suas pesquisas acadêmicas, a "análise estrutural". Lévi-Strauss se entusiasmou. Com suas pedras e suas flores, com seus bororos, ele fazia, em suma, "estruturalismo sem o saber". Jakobson forneceu-lhe o instrumento para esse "estruturalismo" que, daquele momento em diante, inspiraria todo o trabalho de Lévi-Strauss, assim como o de outros grandes do século, como o psicanalista Jacques Lacan.

Após a guerra, em Paris, Lévi-Strauss tornou-se subdiretor do Museu do Homem. Começou então a construção de sua obra, este formidável monumento de palavras que revolucionou não só a antropologia, mas também o olhar que lançamos sobre o mundo e sobre todos os seus locatários, do craveiro ao musaranho, dos homens às nuvens.

Os títulos se sucederam: As Estruturas Elementares do Parentesco em 1948, Raça e História, em 1952, depois Tristes Trópicos, em 1955, obra romântica, dilacerante às vezes, quase budista. Apesar de confessar que o homem, no universo, é tão somente uma anedota, um traço, ela atinge uma espécie de alegria esplêndida e melancólica.

Após a guinada para o registro literário e romântico de Tristes Trópicos, Lévi-Strauss retornou escrupulosamente a sua disciplina de pesquisador. Totemismo Hoje (1962) surpreende. Suas primeiras palavras dão o tom: "Il en est du totémisme comme de l'hysterie" (numa tradução livre, o totemismo é tão real como a histeria). Ele quer dizer com isso que se trata de uma ilusão, de uma construção arbitrária, ligada a certezas etnológicas equivocadas. Segundo ele, os componentes do totemismo se relacionam à atividade "classificadora" que se encontra em produção no mundo inteiro.

A obra seguinte, O Pensamento Selvagem, exploraria esse novo filão. Para ele, o pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens, mas o pensamento "não domesticado", natural, que está em produção em cada homem, e que organiza com estardalhaço as formas de arte, as maneiras de viver, os costumes, o saber popular, as taxonomias, os vocabulários, etc.

Contrariamente ao que o termo "pensamento selvagem" poderia sugerir, ele mostrou que esse pensamento é ativo, minucioso, sutil, não pára de classificar, de comparar, de fazer e desfazer relações, de distinguir, de transformar por jogos de relações extremamente delicadas, e que chegam assim mais perto do real, atestando pelo mesmo o parentesco e quase a similitude entre os objetos naturais e o espírito, sendo o espírito ele próprio um desses objetos.

A etapa seguinte explorou a mesma via. Com Mitológicas, ele resolve "classificar" uma produção fervilhante, intangível, bizarra, incerta, e que parecia a mais avessa a qualquer classificação: os mitos. Durante 10 anos, ele colecionou os mitos, os comparou, emparelhou suas maneiras de narrar, buscou seus parentescos e suas dessemelhanças. O material sobre o qual trabalhava era infinito: um milhar de mitos provenientes de 200 povos indígenas das Américas. O resultado é soberbo. Quatro grossas obras: O Cru e o Cozido, Do Mel às Cinzas, Da Origem dos Modos à Mesa, O Homem Nu.

Persiste, a meu ver, um mistério nessa obra a um só tempo difícil e magnífica. Como foi que esse homem, capaz de nos oferecer esse grande poema noturno que se chama Tristes Trópicos, não teve a tentação de acompanhar sua produção científica com uma exploração mais literária? Eu fiz-lhe essa pergunta um dia. Sua resposta foi sem rodeios. Era evidente que ele teria amado poder escrever romances tão belos como "os de Dickens, de Conrad ou de Proust", mas não tinha os recursos para isso. "Quando era adolescente, eu me sentia capaz de tudo: pintura, música, literatura, sim, nada me assustava e tentei todas essas formas de arte. Eu escrevi, pintei, compus. Toquei todos os instrumentos da música, do violino ao acordeão, e sempre com o mesmo insucesso."

Claro, eu não acreditei em uma só palavra de seus argumentos. Os recursos literários, ele mostrou que os dominava à perfeição, não só em Tristes Trópicos. Então, por que ter rodado toda a vida em torno da poesia, em torno da música, em torno da filosofia, em torno do romance, sem contudo penetrar neles? "Quando muito", ele disse com aquele humor britânico do qual nunca se separou, "quando muito eu realizei pequenas investidas furtivas nos territórios privados da filosofia."

Eis que o homem das longas durações se acerca de seu centésimo ano. A glória o envolve. Imagino que ele acolha esse aroma com aquele sorrisinho discreto que nele representa o ápice do entusiasmo. Um de seus amigos em São Paulo, o professor francês Jean Maugüé, fala de Lévi-Strauss em um de seus livros: "No fundo, Lévi-Strauss nunca se interessou pelas coisas que desaparecem." Há alguns anos, lembrei a Lévi-Strauss esse juízo de Jean Maugüé. Ele pareceu surpreso, de início, mas depois me disse: "Ah, Maugüé dizia isso? Eu mesmo o poderia ter dito."
Tradução de Celso Mauro Paciornik

Lições para os atuais tempos de crise
Para Eduardo Viveiros de Castro, obra ganha força no cenário de crise mundial

Ubiratan Brasil

Poucos conhecem tão bem a cultura indígena brasileira como o professor de antropologia e etnólogo americanista Eduardo Viveiros de Castro. A ponto de ter sido apresentado por seu mestre e colega Claude Lévi-Strauss como o fundador de uma "nova escola na antropologia". É o que confirma uma de suas diversas obras, A Inconstância da Alma Selvagem (Cosac Naify), coletânea de ensaios que revela sua grande contribuição para a antropologia, o "perspectivismo amazônico", proposição teórica que rege todas as suas formulações. Afinado com o trabalho de Lévi-Strauss, com quem manteve inúmeros contatos, Viveiros de Castro abriu, no mês passado, o ciclo de conferências que ocorre todas as quintas-feiras e vai até o dia 11, no Centro Universitário Maria Antônia, da USP, em homenagem ao centenário de Lévi-Strauss. Conversou também com o Estado sobre o mestre francês, cuja obra conhece em detalhes, como mostram os principais tópicos da entrevista.

Carreira

Discute-se hoje o grau de homogeneidade, de unicidade da obra de Lévi-Strauss, que é muito vasta - vai do fim dos anos 1930 até 1993, quando publica Olhar, Ler e Escutar. O debate trata das mudanças de ênfase significativas em seu trabalho. Entre a primeira fase e a última, de um total de três, há muita diferença. Na primeira, o destaque é As Estruturas Elementares do Parentesco, seu primeiro grande livro, publicado em 1949 e reeditado em 1967 com mudanças importantes. Foi a obra que o tornou famoso, embora já tivesse publicado artigos. Com ela, começou a ser conhecido nos EUA, para onde rumou depois de passar pelo Brasil, ou seja, durante a 2ª Guerra. Foi nos EUA, aliás, que Lévi-Strauss aprendeu antropologia e não no Brasil - aqui, ele conheceu os índios enquanto em Nova York se uniu aos sábios europeus que fugiram da guerra e, juntos, fundaram a New School. Nos EUA, ele teve acesso a imensas bibliotecas, nas quais estudou etimologia pela primeira vez. Quando voltou para a França, defendeu a Tese de doutorado que se transformou em As Estruturas Elementares do Parentesco, que teve impacto fulminante na antropologia.

As estruturas elementares do parentesco

É um livro que, embora tenha aberto uma quantidade de perspectivas (em particular nas relações que ele estabelece entre troca matrimonial e comunicação, semiologia e sociologia), cria uma espécie de projeto de uma ciência social unificada. Na verdade, uma ciência dos signos em que o parentesco também é uma troca de signos: o que se trocam não são pessoas, mas relações. É preciso lembrar que, em 1949, Lévi-Strauss foi muito influenciado pela cibernética, e que as teorias da ciência da informação causaram muito impacto sobre ele. O nível de interlocução desse livro está nos grandes pensadores, como Marx, Durkheim e, principalmente, Freud, porque trata do parentesco, enfim, um tema psicanalítico. Na verdade, acredito que o grande e polêmico interlocutor de Lévi-Strauss é Totem Tabu, de Freud. Assim, As Estruturas Elementares do Parentesco é uma espécie de resposta do antropólogo a Freud, que se apoiou na antropologia da sua época para escrever sua obra. Lévi-Strauss fez o contrário, ou seja, uma leitura de Totem Tabu por um antropólogo, e o resultado é uma leitura polêmica, admirativa, mas fortemente polêmica. Então, essa seria a primeira fase, que vai mais ou menos até 1962. Durante esse período, ele escreve o livro que o tornou mundialmente famoso, Tristes Trópicos, de 1955.

Tristes Tráopicos
Curiosamente, não é livro essencialmente antropológico, pois foi escrito depois de uma derrota acadêmica no College de France, o que o levou a acreditar que não teria futuro na antropologia. Foi quando criou esse novo gênero, o romance filosófico de viagem. Tristes Trópicos foi até indicado para o prêmio Goncourt, mas não pôde disputar por não ser considerado romance. Mesmo assim, teve uma recepção crítica esplêndida. É curioso porque é um livro do ponto de vista estilístico extremamente tradicional, e foi escrito com uma linguagem deliberadamente clássica, justamente em uma época em que aconteciam as grandes experimentações lingüísticas do Nouveau Roman. Não obstante, Lévi-Strauss optou por um livro escrito em alexandrinos, mas que tinha dentro dessa forma clássica anacrônica toda uma filosofia, um ponto de vista totalmente novo. Esse descompasso é o que o torna interessante. É um livro careta do ponto de vista literário, mas essa forma careta é também bastante inédita, pois mistura diário, etnografia, especulação filosófica, considerações estéticas, tudo estruturado de uma maneira bastante complexa, com avanços e flash-backs. Do ponto de vista da linguagem, é uma obra anacrônica, estilo século 17. Mesmo assim, fez muito sucesso e também foi decisivo, eu creio, para transformar e ampliar a sensibilidade cultural européia ao oferecer uma visão dos outros, dos selvagens, do mundo além-civilização.

