VOLTAR

Levando agua para quem tem sede

JB, Caderno B, p.B6-B7
Autor: GOMES, Ciro
06 de Nov de 2005

Levando água para quem tem sede
Entrevista: Ciro Gomes
As CPIs continuam atraindo a atenção de todo mundo e parecem ser a única coisa acontecendo no país. Realmente, os escândalos estão atormentando a nação, mas existem outros problemas da maior seriedade e que afetam diretamente a vida de milhões de brasileiros. Um deles é a natureza estar com febre e nos passar sustos como esse da seca na Amazônia. O Brasil tem a sorte de não conhecer fenômenos com a extensão dos furacões ou dos terremotos, mas a seca do Nordeste é uma tragédia equivalente ou maior do que aqueles. Um tsunami ou um terremoto não pode ser controlado, mas a seca pode ser combatida com vontade política. Taí o exemplo de Israel, um país pequeno no meio do deserto que vende frutas para toda a Europa. Fico abismado então com a pouca importância que a imprensa está dando ao projeto de transposição do Rio São Francisco. Estou preocupadíssimo com isso e quero ter todos os esclarecimentos possíveis a respeito. Por isso marquei esta entrevista com o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes – que, nesta terça e quarta-feira, debaterá o assunto num encontro na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O São Francisco é o assunto mais importante do Brasil neste momento! (Ziraldo)