Raça e historia

Foi um folhetinho encomendado pela Unesco, que tinha o grande projeto de acabar com o racismo, uma resposta ao nazismo. Esse livro fez parte do programa dos cientistas contra o racismo. Ali, vários cientistas publicaram livros do ponto de vista da biologia e Lévi-Strauss encarregou-se de um de antropologia. Foi uma obra fundamental no sentido de criar uma consciência urbana educada sobre o primitivo, além de ser nova em relação ao modelo revolucionista normal colonialista. Era o momento em que o colonialismo entrava em crise conceitual e Lévi-Strauss começa a perceber o tamanho do equívoco sobre o qual ele estava, digamos, assentado. Acredito que Lévi-Strauss foi fundamental no processo de denunciar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental e de, no mesmo passo, denunciar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental. Por isso que, embora antropológica, Raça e História foi lida também como uma obra filosófica. No fundo, a grande discussão de Lévi-Strauss trata, a meu ver, da questão dos fundamentos colonialistas da metafísica e fundamentos metafísicos do colonialismo, da exclusão do outro. Todo um conjunto de pecados, digamos assim, da consciência ocidental, Lévi-Strauss denuncia com grande eloqüência e veemência. Tristes Trópicos traz um pouco disso. Foi um livro que ajudou a criar uma espécie de 'alterofilia', no sentido de uma atitude mais positiva em relação à alteridade cultural no bojo desse grande exame de consciência que foi o pós-guerra, quando os europeus se deram conta das atrocidades que foram capazes de cometer, percebendo que a noção de selvagem mudara complemente. A obra de Lévi-Strauss revela uma certa atualização da consciência européia no pós-guerra.

Década de 1960

No início dos anos 1960, ele escreve dois livros capitais, O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem, que configuram uma espécie de pausa em seu trabalho antropológico sobre parentesco, problemas da organização social, dramas de relação social. Lévi-Strauss começa a deslocar seu interesse para problemas de cosmologia, classificação, mitologia. Para ele, pensamento selvagem é aquele em estado anterior ao de ser domesticado pela ciência, com a finalidade de ter um rendimento. Ou seja, um pensamento que não foi racionalizado em um sentido econômico-científico. Discussões que introduziram o tema da classificação a partir da mudança de consciência do ponto de vista europeu. Ou seja, Lévi-Strauss insiste que o pensamento indígena não é confuso, obscuro, nem está perdido nas brumas da magia e da participação primitiva. Ao contrário, é um pensamento obcecado com a ordem, a distinção, a diferença, a classificação, o conhecimento, e ele mostra que, na verdade, não há descontinuidade radical entre a ciência moderna e a ciência selvagem. Ambas estão fundadas no mesmo impulso e, nos livros, ele defende quase que no sentido jurídico o pensamento selvagem como um pensamento integral. Enfim, dissolve os graves equívocos que os europeus mantinham a respeito do outro. Dissolve o etnocentrismo.

Antropologia pós-Lévi-Strauss

A dimensão política com os povos não-ocidentais mudou os termos da discussão a partir da década de 1970 e fez, curiosamente, que a obra de Lévi-Strauss o levasse para um certo ostracismo por conta do sucesso em modificar a sensibilidade dos europeus em relação aos outros povos. Houve, assim, uma pulverização com o fim do discurso unificador das ciências humanas. Isso posto, acontece agora um processo de reavaliação da obra de Lévi-Strauss no momento em que o estruturalismo está voltando.Trata-se de um processo complexo, porque, de 1968 para cá, o que houve não foi só uma radicalização política-conceitual da antropologia, mas também uma revolução conservadora, capitaneada por Reagan, Thatcher e que continua até hoje, com Sarkozy. Uma revolução contra a esquerda, derrotada pelos Estados Unidos com o fim da Guerra Fria. A antropologia vive uma fase de reconstrução após 20 anos de arrumação da bagunça. Uma reorganização, entretanto, dentro de um ambiente mundial de extremo pessimismo em função de uma crise objetiva da qual, salvo engano, não vamos sair, ou pelo menos, não vamos sair inteiros. E, nessas condições, a antropologia tem de pensar no que vai acontecer com o homem em geral, no momento em que o homem se tornou um fenômeno natural. Antropólogos físicos, arqueólogos, paleontólogos, todos dizem que o homem produziu mudanças tão dramáticas no meio ambiente que já vivemos em uma nova era geológica chamada antropoceno. Isso porque o homem mudou o clima, a distribuição das espécies no planeta. A questão é saber se, no antropoceno, haverá lugar para o homem. Paradoxalmente ou ironicamente, é a questão que está aberta. E, sob essas condições, a obra de Lévi-Strauss é moderna por tentar pensar a espécie humana como a trajetória de uma espécie que é um personagem planetário. Em tempos sombrios, a obra de Lévi-Strauss tem muito o que nos ajudar.

Trópico da saudade
Documentário refaz expedições do antropólogo a tribos indígenas

Marcelo Fortaleza Flores

Retratar a realidade da Amazônia ou do interior do Brasil não é tarefa fácil. Menos ainda se esta descrição não exclui as outras civilizações que ali fizeram seus berços e cujas culturas e sabedorias diversas ainda tão pouco entendemos. Enquanto para a maior parte dos brasileiros a Amazônia continua sendo uma fonte inesgotável de utopias, para o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que a visitou em 1938, ela se tornou o testemunho de uma relação mais sadia que o homem concebeu com o meio ambiente. Para ele, nosso mundo urbano se tornou "cheio demais", sem boas perspectivas, e nós nos tornamos "consumidores bulímicos das riquezas que nos rodeiam". As terras ainda preservadas da Amazônia e suas culturas milenares seriam o último laboratório vivo de uma possibilidade que poderia levar-nos a uma forma possível daquilo que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável. Esta foi talvez a grande revelação que o pensador belga nos legou no filme que se propôs a fazer com a equipe de Trópico da Saudade.

O título do filme em sua versão brasileira (em preparação) é uma referência direta aos dois livros que Lévi-Strauss publicou sobre suas memórias do Brasil: Tristes Trópicos (1955) e Saudades do Brasil (1994), enquanto a versão para a TV francesa a ser veiculada pela France 5 amanhã, como parte das comemorações pelo centenário do antropólogo (Claude Lévi-Strauss, auprès de l?Amazonie) traz uma menção direta à Amazônia humanizada que o pensador belga conheceu e procurou descrever.

Quando chegou ao porto de Santos em 1935, o intuito de Lévi-Strauss era estudar as populações indígenas do Brasil que resistiam ao contato com a sociedade. Lévi-Strauss trazia no bolso um livro que o fascinara: História de uma Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, missionário francês que narrara suas experiências entre os índios tupi no século 16. Anos mais tarde e para a sua surpresa, Lévi-Strauss veria imagens que refletiam certos traços da civilização que achara Léry. Um índio que encontraria repetiria uma frase que Michel de Montaigne teria ouvido dos tupinambás que visitaram a França. Lévi-Strauss seria suspeito de feitiçaria pelos índios por causa do ato inocente de levar alguns balões de São João para diverti-los. Lévi-Strauss perceberia a forma lúdica como os índios vêem o amor. Nas margens do Araguaia, Lévi-Strauss encontraria o respeito que os índios têm pela autonomia, independência e individualidade de suas crianças, quando os pais de uma menina se recusaram a ajudar o antropólogo a efetuar uma troca com a pequena proprietária de 3 ou 4 anos. São essas reflexões "colhidas ao vento" (muitas das quais são retratadas no filme) que fazem com que os relatos e análises de Lévi-Strauss revelem as cores, o gosto e o perfume de suas experiências.

De 1935 a 1938, enquanto lecionava sociologia na USP, Lévi-Strauss iniciou-se na etnografia por meio de viagens ao Paraná e Goiás, onde encontrou os caingangues e os carajás, respectivamente; bem como através de uma curta expedição etnográfica em 1936 que o conduziu ao Pantanal e Cuiabá pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Foram essas sociedades hierárquicas, dotadas de um modelo social dialético e altamente complexo, que inspiraram Lévi-Strauss a usar o método estrutural que ele depois derivaria da lingüística para explicar tipos específicos de organização social e expressões estéticas. A expedição de 1936 proporcionou o reconhecimento do trabalho de Lévi-Strauss por outros antropólogos da época e o financiamento para prosseguir com suas pesquisas.

Em 1938, Lévi-Strauss realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, penetrando a Amazônia através do Vale do Guaporé, território relativamente inexplorado do Brasil na época. Realizada nos moldes das grandes expedições etnográficas ao interior do País no século 19 e no início do século 20, como as viagens de Von den Steinen pelo Xingu ou de Köch Grunberg em Roraima, Lévi-Strauss utilizou como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia "desbravado" este "velho oeste" brasileiro havia apenas 25 anos.

Como escreveu o próprio Lévi-Strauss, a linha telegráfica atravessava pelo meio uma região tão grande quanto a França percorrida por grupos indígenas distintos e nem sempre amistosos. A trilha aberta pela linha era a "picada", com seus postes e postos telegráficos, únicos pontos de referência num espaço de 700 km². Sua rota cingia as terras nhanbiquaras pela mítica Serra do Norte e levava aos grupos tupis remanescentes que sobreviviam às doenças e aos conflitos com as frentes pioneiras no interior da Amazônia. Por razões históricas, os nhambiquaras se achavam reduzidos a uma tal simplicidade sociológica que Lévi-Strauss pensou ter encontrado o "mínimo social" que o filósofo Jean-Jacques Rousseau imaginara como o estado indiferenciado nos quais grupos humanos estabeleceriam uma expressão prototípica do contrato social.

Ao iniciar um filme sobre a viagem de Lévi-Strauss e o que os nossos sertões e a Amazônia o fizeram descobrir, o primeiro desafio foi condensar uma experiência tão rica e complexa no tempo exíguo que nos permite o cinema, procurando mesmo assim desvelar imagens que pudessem colocar o público diante do que ele presenciou, para que eles pudessem compartilhar da profundidade de seu pensamento e da visão de um Brasil ainda pouco conhecido por nós. O próprio Lévi-Strauss me dera a pista a seguir em 2005, quando autorizou diversas entrevistas em seu escritório no Collège de France, em Paris, nas quais relatou suas melhores memórias do Brasil entre suas populações indígenas. Autorizou também a citação livre de seu livro mémoire sobre o Brasil, Tristes Trópicos, que serviu de inspiração poética para as imagens do filme (as passagens selecionadas do livro são narradas na versão francesa do filme na voz do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière).

As entrevistas concedidas por Lévi-Strauss se concentraram praticamente em torno dos nhambiquaras, grupo que Lévi-Strauss encontrou em 1938 e com o qual ele realizaria seu trabalho de campo mais aprofundado, estendendo-se por vários meses. Destes, o período mais fértil foi passado em Utiariti, então uma mera estação telegráfica, junto ao subgrupo wakalitesu (povo do Jacaré). Entre eles, Lévi-Strauss encontrou o seu maior guia e informante: Júlio Katunkalosu. Este líder nhambiquara foi o protagonista de uma admirável passagem de Tristes Trópicos: a Lição de Escrita, em que Júlio mostra sua sagacidade ao apropriar-se da escrita da qual Lévi-Strauss fazia uso em seus diários, utilizando-a para os seus próprios fins políticos, não obstante o fato de pertencer a uma cultura exclusivamente oral.

Apesar de ter publicado uma tese sobre os nhambiquaras em 1948 e lhes ter dedicado páginas belíssimas em Tristes Trópicos, esta viagem de Lévi-Strauss à Amazônia pelos sertões mais incólumes de Mato Grosso restaria ainda muito pouco conhecida (e nunca antes filmada). Os nhambiquaras voltaram a ser estudados em profundidade somente 30 anos depois, quando sua "situação de contato" no Vale do Guaporé repetia os ciclos de epidemias, invasões e fomes que se alastraram pelos cerrados depois da passagem de Rondon. Quase 50 anos depois de Lévi-Strauss, antes mesmo de iniciar minha carreira cinematográfica, durante minha formação em antropologia e em música, e por um acaso do destino (uma vez que meu pedido de pesquisa foi indeferido por outro grupo indígena), me deparei também com os nhambiquaras. Foi meu comprometimento com essa e outras sociedades indígenas que me colocaram em contato com Lévi-Strauss. Tendo trabalhado com os grupos nhambiquaras que mais resistiram aos embates coloniais: os sararés e os wasusus, nos anos 80 e 90, acabei eventualmente visitando, a partir de 2006, os wakalitesu que o pensador belga havia estudado.

No dia seguinte ao de minha chegada entre os wakalitesu, fiquei admirado ao ser apresentado ao único filho sobrevivente de Júlio, o guia de Lévi-Strauss. Logo depois, os índios me apresentaram também a um senhor octagenário que acabou me falando, diante de minha câmera, que encontrara no passado um homem a quem chamava de "Máximo Lévi". Este homem teria vindo com uma expedição de carros de boi pela linha telegráfica e morado em Utiariti com seu grupo.

Jamais contava em achar vestígios tão concretos da passagem de Lévi-Strauss. Tito, como este ancião wakalitesu é chamado, faz na verdade uma reconstrução de seu passado por intermédio da passagem da expedição de 1938. Apenas alguns anos depois, ainda criança, Tito seria removido da área por missionários que se instalaram em Utiariti. Ele foi primeiramente levado à pequena cidade de Diamantino, depois para Cuiabá, Três Lagoas e Rio. Tito residiu 30 anos entre os "brancos" e foi também a museus, onde reviu objetos de seu povo (e é provável que ele continuou a ouvir falar no tal Lévi). "Professor Lévi" era como Lévi-Strauss foi chamado por outros membros de sua expedição de 1938; "Máximo" é certamente uma invenção de Tito, talvez uma tentativa de recapturar a importância de sua figura e quiçá a alta estatura de Lévi-Strauss (os nhambiquaras sempre naturalizam as qualidades de seus antigos chefes dizendo que eles "eram altos").

Durante a pesquisa para as filmagens, encontrei também um dos grupos tupis cujos antepassados Lévi-Strauss conheceu e fotografou: os índios akunsun, cujos últimos seis sobreviventes vivem hoje no sul de Rondônia. Sobreviventes de um massacre em 1985 (os dois homens que restam do grupo guardam ainda as cicatrizes da época em que tiveram o corpo crivado de balas). Estes índios são, seguramente, ou o grupo exato, ou um grupo vizinho e bastante próximo, dos mundés, que Lévi-Strauss visitou no Rio Pimenta Bueno em 1938, depois de sua estada entre os nhambiquaras. A semelhança fotográfica que pode ser constatada na cultura material se alastra a mais de 30 itens: de utensílios e adornos às técnicas de suas confecções, de cortes de cabelo até mesmo à maneira de sentar-se. Em Brasília, dois lingüistas ajudaram-me ainda a averiguar a proximidade lingüística entre o grupo akunsun e os mundés de Lévi-Strauss. Ana Suelly Cabral e Aryon Rodriguez constataram que o akunsun é uma língua independente da família tupi-tupari, cuja relação de palavras contém diversos cognatos com uma lista que Lévi-Strauss colheu. Esta redescoberta de um dos grupos (ou de um grupo vizinho da aldeia em que esteve Lévi-Strauss) coloca em outro plano os indígenas ditos "isolados" hoje em dia no Brasil. Se os akunsuns são os mundés, então isso nos salienta a importância da preservação desses grupos que, depois de contatos violentos com a sociedade regional brasileira, procuraram preservar-se, adentrando novamente os recônditos mais distantes de nossas florestas.

Apesar das belas páginas que Lévi-Strauss dedicou aos nhambiquaras, em Tristes Trópicos, esses índios também haviam sido esquecidos, como o são a maioria dos grupos já contatados pelas instituições brasileiras. Esta foi a principal razão pela qual Lévi-Strauss autorizou o filme: conceder aos nhambiquaras e aos outros povos indígenas uma possibilidade de retornar à atenção pública, de colocar novamente a questão indígena em pauta, mas em uma perspectiva diferente, que salienta a necessidade da preservação de suas terras e cultura. Assim, poderemos reaprender formas mais sadias e sustentáveis de vivermos sem destruir as potenciais soluções que talvez ainda possamos encontrar no maior banco genético e laboratório das relações humanas e ambientais que ainda há no mundo.

Marcelo Fortaleza Flores é antropólogo e cineasta, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da
Universidade Americana de Paris, autor do documentário Trópico da Saudade

Memória de um ambiente sombrio
Tristes Trópicos revela a consciência de quem assiste ao desaparecimento de sociedades e vê a diferença entre elas

Manuela Carneiro da Cunha

Tristes Trópicos, em papel-bíblia, abre o volume Lévi-Strauss publicado neste ano na coleção La Pléiade. Graças ao enciclopédico trabalho de Vincent Debaene, seu prefaciador, pouco resta a saber sobre o livro e a recepção que obteve. Resenhas em prestigiosas revistas do mundo inteiro devem ter esgotado o que se poderia dizer. Aqui lembremos simplesmente que o livro não é contemporâneo do período brasileiro de Lévi-Strauss: saiu em 1955, vinte anos depois da chegada do jovem então filósofo Lévi-Strauss ao porto de Santos e já em 1957 traduzido no Brasil1. Foi seu segundo livro, se excetuarmos o opúsculo Raça e História. O primeiro, publicado em 1949, o monumental Estruturas Elementares do Parentesco, havia vendido uns parcos oitocentos exemplares. Este, ao contrário, foi um retumbante sucesso. Resultado de encomenda, em um momento marcado por desapontamentos no plano acadêmico e pessoal, foi escrito em cinco meses, e com uma certa amargura. O enigmático título já estava escolhido para um romance que - felizmente, diga-se de passagem - nunca conseguiu ir além de algumas páginas. Mas por que Tristes Trópicos, quando os trópicos, por definição ensolarados nas paredes das estações de metrô, fazem sonhar os friorentos parisienses? Arrisco uma interpretação que vai além do paradoxo, explicação fácil demais: há um ambiente sombrio neste livro, que deriva sobretudo da consciência de se estar assistindo ao desaparecimento de sociedades inteiras e das diferenças entre elas.

O livro deslumbra já de saída pela sua prosa classicamente elegante que foi comparada à de Chateaubriand. É um livro de memória (e não de memórias) que, sem o citar jamais, constantemente remete a Proust. Também já se disse que usa a técnica surrealista do collage para justapor de forma sempre surpreendente fragmentos de relatos anteriormente elaborados. É um livro que inaugura um gênero próprio: o Goncourt, o maior prêmio literário francês, desculpou-se por não o atribuir a Tristes Trópicos porque as regras exigiam que se premiasse uma obra de ficção. E Lévi-Strauss, que havia aberto Tristes Trópicos com a famosa frase "odeio viagens e viajantes", previsivelmente recusou o prêmio anual de livros de viagem. É, porém, assim mesmo um livro de viagem, mas de viagem filosófica à maneira de Montaigne, o alter ego de Lévi-Strauss.

É sabido que Lévi-Strauss esteve no Brasil pela primeira vez em 1935 como parte da "missão francesa" chamada pela elite paulista em geral e por Julio de Mesquita Filho, de O Estado de S. Paulo, em particular, para a fundação da Universidade de São Paulo. Nas férias escolares de 35-36, vai conhecer os caduveo e os bororo. Já desligado da USP, que não lhe quis conceder um sabático para pesquisa, fez em 1938 sua grande expedição ao longo da linha telegráfica de Rondon, quando chegou aos nhambiquaras (nambikwara) e a outros dois grupos indígenas. Em início de 1939, volta para a França.

Menos sabido é que, dois anos mais tarde, o Ministério de Relações Exteriores de Getúlio Vargas aplicou-lhe as vergonhosas diretrizes gerais do Estado Novo, que recusavam asilo aos judeus perseguidos. Foi o programa Rockefeller de resgate de intelectuais quem lhe salvou a vida e o levou para Nova Iorque. No Brasil, o antropólogo mais importante do século 20 teria sido possivelmente diferente. Ao fim e ao cabo, talvez tenha sido uma sorte para Lévi-Strauss não ter podido se refugiar no Brasil durante a ocupação alemã na França. Mas para o Brasil certamente foi uma perda, e das maiores.

Tristes Trópicos é também em grande parte uma inspirada etnografia do Brasil dos anos 30. Qual foi o Brasil que Lévi-Strauss conheceu e descreveu? Foi, antes de mais nada, o Brasil das grandes extensões ainda não domesticadas, o Brasil das macroregiões que tanto contrasta com as microregiões do velho Mundo. Um Brasil que começava a ser "desbravado". Uma característica que surpreende neste filósofo e antropólogo é a sua atenção à paisagem e à história natural. Já interpretei o gosto que Lévi-Strauss declara pela geologia como uma metáfora para seu antiempiricismo e para sua concepção folheada da estrutura. Mas é muito mais do que isso. É literal. Como bem escreveu Anne-Christine Taylor, paradoxalmente para alguém que é considerado avesso à história, é a marca do passado no presente que Lévi-Strauss procura. O que o fascina em São Paulo é primeiro uma história que, nesses anos 30, está tão acelerada que se a pode ver e tocar. Avenidas se abrem no meio das hortas, o Pacaembu ainda é rural, o prédio Martinelli domina a paisagem, o prédio que até hoje se chama Banespa está em construção, a riqueza já saiu dos Campos Elísios e está emigrando para a avenida Paulista. E a elite antiga, francófila e sofisticada, rodeada de artistas, está assistindo ao enriquecimento dos italianos e à ascensão de uma nova elite intelectual que a Universidade de São Paulo contribui para formar. A etnografia que Lévi-Strauss propõe a seus estudantes é a própria cidade de São Paulo em transformação.

Paisagens não são simplesmente visuais em Lévi-Strauss, são multissensoriais. Cheiros, cores, impressões táteis as compõem. Quando enviou Tristes Trópicos para publicação, Lévi-Strauss expressamente mencionou que não se interessava em que reproduzissem suas fotos: como se estas fossem apenas uma dimensão secundária daquilo que descrevia mais plenamente através de outros sentidos. Quando finalmente se publicaram essas fotografias, em Saudades do Brasil e Saudades de São Paulo, descobriu-se um fotógrafo excepcional!

Nos quatro anos que passou no Brasil, Lévi-Strauss percorreu imensos territórios à procura de uma experiência direta com sociedades indígenas. Como já foi amplamente dito por Eduardo Viveiros de Castro, Fernanda Peixoto e vários outros, esses encontros foram fundamentais para a antropologia de Lévi-Strauss, e por conseguinte da antropologia tout court, mais pelas intuições que provocaram do que pela etnografia que acrescentaram: os nhambiquaras, a mais simples das sociedades que encontrou, são o esteio velado da teoria da aliança do parentesco, e os bororo, os mais complexos, da teoria do dualismo em perpétuo desequilíbrio da América indígena.

O que aconteceu nessa experiência de campo? Um filósofo pela primeira vez dialoga com sociedades indígenas de forma mais direta e, nesses encontros, a filosofia se alargou. Sustento que é como se Montaigne tivesse ido em pessoa ao Brasil; Montaigne que foi o único, diz Lévi-Strauss, que soube avaliar à sua justa medida o que significava descobrir que o Velho Mundo não estava só. O encontro de um filósofo com uma humanidade outra gerou novos modos de conhecimento: a abertura ao universo humano aporta luzes a uma filosofia ocidental que reflete sobre seu umbigo e se crê universal. Nesses encontros, a filosofia se alargou.

Resta saber por que essa foi a primeira vez que um filósofo quis se embrenhar durante meses no sertão bravio e aceitou passar pelo esforço, a fome, o cansaço e todas as dificuldades que tais viagens implicam. Esta pergunta, Lévi-Strauss também se colocou em um momento de dúvida: entre 15 e 30 de agosto de1938, é obrigado a ficar esperando em Campos Novos o resto de sua equipe enquanto os índios se furtam a qualquer pesquisa. Desencorajado e sem ter o que fazer, compõe o enredo e escreve, no estilo modernizante de Giraudoux, algumas cenas de uma peça de teatro passada na Roma dos Césares, intitulada a Apoteose de Augusto. Na peça, Cinna se reencontra com seu amigo imperador, às vésperas da apoteose que tornará o imperador divino. Enquanto Augusto se engrandecia na sua pátria, Cinna havia se exilado e conhecido outras plagas. Com que vantagem? O que havia aprendido que não poderia ter aprendido sem sair de Roma? A dúvida é transparente. Hoje, com a publicação de Lévi-Strauss na Pléiade, chegou a vez da apoteose de Cinna.

Aluna de Lévi-Strauss de 1967 a 1970, Manuela Carneiro da Cunha é professora de antropologia na Universidade de Chicago e membro da Academia Brasileira de Ciências

11 de Janeiro de 1958

Para o sr. Lévi-Strauss - e nisso ele se distingue do "explorador" - o indígena não é exótico "no espaço", mas exótico "no tempo", um tempo que, como veremos, é mais o tempo da quarta dimensão do que o intervalo cronológico que nos afasta da descoberta. Por este lado, ele se distingue, igualmente, do etnógrafo, em sua definição corrente. Assim, o "tom" do seu livro torna-se cada vez mais alto e mais grave (se posso reunir essas duas imagens contraditórias) das primeiras para as últimas páginas: mais alto nas preocupações, mais graves na seriedade dos problemas que suscita. A viagem do sr. Lévi-Strauss é, ao mesmo tempo, uma viagem para o passado e uma viagem para o futuro. Seu mundo é o mundo bergsoniano da duração ininterrupta e deslizante: se podemos, em boa lógica, imaginar um começo e um fim, essas noções se dissolvem irrecuperavelmente nas brumas do desconhecido: mesmo o presente, se não é propriamente uma ilusão, não se mostra mais apreensível do que o passado ou o futuro: "les temps juit", dizia Boileau num verso célebre, "et nous traïne avec soi: le moment où je parle est dejà loin de moi"(...). O Tempo é o valor central de Tristes Trópicos: é o valor presente em todas as páginas, em todas as linhas. É no Tempo, e não no Espaço que se escreve a história do homem: é o Tempo, igualmente, que a explica e que o explica. Ainda me referirei a algumas qualidades proustianas deste livro; mas, desde já, não deixarei de acentuar que, pela sua "atitude de espírito", Tristes Trópicos é, em grande parte, uma "procura do tempo perdido" em Etnografia.

(Trecho do texto 'Meditação sobre o Destino', primeira das três partes da apresentação escrita pelo críticoWilson Martins para 'Tristes Trópicos', publicada no 'Suplemento Literário' de O Estado de S. Paulo em 11 de janeiro de 1958)

A história de Lince, mito dos gêmeos desiguais
Num de seus mais fascinantes livros ele discute parentesco entre branco e índio

Sérgio Medeiros

Publicado na França em 1991, o livro Histoire de Lynx (História de Lince), do antropólogo Claude Lévi-Strauss, atrai inicialmente o leitor pelas páginas bem-humoradas, destacando-se o prefácio, em que o autor afirma que seus estudos sobre mitologia indígena se situam entre os contos de fadas e os romances policiais, gêneros considerados fáceis de ler. Por isso, ele se surpreende quando reclamam da complexidade de suas análises, embora admita que os quatro volumes que compõem as Mitológicas, publicados entre 1964 e 1971, possam ser difíceis. O fato é que Lévi-Strauss inventou, como os críticos reconhecem, uma nova linguagem para resumir e comparar mitos, um estilo inconfundível que começou a ser forjado nos anos 1950 e cuja verve e frescor perduram na História de Lince, um livro que retoma os anteriores, porém apostando na concisão e na simplicidade da exposição. Pode-se dizer que, nesse livro, Lévi-Strauss reviu toda sua obra e fez uma defesa contundente do método que sempre empregou para analisar os mitos. Clifford Geertz chega a dizer, num estudo sobre a originalidade do discurso antropológico, que "Lévi-Strauss não quer que o leitor olhe através de seu texto: quer que olhe para o texto", situando-o numa linhagem literária que incluiria nomes como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e em especi al Proust. Quem freqüentar as páginas dessa obra-prima que é Tristes Trópicos, publicada em 1955, não ignorará sua assombrosa dimensão literária, digna de Mallarmé, caso esse poeta simbolista tivesse vivido na América do Sul, como já se afirmou.

Quando a Europa programava as comemorações dos 500 anos da descoberta da América, Lévi-Strauss lançou História de Lince e lembrou, em suas páginas, que houve invasão e destruição, não descoberta. O prefácio bem-humorado termina lamentando a destruição dos povos indígenas e de seus valores, e anuncia um dos temas desse livro fascinante: o branco e o índio não seriam irmãos gêmeos? É possível sustentar essa hipótese?

A "descoberta" do Novo Mundo não teria agitado muito a consciência européia. Ao espanto inicial, nada espetacular, sobreveio certa indiferença, quando a cegueira voluntária do Velho Mundo se sobrepôs à evidência de que a sua "humanidade plena" não representava o gênero humano, mas uma parte dele. Para o século 16, a descoberta da América teria confirmado, muito mais do que revelado, a diversidade dos costumes, como se nada de absolutamente novo tivesse sido trazido à luz. Outra teria sido, contudo, a reação dos índios quando se depararam pela primeira vez com os europeus recém-chegados ao seu território. Essas duas atitudes opostas são discutidas pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em História de Lince, onde ele se debruça sobre o papel que os brancos exerceram no imaginário indígena, antes mesmo do efetivo desembarque dos europeus no Novo Mundo.

Para falar do nascimento dos gêmeos mitológicos, Lévi-Strauss resume as relações sexuais possíveis entre humanos e não-humanos, numa época em que as fronteiras ontológicas eram porosas e pululavam contatos inusitados no território ameríndio. Nesse sentido, além de conto de fadas e de romance policial, a análise estrutural pode incluir também a narrativa erótica, sempre atribulada e exuberante: uma mulher jovem, por exemplo, que recusou todos os pretendentes, acabou levando uma vida solitária e se resignou finalmente a desposar uma raiz, com a qual teve um filho, que cresceu ao seu lado. À medida que os diferentes mitos vão sendo apresentados, o leitor se deparará com vegetais e animais sedutores e, sobretudo, já nas páginas iniciais do livro, com o lince, um velho pouco atraente que se une a uma moça virgem. O casal vive feliz porque o lince é, na verdade, um rapaz belo e forte. Quem imagina que o príncipe encantado é tema exclusivo da literatura do Velho Mundo será surpreendido, na História de Lince, por uma galeria de heróis bem-apessoados, embora, inicialmente, todos se caracterizem pela má aparência e a idade avançada. Contudo, há sempre uma pele jovem sob a pele encarquilhada, e o feio oculta o belo. Das uniões sexuais entre esses heróis ambíguos (seres sobrenaturais) e moças cobiçadas pelos homens nascem os gêmeos ameríndios.

Na América do Sul, à época da "descoberta", os povos indígenas temiam em geral os gêmeos (estes podiam ser mortos ao vir ao mundo), embora também fossem venerados, como sucedia entre os incas. Os mitos ameríndios, contudo, parecem se comprazer em apresentar, em todos os rincões do Novo Mundo, nascimentos de gêmeos, filhos do mesmo pai ou de pais diferentes, seja porque a mãe se relacionou com dois homens ou com um homem e um animal. Segundo a tese de Lévi-Strauss, isso poderia ser explicado pelo fato de que o mundo e a sociedade estão estruturados sobre uma série de bipartições. As partes, porém, não são iguais, uma é sempre superior à outra. É o que acontece com os gêmeos míticos: eles são diferentes entre si, um agressivo, o outro pacífico; um forte, o outro fraco; um inteligente e hábil, o outro desajeitado e tonto, etc. Tampouco os seios das mulheres são gêmeos idênticos, lembram os mitos: um é distinto do outro, pois o peito das índias é assimétrico.

Entre as mais importantes polaridades míticas, Lévi-Strauss destaca a bipartição em índios e brancos. Ele constata que os brancos, logo após sua chegada, foram facilmente incorporados à gênese ameríndia, como se o lugar deles nesse relato mítico já tivesse sido previsto antes da invasão do Novo Mundo. A criação dos índios, afirma Lévi-Strauss, tornava necessário que o demiurgo também criasse os não-índios. O deus civilizador Quetzalcoatl, por exemplo, anunciou que viriam pelo mar, de onde o sol nasce, seres semelhantes a ele mesmo, cuja aparência, conforme acreditavam os índios, era a de um homem grande, branco e de barba longa. Porém, o mesmo e o outro, idealmente gêmeos, sempre se revelaram desiguais nos mitos e na realidade. Esse desequilíbrio era ainda mais forte entre brancos e índios. Ou seja, os gêmeos não são de fato gêmeos, conclui Lévi-Strauss, tudo neles contradiz essa condição. O filho do Velho Mundo e o filho do Novo Mundo entraram inevitavelmente em conflito, o que os mitos já previam. Os índios não puderam ficar indiferentes à chegada dos europeus, mas tampouco puderam reverter a seu favor a superioridade numérica. Há um pormenor inquietante nesse conto de horror e mistério, inserido em História de Lince: o incapacidade indígena de opor uma resistência eficaz ao europeu, mesmo quando 20 mil homens armados, por exemplo, se defrontaram, no Peru, com um número inexpressivo de espanhóis. Essa paralisia terá muitas explicações, inclusive a de que o intruso inicialmente foi visto, pelos incas e pelos astecas, e talvez por outros povos, como uma antiga divindade desaparecida, cujo retorno era esperado e anunciado.

É possível especular como seriam hoje as sociedades indígenas se o "reencontro" entre os gêmeos tivesse ocorrido milhares de anos atrás. Depois de percorrer os Ensaios de Montaigne, um europeu imune à cegueira voluntária que acometeu os homens do século 16, Lévi-Strauss lembra, numa nota de rodapé, que o filósofo lamentou que a conquista do Novo Mundo não tivesse se dado no tempo da Grécia ou de Roma, quando as armas respectivas seriam comparáveis e o contato não teria redundado no extermínio dos mais fracos. Esse belo mito, sonhado por Montaigne e recuperado por Lévi-Strauss, não foi ainda narrado por ninguém. Os gêmeos continuam desiguais, sobretudo nesta parte do mundo, como o demonstra a História de Lince.

Sérgio Medeiros traduziu o poema maia Popol Vuh (Iluminuras, 2007), com a colaboração do americanista Gordon Brotherston, e publicou, entre outros, três livros de poesia. Ensina literatura na UFSC

Obras Fundamentais

Tristes Trópicos: Mais que um livro de viagem, é um clássico da etnologia (1955). Além de trazer detalhes pitorescos das sociedades indígenas do Brasil, o livro discute as relações entre Velho e Novo Mundo e o significado da civilização e do progresso. Lévi-Strauss desloca parâmetros consagrados e questiona viajantes e cientistas. O mundo dos cadiuéus, bororos, nhambiquaras e dos tupi-cavaíbas revelam seus próprios estilos e linguagens.

Antropologia estrutural: Publicada em 1958, a obra reúne artigos que propõem um empréstimo das teorias estruturalistas de Roman Jakobson, lingüista que Lévi-Strauss conheceu nos EUA, para renovar o método antropológico. Ela se divide em cinco partes: Linguagem e parentesco; Organização social; Magia e religião; Arte; e Problemas de método e de ensino. A obra será lançada pela Cosac Naify no dia 11.

O suplício do papai noel: A Cosac Naify lança, também no dia 11, O Suplício do Papai Noel, ensaio de 1952. Lévi-Strauss parte da queima de um boneco de Papai Noel em Dijon, França, em 1951, para analisar, por meio da antropologia estrutural, o significado das festas de fim de ano, a comercialização das datas tradicionais e a influência norte-americana nesse processo.

Mitológicas: Composta por quatro obras - O Cru e o Cozido (1964), Do Mel às Cinzas (1967), A Origem dos Modos à Mesa (1968) e O Homem Nu (1971) - a série analisa 813 mitos de diferentes povos indígenas do continente americano.

De perto e de longe: Em entrevista para o filósofo Didier Eribon em 1988, o antropólogo faz um balanço sobre sua história pessoal, formação intelectual e conceitos-chave de sua teoria.

História de Lince: Segundo Lévi-Strauss, essa obra (1991) é a última incursão pela mitologia americana. Questões presentes em sua produção de mitólogo são retomadas e esclarecidas.

Saudades do Brasil: Obra de 1994 reúne fotografias feitas entre 1935 e 1939. Lévi-Strauss se deu conta de que poderia descrevê-las, localizando-as no tempo e no espaço, com auxílio da memória afetiva. Saudades de São Paulo, de 1996, também tem um depoimento em que se revisitam imagens de uma cidade onde o gado convivia com carros e bondes.

Olhar, Escutar, Ler: De 1993, é escrita em tom de conversa, inteiramente dedicada à arte.

O pensamento selvagem: No livro, de 1962, ele focaliza um traço universal do espírito humano - o pensamento selvagem que se desenvolve tanto no homem antigo como no contemporâneo.

Obra continua a produzir modelos
Lévi-Strauss é representante maior de geração marcada pela sensação de desencanto e pela crítica aos modelos históricos

Lilia Moritz Schwarcz

Nos anos 1950 e 60 o estruturalismo invadiu o território francês como voga impiedosa. O modelo representava não só uma nova maneira de se acercar da teoria - mais atenta às reiterações do que às mudanças -, como conferia renovada importância ao estatuto do simbólico. A escola anunciava o fim do sujeito, a recusa de uma história voluntarista e o fim do primado da razão ocidental. Atingia, assim, o existencialismo de Sartre, até porque o impacto da descoberta de novos povos e filosofias prometia a morte do indivíduo como categoria universal.

O próprio período andava marcado pela sensação de desencanto. E toda geração fazia a crítica à nossa história, por oposição a outras formas de historicidades. Na linha de frente estavam novos líderes intelectuais que partiam - cada um à sua maneira - de diversas áreas disciplinares: a psicanálise de Jacques Lacan, a teoria literária de Ronald Barthes, a filosofia de Michel Foucault e a etnologia de Claude Lévi-Strauss. Esses eram "os quatro mosqueteiros estruturalistas" das charges de época, a quem se juntaria ainda outro: Louis Althusser. Deles todos, apenas Lévi-Strauss está - bem - vivo, e sua importância se expressa numa obra seminal, que continua a produzir teorias e modelos.

É por conta dessa capacidade de criar oportunidades interpretativas que Lévi-Strauss foi eleito o maior intelectual francês em vida. Afinal, esboça-se a partir dos livros do etnólogo uma teoria geral da cultura, onde entravam em questão o lugar, o estatuto e o papel do simbolismo na vida social. É fato que uma primeira articulação teórica entre simbolismo e estrutura social já havia sido proposta pelo sociólogo E. Durkheim, no fim do século 19, sobretudo a partir da análise do fenômeno religioso. Nos ensaios do sociólogo ficava evidente como a religião não só refletia aspectos da sociedade, como produzia uma representação de ordem mais geral. O suposto era que a vida social seria feita essencialmente de representações coletivas, e que o social surgia sempre permeado pelo simbolismo. Também Marcel Mauss em seu Ensaio Sobre a Dádiva mostrava como o mundo social impunha-se a partir de regras de reciprocidade: dar é receber, mas também retribuir. Aí estariam categorias de entendimento que se exprimiriam privilegiadamente no plano simbólico da cultura.

Mas se foi Durkheim quem mostrou a "eficácia social das formas simbólicas", coube a Lévi-Strauss explorar "a eficácia simbólica na vida social". Nos sistemas totêmicos, no universo da mitologia, nas práticas xamânicas, expressava-se um universo amplo de formas estruturais. Em seu esforço para compreender o mundo, o homem disporia de um excedente de significação e o projeto estrutural implicaria articular esse universo de possibilidades simbólicas. É por isso que o mundo do simbolismo é sempre diverso em seu conteúdo, mas limitado por suas leis: existem muitas línguas, mas são muito poucas as leis fonológicas a classificá-las. Da mesma maneira, se uma antologia de mitos conformaria uma coletânea de vários volumes, esses poderiam ser reduzidos a pequeno número de títulos, se o critério a organizá-los fossem as reduzidas leis estruturais.

A inspiração viria da lingüística de Saussure e de Roman Jakobson, que nos anos 1940 anunciaram novos procedimentos formais e teóricos. Segundo a lingüística estrutural, um signo só teria sentido a partir da relação que apresentaria com os demais elementos da estrutura, e em conjunto. O método preconizado era agora sincrônico, uma vez que as estruturas pré-existiriam aos usos que delas poderiam ser feitos. Por fim, as estruturas constituiriam fenômenos sociais que se afirmariam à revelia do próprio sujeito. Aí estaria a noção de inconsciente estrutural presente na obra de Lévi-Strauss; a idéia de "estrutura narrativa profunda" de Greimas; a "epistéme" em Foucault. Os mitos falam entre si, afirmaria Lévi-Strauss anos mais tarde, levando seu leitor a pensar em estruturas anteriores, que se articulam para além do voluntarismo do próprio indivíduo.

A produção de Lévi-Strauss é gigantesca em sua abrangência e percorre diferentes domínios - o simbolismo, o parentesco, o totemismo, as classificações. É, portanto, melhor homenagear a obra "em seu conjunto", para ficarmos com os termos de Deleuze. Nesse caso, o mais fundamental talvez seja tomar a antropologia que faz Lévi-Strauss, no sentido estrito do termo, e afirmar que é com Lévi-Strauss que se inaugura um verdadeiro diálogo com o pensamento primitivo. Aí está uma "ciência do observado", em que o objeto e sujeito da representação estão definitivamente em questão e embaralhados. Não à toa a obra do etnólogo logo se afirmou como um "novo humanismo"; uma boa janela para entender a alteridade entre povos e culturas. Objeto e sujeito da representação, eis a especificidade das ciências humanas e da antropologia de Lévi-Strauss. A disciplina possibilitaria prever um processo ilimitado de objetivações e de subjetivações do sujeito, e explorar como as sociedades que existem ou existiram na superfície da terra são humanas, e nessa qualidade nós dela participamos de maneira igualmente subjetiva.

Mas é preciso reconhecer que o etnólogo criou um linguajar e uma teoria que não são óbvias ou fáceis de compreender. Conhecido por sua verve afiada, certa vez Lévi-Strauss se contrapôs à explicação totêmica do antropólogo Bronislaw Malinowski. Diferente do colega, que justificou a importância dos totens animais a partir da sua capacidade alimentar, o etnólogo belga, em O Pensamento Selvagem, declinou: "Os totens são melhores para pensar do que para comer." Fazendo um paralelo desavisado, pode-se dizer que também o pensamento do etnólogo francês "é melhor para fazer pensar do que para digerir". O estruturalismo de Lévi-Strauss se parece com a estrutura mítica proposta pelo autor; ou seja, um mito continua a ser acionado enquanto a contradição que o criou se mantiver presente. De maneira semelhante, a obra desse intelectual francês, longe de ver suas potencialidades analíticas esgotadas, continua produzindo uma enormidade de versões.

E dizer que o grande mentor de tal perspectiva sempre desfez da abrangência do movimento que lidera há mais de 50 anos. Lévi-Strauss nunca se cansou de desdenhar do estruturalismo, comentando que essa era "uma moda francesa que se renovava de cinco em cinco anos". A essas alturas já vão muitos cincos...

Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, é autora de O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay

O soldado sociólogo da Missão Francesa no Brasil
Autor viajou com intelectuais que criariam a Facudade de Filosofia, Ciências e Letras

Walnice Nogueira Galvão

Ao chegar ao Brasil como integrante do grupo europeu incumbido de fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mal sabia Claude Lévi-Strauss que sua biografia ficaria inextricavelmente ligada a nosso país. Simultaneamente, fundava-se a Universidade de São Paulo, congregando instituições de ensino superior até então avulsas.

O objetivo era criar um centro teórico, de estudos de ciência pura e não aplicada. Já tínhamos Faculdades de Medicina, de Direito, a Politécnica, e outras, que davam formação profissional e portanto cuidavam da aplicação dos saberes. Faltava-nos uma que ensinasse filosofia, sociologia, zoologia, botânica, genética, física, química, astronomia, sem adjetivos, dedicando-se portanto à pesquisa, sem se atrelar aos interesses de qualquer profissão. Para estes casos já havia, por exemplo, filosofia e sociologia do Direito, química para a Medicina, etc. E esta seria a Faculdade de Filosofia.

Os mestres europeus que acorreram trazendo suas contribuições se distribuíam assim: os franceses para as humanidades, os italianos para as ciências físicas e as matemáticas, os alemães para as ciências naturais. Num momento em que a perseguição se intensificava na Europa, vieram muitos judeus entre os italianos e alemães; entre os franceses, só Lévi-Strauss.

Em atenção ao cunho inovador da escola, não seriam contratados professores aqui, mas apenas na Europa. E, além disso, exigia-se que fossem muito jovens, esperando-se que estivessem enfronhados nas últimas novidades do saber. Por isso, escolheu-se quem ainda não tinha nenhum título, sendo apenas "agrégé", ou seja, professor no secundário. Foi assim que Lévi-Strauss, que contava 27 anos e ainda era autor inédito, veio dar com os costados nestas plagas, para ocupar a cadeira de sociologia. Permaneceu por três anos, nos termos de seu contrato, e nunca mais voltou. Convidado pela USP para participar da celebração do jubileu de meio século da Faculdade de Filosofia nos anos 80, declinou do convite. Mas retornaria uma única vez em 1985, na comitiva da visita oficial do presidente François Mitterrand.

Quando saiu Saudades de São Paulo (1996), com as fotos que o próprio Lévi-Strauss clicou na década de 30, Decio de Almeida Prado, que seria por 10 anos diretor do renomado Suplemento Literário deste jornal, escreveu Saudades de Lévi-Strauss, raro e precioso depoimento de ex-aluno. O depoimento seria depois recolhido em seu livro Seres, Coisas, Lugares (1997), com título e epígrafe que tomou emprestados do mestre. Ali figuram suas reminiscências do professor e da experiência memorável de ser aluno dele nessa faculdade, naquela época. Quando examinamos o catálogo de prenomes dos estudantes em Tristes Trópicos, todos futuramente intelectuais conhecidos, encontramos entre eles o de Decio.

Dos membros da Missão Francesa, alguns se foram rapidamente, alguns permaneceram mais tempo. O historiador Fernand Braudel é outro que também ficou pouco. Já o geógrafo Pierre Mombeig, o filósofo Jean Maugüé, Paul Arbousse-Bastide, da cadeira de política, e o sociólogo Roger Bastide (não eram parentes) por aqui se demoraram. Este último ficou no Brasil por 16 anos, intervindo intensamente no panorama cultural. Retornado, Lévi-Strauss logo deixaria a França, porque, ao estourar a Segunda Guerra Mundial, se refugiou nos Estados Unidos, onde residiria até o armistício, só então regressando a seu país.

Entretanto, Lévi-Strauss, como ninguém ignora, viria a tornar-se um dos grandes intelectuais do século 20. Quando ocorreu a "revolução estruturalista" dos anos 60, foi ele a cabeça principal e a inspiração para outros, como Roland Barthes, Lacan, Vernant. E as implicações de sua obra para toda a humanidade e para a civilização, tema que sempre o interessou, são de alcance universal. A partir daí, teria ampla e tardia influência no Brasil, mas isso porque o estruturalismo, a contragosto de seu inventor e a curto prazo, se tornou moda.

Tanto Lévi-Strauss quanto Roger Bastide hauriram a matéria-prima de suas obras no Brasil, que lhes facultou o contato com outras etnias, índios para o primeiro, negros para o segundo. Ambos se debruçariam sobre nossa própria produção em etnologia e antropologia, fartamente citada em seus livros, que bem souberam aproveitar.

E nunca é demais realçar a ousadia intelectual de Lévi-Strauss, ao tratar os mitos indígenas com os mesmos instrumentos de análise - e dando-lhes a mesma dignidade - que mobilizou para analisar o mito de Édipo em Antropologia Estrutural. Foi um ovo de Colombo: ninguém antes sonhara que tal procedimento fosse possível.

Walnice Nogueira Galvão é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autora, entre outros, de As Musas sob Assédio

Intersecções entre sujeito e história
Estruturalistas, Lévi-Strauss à frente, provocaram polêmica em época dominada pelos seguidores de Marx, Freud e Sartre

Leda Tenório da Motta

As estruturas não saem às ruas, denunciavam os estudantes do maio de 1968, insinuando distância indolor da realidade pela qual se pautavam, segundo eles, Lévi-Strauss e seus companheiros. Foi em meio a esse clima de denúncia que Roland Barthes, um dos companheiros em questão, deixou a França, em 1969. E foi dentro desse mesmo contexto que, pouco depois da partida de Barthes, Jacques Lacan recebeu vaias em Vincennes, quando de uma visita ao campus que ficou famosa, não apenas porque o inconsciente foi aí recusado pela gauche, mas porque, para impor respeito, o psicanalista que, junto com Lévi-Strauss, redefiniu a proibição do incesto como um operador simbólico, contra a idéia de que seria um evento de fato ocorrido na horda primitiva, teve que lembrar aos alunos sublevados que havia, um dia, pertencido aos quadros do movimento surrealista, e não era tão reacionário assim.

Que tão brilhante escola de pensadores tenha despertado tão viva oposição da parte de tão bela revolta juvenil não deixa de ser indicativo do quanto a palavra "estrutura", de par com a palavra "signo", podia ser incômoda, nesses tempos em que ainda imperava a palavra "homem". E não apenas para os leitores de Marx, Adorno e Guy Débord, que reclamavam da ausência da vida real nos domínios estruturalistas, entendendo por vida real as condições materiais de existência nas sociedades capitalistas. Mas também para todos aqueles que, somente interessados na psicologia profunda, acusavam uma falta de reconhecimento da dimensão da subjetividade no método straussiano. Ou melhor dizendo saussuriano-straussiano, já que, tendo Lévi-Strauss à frente, toda essa elite universitária se assumia devedora da lingüística de Saussure, com sua demonstração de que a "langue" é uma bateria combinatória, de elementos diferenciais de tal modo organizado que cada um só tem valor por oposição ao outro, o sentido nada mais sendo, assim, que um efeito dessas tensões.

Aos politizados e aos despolitizados, a assim chamada vida real proporcionaria um acontecimento tão trágico quanto espetacular, que, aparentemente, vinha dar razão a todo mundo. Esse acontecimento foi o break down nervoso de Louis Althusser, um representante do método no campo da filosofia política, que havia revolucionado a leitura de O Capital com uma obra que se tornara uma bíblia das novas esquerdas: Pour Marx. Em 1980, num surto, Althusser estrangulou a própria mulher, sendo recolhido a um asilo psiquiátrico, depois de considerado inimputável. O que, de imediato, foi tomado como um alerta no sentido de que os valores do humanismo não podiam ser derrubados pelas categorias gramaticais. Era a tragédia pessoal que, cobrando o seu preço, se infiltrava no seio da impessoalidade, e ela foi recebida pelos adversários dos formalistas nestes termos cruéis: quem não reconhece o processo do sujeito pode terminar como o sujeito de um processo.

Se os processos do sujeito não desdouram minimamente essa intelectualidade que, jogando com signos, fez uma revolução de 360 graus na história das idéias, o fato é que tornam particularmente comovente uma espécie de retrato de grupo da nata da plataforma, feita a crayon por Roland Barthes, já em sua fase heterodoxa. Trata-se, muito provavelmente, do único documento a registrar, um ao lado do outro, as figuras de Barthes, Lévi-Strauss, Lacan e Michel Foucault. Relativamente conhecido dos estudiosos, esse inesperado portrait geracional é incluído, em 1975, entre as muitas fotografias familiares e confidências que o semiólogo-desenhista inseriu em seu Roland Barthes por Roland Barthes.

Nessa charge, todo o quartel-general do estruturalismo foi posto numa roda, para conversar. Despidas de sua urbanidade acadêmica e de suas insígnias professorais, todas as personagens estão sentadas, de pernas cruzadas, como se fossem índios, e trajando tanga. Logo abaixo da imagem, uma legenda explica: "a moda estruturalista". De fato, nada melhor para ilustrar a estrutura que as duas oposições máximas com que o desenhista brinca, e que sempre atraíram Lévi-Strauss: o nu e o vestido, o primitivo e o civilizado.

Duas coisas nos tocam nessa brincadeira de Barthes, que é também uma espécie de vôo metalingüístico de alguém da tribo sobre a própria tribo. A primeira é que, não muito tempo depois da saída do livro em que o desenho aparece, quase todos os retratados já estariam mortos, de forma precoce, quando não violenta, ou estariam perdidos em suas iluminações alquímicas, como dirá de Lacan sua biógrafa, Elisabeth Roudinesco. Todos menos um: o mais longevo, este que chega agora aos 100 anos. A segunda coisa tocante é que, embora se saiba que Barthes, irrequieto como era, é o primeiro dos pós-estruturalistas, não se trata de moda. Nem é possível pensar que o autor de Sur Racine não tenha levado a sério a proposta de mudar a crítica literária com os aportes das lingüísticas, das semióticas e das semiologias. Já que ele responde, nessa frente, por uma virada célebre, a troca dos enquadramentos sócio-históricos das obras pela leitura de suas molas discursivas, ou de uma crítica ideológica por uma crítica interpretativa, para lembrar suas palavras mesmas. É bem isso que abespinha os donos de Racine reunidos na Sorbonne, o fato de que o novo crítico ousa lançar, de sua École des Hautes Études, uma interpretação do maior trágico francês do período clássico que desconsidera o século do autor, e nesse sentido qualquer dimensão cronológica, para visar, também no melhor estilo antropológico, não o tempo, o operador da História, mas o espaço, o operador de Lévi-Strauss. Que é o que faz, escandalosamente, Sur Racine, onde se investiga o locus racinianus e se atrela a contradição trágica à tensão entre os lugares de que falam as personagens: a câmara, a antecâmara, o palácio real, o exterior do palácio, o dentro e o fora.

Trata-se, isto sim, de uma poderosa corrente de força que, em plena vigência da autoridade de Marx, Freud e Sartre, vai interceptar as filosofias da história e do sujeito, permitindo-se ficar fora destas referências, e dentro de uma paixão pela linguagem jamais vista, antes, longe dos laboratórios das artes. O que explica, de resto, que - Lévi-Strauss à frente -, todos os estruturalistas tenham se interessado tanto por artes - e que a escola das estruturas seja, ainda por cima, um poderoso ateliê de críticos de arte. Além de ser um dos mais importantes pensadores do século passado, este que agora homenageamos é também um perfeito comentador de Proust e dos pintores cubistas, em seu Olhar, Escutar, Ler. E um intérprete inaudito de Baudelaire, que pega o poeta pela palavra, em sua célebre análise do poema Les Chats, feita a duas mãos com o lingüista Roman Jakobson. Aí, sem temer tratar o texto baudelairiano como um objeto, ambos realizam uma exemplar escanção morfossintática - que tipo de verbos? que substantivos? que conectores? - e é dessa peritagem que sai, no final, a revelação do sentido profundo.

Desde 1962, quando esse modelo de leitura poética chegou aos departamentos de Letras de todo o mundo, nunca mais a análise de texto foi a mesma, nunca mais ousamos atribuir qualquer significação a qualquer peça literária, mesmo em prosa, sem antes tomar o cuidado de verificar com quê materiais era feita. É bem verdade que, a partir de determinado momento, mais para o final do século, também aprendemos a suspeitar de que a escola das estruturas impunha uma estabilização do sentido - e encerrava assim uma última armadilha dogmática, a ser desconstruída. Nem por isso esqueceremos que os estruturalistas nos ensinaram a ler o grande livro do mundo! Que bom que os signos ainda têm Lévi-Strauss!

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP

A ciência guiada pela música e pintura
Pensador encontrou em Wagner e Max Ernst um caminho para pensar o mito

Mariza Werneck

Claude Lévi-Strauss dedicou 20 anos de sua centenária vida ao estudo de mitos ameríndios, cujo resultado se encontra em sua obra maior, as Mitológicas, um dos maiores inventários de mitos da contemporaneidade. Durante esse período, descreve-se como um monge, levantando-se ao nascer do dia, ainda não totalmente desperto, impregnado de mitos, vivendo uma experiência estética extraordinária. Sem compreender, convivia com determinado mito por semanas ou meses, até que o detalhe inexplicável de outro mito se reconhecia no primeiro, e os dois se iluminavam, plenos de sentido.

Praticava o método há algum tempo quando se deu conta de que seus princípios já estavam em Wagner, a quem passou a reverenciar como pai da análise estrutural do mito. A presença da música wagneriana em sua vida pode ser localizada desde a infância. Descendente de músicos e pintores, conviveu precocemente com a paixão pela ópera. Segundo afirma, os mistérios da criação musical sempre o intrigaram, na medida em que se anunciam de forma epifânica, quase como uma revelação. Sentindo-se incapaz de criar música, o que lhe resta é imitá-la na análise estrutural dos mitos. Adota como modelo O Anel do Nibelungo, quatro dramas musicais de Wagner, que se desdobram e prosseguem uns nos outros. Essa mesma inspiração vai guiar Marcel Proust em sua busca do tempo perdido, Honoré de Balzac na construção da comédia humana e Stéphane Mallarmé no projeto de um livro infinito.

Tão trágico quanto a ópera wagneriana, o mito levistraussiano dramatiza a criação do mundo, o desejo do incesto, o mal-estar na cultura. Busca a resolução de enigmas, consulta oráculos, perscruta a vida e a morte. Lévi-Strauss habita ainda o coração da tragédia quando, pela dissolução de si mesmo no mito e na música, preserva o espírito dionisíaco tal e qual foi definido por Nietzsche, ou seja, "uma realidade cheia de embriaguez, que não se preocupa com o indivíduo, pretende até a aniquilação do indivíduo e sua dissolução libertadora por um sentimento de identificação mística". Ao construir um intrincado sistema de correspondências entre os mitos, Lévi-Strauss reivindica, como procedimento metodológico, o desaparecimento do autor durante o exercício da análise, condição essencial para atingir regiões profundas do inconsciente, "onde os mitos falam entre si, à revelia dos homens".

Mas não se enganem aqueles que, ludibriados pela forma singular de Lévi-Strauss acercar-se dos mitos, buscam nas Mitológicas estados alterados de consciência ou fragmentos perdidos de uma experiência extática. É preciso lembrar com Nietzsche que os gregos, justamente por serem dionisíacos se tornaram apolíneos. A arquitetura interna das Mitológicas obedece a um rigor metodológico dificilmente encontrado na história do pensamento. Para citar apenas um de seus comentadores, Octavio Paz, por diversas vezes, debruçou-se sobre os mitos levistraussianos, e desistiu, "chocado com o caráter técnico da obra". Mas insistiu, penetrando em um "labirinto penoso, mas fascinante".

A ciência de Lévi-Strauss, se é densa de musicalidade é também plástica, imagética. Assim como imitam a música wagneriana, seus mitos mimetizam os quadros, retratos e paisagens que o habitam desde a infância, vivida em casa de pai e tios pintores, e na freqüentação das telas de Poussin, Ingres, Chardin, das estampas japonesas e, mais tarde, da arte surrealista. Para decifrar seus textos é preciso antes percorrer uma pequena galeria de arte, um recinto de imagens onde elabora seu pensamento.

Curiosamente, no entanto, e logo na introdução de O Cru e o Cozido, primeiro volume das Mitológicas, Lévi-Strauss, ao reivindicar a música como método privilegiado de análise, renega a pintura como instrumento para pensar o mito. Só mais tarde, após a publicação do último volume da obra, passa a registrar sua dívida com as colagens de Max Ernst, com quem conviveu no exílio em NY, na 2ª Guerra.

Desse encontro nasceu uma amizade duradoura marcada por profundas afinidades. Lévi-Strauss e Ernst partilhavam do mesmo fascínio pela arte primitiva, pela floresta, pelos pássaros e objetos. Foi o pintor quem o introduziu nos mistérios de um verso de Lautréamont ao qual Lévi-Strauss presta tributo em seu livro O Olhar Distanciado: "Belo como, sobre uma mesa de dissecação, o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura."

Este verso, que se transformou em princípio fundamental da estética surrealista, deve sua celebridade, entre outros, ao fato de reunir três objetos de ordens completamente diversas. A partir dele, o autor das Mitológicas vai criar imagens igualmente perturbadoras, guiado apenas pelas leis secretas do acaso, juntando fragmentos de mitos que não possuem na aparência qualquer afinidade. Para Lévi-Strauss, esses encontros só podem ser considerados fortuitos à luz da experiência vulgar. A aproximação insólita desses objetos, "metáforas invertidas uns dos outros", representa um convite para decifrar suas íntimas correspondências e sua recíproca estranheza.

O método da colagem inspirado em Ernst vai ser reconhecido por Lévi-Strauss como a própria essência do procedimento estruturalista. Muito mais do que uma técnica, que recorta e reelabora fragmentos em um novo conjunto, é também um método de pensar e uma forma de percepção do mundo. Permanentemente recortados e organizados em uma nova ordem, os mitos de Lévi-Strauss propõem um desafio à inteligência e à sensibilidade, na medida em que jamais adquirem uma forma definitiva: de cada mito sempre poderá surgir outro.

Nesse sentido, a aventura intelectual que ganhou, no início da segunda metade do século 20, o nome de estruturalismo ultrapassa, em muito, a perspectiva de um simples modismo. Percorrer, junto com Lévi-Strauss "a terra oca e redonda dos mitos" implica aceitar o convite de uma reelaboração permanente do imaginário e os limites de uma interpretação que permanecerá para sempre inconclusa.

Mariza Werneck é professora de antropologia e estética na PUC-SP, realizou doutorado sobre mitos e experiência estética em Claude Lévi-Strauss

A militância qualificada em defesa do ambiente e de raças
Pioneirismo se manifesta na luta em favor da natureza e contra o racismo

Mauro Leonel

"Antes de se pensar em defender a natureza para o homem, deve-se pensar em protegê-la do homem", disse Lévi-Strauss em 76 à Assembléia da França. É interessante que tenha defendido uma explicação da liberdade fundada no homem "ser vivo" e não no "ser moral". "Os direitos dos humanos cessam no momento em que seu exercício põe em risco a existência de outra espécie", declarou ainda na Conferência de Estocolmo, Clube de Roma, Relatório Bruntland, anteriores à Eco-92, na dianteira do ambientalismo.

É sobre os limites à satisfação das necessidades dos homens que adverte: "Não deveriam ir até a extinção da espécie a que pertencem." E pergunta: "Como conceber um fundamento das liberdades tão forte quanto evidente?" O pensador vai encontrá-lo no direito à vida. "O desaparecimento de uma espécie cria um vazio irreparável na escala do sistema da criação." Pioneiro da sociobiodiversidade, para ele existe "um direito do meio ambiente sobre o homem - e não um direito do homem sobre o meio ambiente".

Os direitos dos seres vivos à liberdade não são fundados em racionalidades universais. Diferença e pluricidade não são abstrações, mas modo de ser, no qual a liberdade desabrocha e cresce. Não liberdades de conteúdos positivos impostos em sociedades incapazes de engendrá-los; liberdades vivas, "heranças, hábitos, crenças, preexistentes às leis e que estas têm por missão proteger". De jovem socialista, Lévi-Strauss se transforma em humanista justo, pacifista, fundado na diversidade biológica e cultural dos humanos.

Durante seu longo aprendizado, milita na revisão do pensar as relações sociais, nos anos 20-30, no Instituto Internacional de Cooperação Intelectual. E nos 50, inicia parcerias nas formulações raciais da Unesco, na comissão de especialistas e como seu secretário-geral de 52 a 61. Com Raça e História, abre em 71 o Ano Internacional da Luta contra o Racismo, "pá de cal" nos preconceitos, sendo o racismo não um excesso nazista, mas uma trama mal escondida no tecido social. A 20ª sessão da Unesco (78) aprova a declaração sobre raça e preconceitos. Em 2005, Lévi-Strauss é a personalidade do 60 aniversário da Unesco, por seus 50 anos de cooperação militante.

Retirou a legitimidade dos argumentos racistas da diversidade biológica e demonstrou que "cada ser humano é uma parcela da humanidade". Só a difusão de saberes não garante o fim da intolerância. O intelectual adverte quanto à saturação demográfica, competição por recursos, como estímulos ao racismo. Abre este rico universo com sua curta visita aos Tristes Trópicos, entre os nambiquaras, cadiuéus, pela pesquisa empírica.

Dizendo-se sem nenhum gosto pela antropologia aplicada, reconhece que essa ciência dispõe de imenso aparelho teórico e prático. E aprende com Marx, no tributo aos inspetores de fábrica ingleses "experimentados, imparciais, rigorosos e desinteressados". Marx vai longe: "Perseu cobria-se de uma nuvem para perseguir os monstros; nós, para podermos negar a existência das monstruosidades, mergulhamos inteiramente na nuvem, até os olhos e os ouvidos."

Surpreende-se com as sociedades de floresta, segundo ele "concebidas para excluir o emprego desse motor da vida coletiva, que utiliza a separação entre poder e oposição, maioria e minoria, exploradores e explorados". Para Lévi-Strauss, elas desafiam o progresso, paradigmas paradisíacos, socialismo mítico, capitalismo "humanizado", degraus garantidos por leis mágicas. Progresso e escravidão vão juntos, eis o espanto diante das sociedades com todas "as condições de humanidade", recusando a submissão.

Desafiam a modernidade, sua "superioridade": desigualdade, risco ambiental, demografia/recursos escassos; sociedades/naturezas; conglomerações; divisão do trabalho. O excesso dessas sociedades foi suplantado pelas guerras de extermínio e Hiroshima. Apenas são diferentes, o ideal seria o encontro de características das duas sociedades "quentes" e "frias". O "progresso" é desarmonia, mercado/estoque fundam conflitos, carestia e desperdício. Situa na revolução neolítica, "nos grandes Estados-cidades da região mediterrânea e do Extremo Oriente" - na escravidão - "construindo um tipo de sociedade em que a separação diferencial entre os homens - alguns dominantes, outros dominados - pode ser utilizada para produzir cultura, com um ritmo até então inconcebível e insuspeitado".

Mauro Leonel é professor assistente, livre-docente, Sociedade/Ambiente/Cidadania - Each/ Prolam USP. Pós-graduação em Integração latino-americana

OESP, 23/11/2008, Caderno 2, p. D1, D4-D11, D16

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