Ziraldo - Por que D. Luiz Caprio tem tanta certeza de que o projeto de transposição do São Francisco está errado, chegando a fazer uma greve de fome?
Ciro Gomes - Eu creio na sua boa fé e na sua boa intenção. Um bispo da Igreja católica, com seu testemunho de vida, estar mentindo ou sendo desonesto me deixaria em pânico. Pelo pouco que sei dele - pois nunca me distinguiu com a oportunidade de conversarmos, apesar de meus insistentes pedidos -, percebo que lhe foi dada uma versão falsa do projeto. Ele diz: ''Isto é um projeto para beneficiar grandes interesses. Setenta por cento da água será para grandes empresários''. Não tem nenhum ponto do projeto onde isso esteja escrito. O projeto prevê o abastecimento de água para 12 milhões de pessoas. Outro argumento de Dom Caprio seria que as obras beneficiariam os especuladores de terra, que a essa altura já estariam comprando as áreas a serem valorizadas. Há um ano e oito meses, quando recebi a geodésica dos canais, propus, em segredo, um decreto radical de declaração de utilidade pública para fins de desapropriação de 100% de uma faixa de cinco quilômetros por onde passariam os canais. Foi publicado no Diário Oficial sem que nenhum especulador soubesse e essas terras estão congeladas. São 350 mil hectares.
Ziraldo - Se você se encontrasse com o padre, o que diria a ele?
Ciro - Primeiro, tentaria demonstrar a necessidade do projeto, depois a sustentabilidade que o Rio São Francisco possui como resposta para essa necessidade. Terceiro, lhe mostraria os argumentos econômicos e ambientais para a questão da revitalização da Bacia do São Francisco. Bom, vamos primeiro à necessidade do projeto. Qualquer brasileiro que não tenha posto uma pedra no lugar do coração verá que é óbvio que falta água no Nordeste. Governei o Ceará durante um período de seca de três anos, em que a cidade de Fortaleza entrou em colapso. A quinta maior cidade do Brasil ficou totalmente sem água! Não é maneira de dizer, acabou a água mesmo, passamos um ano com racionamento de quatro dias com água e três sem, outro ano com três dias com água e quatro sem, e no terceiro ano todos os dias sem água! A cidade entrou em colapso na minha mão! Em 2003 foi em Campina Grande. Dizem que fico passional, mas não esperava que viessem argumentar quanto a essa necessidade.
Arthur Poerner - A transposição resolveria esse problema?
Ciro - As duas pontas dos eixos são justamente Fortaleza e Campina Grande, beneficiando tudo o mais que estiver no miolo entre as duas cidades. Diz a ONU que o mínimo de água disponível por habitante deve ser 1.500 metros cúbicos por ano. Abaixo disso a vida passa a ser crescentemente insustentável. No Nordeste Setentrional a disponibilidade média é 450 metros cúbicos ao ano por habitante: menos de um terço. Aí um professor no Rio Grande do Norte diz que o Nordeste tem água demais, que são 37 bilhões de metros cúbicos, e que divididos pela população dá mais do que o mínimo prescrito pela ONU. Esses dados são os da capacidade de reservação do Nordeste. A caixa d'água do prédio do Ziraldo tem capacidade para 40 mil litros. Isso significa que sempre terá 40 mil litros ali? E se eu dispensar o fornecimento regular? Este professor soma a capacidade de reservas de todas as barragens do Nordeste, como se vivessem sempre cheias. E a seca? Mesmo que as barragens estejam cheias, não se pode contar com essa água toda, pois não sei se o ano que vem será o primeiro de vários anos de seca, então preciso reservar. Reservando, amplio o espelho d'água ao máximo e a evaporação leva dois metros de água por ano. Como a barragem está cheia, quando eventualmente chove ela verte. A soma de evaporação e de vertimento dá um desperdício de 80%, imposto por insegurança hídrica. A água segura então é 20% deste potencial de reserva. Não posso fazer uma estatística de muita água neste ano, dividida pelo ano em que não tenho nada.
Poerner - É como o frango do Millôr. Se tem uma pessoa comendo um frango num balcão de restaurante de galeto e uma pessoa do lado de fora sem nada para comer, isso dá meio frango para cada um?
Ciro - Exatamente. A distribuição de água não é a mesma para todas as regiões. O Nordeste tem 45 milhões de habitantes e detém 3% da água potável do país. Setenta por cento dessa água se concentra na Bacia do São Francisco e 20% na região do Parnaíba, que separa o Piauí do Maranhão. Existe um miolo imenso com nenhum rio caudal perene. No agreste de Pernambuco a disponibilidade atual é de menos de 350 metros cúbicos por habitante ao ano. Outro exemplo empírico: Fortaleza tinha três barragens, todas cheias, numa boa. No primeiro ano de seca, me avisaram que eu teria que construir uma quarta barragem. No segundo ano de seca, as três primeiras barragens secaram e não chegou uma gota d'água na quarta barragem. O que adiantou minha capacidade de reserva de 1,2 bilhão se o fluxo de reposição foi irregular? A seca é cíclica, não conhecemos sua regularidade, mas é certo que ela vem.
Poerner - Está demonstrada então a necessidade.
Ciro - A segunda questão: o Rio São Francisco agüenta? Empiricamente, desde a proposta de D. Pedro II em 1832, o São Francisco é a solução: falta água aqui, sobra água ali, tiramos dali e trazemos para cá. Mas a discussão também atravessa séculos. Um hidrólogo do Ceará diz que o rio tem água sobrando e pode tirar sem problemas. Um professor da Bahia diz que o rio não agüenta. Se eu fosse entrar nesse debate enlouqueceria. Então Lula, a ministra Marina Silva, eu e Tarso Genro sistematizamos uma interlocução que racionalizasse o debate. Como? Fizemos um grupo presidido pelo vice-presidente José Alencar, um mineiro que conhece o São Francisco, e este grupo percorreu toda a bacia, estado por estado, convocando debates para discutir o assunto. Ato contínuo, o presidente Lula delegou a mim a tarefa de viabilizar o projeto. Instituímos o Comitê de Bacia do Rio São Francisco. Tomou posse como presidente do comitê o ex-ministro de Meio Ambiente do governo FH e atual secretário de Meio Ambiente de Minas, o professor José Carlos Carvalho. Na sua posse, em Penedo (AL), nos fizeram o seguinte repto: ''Não estamos contra, apenas não dá para ser a favor porque não estamos seguros. O rio está muito machucado. Exigimos então que o senhor suspenda o projeto por seis meses para contratarmos um Plano de Bacias com os experts mais qualificados do país, sob a coordenação da Agência Nacional de Águas e controle do Comitê de Bacias''. Eu tenho noção do tempo de governar. Na melhor das hipóteses, preciso de dois anos para executar o projeto. Pedem mais seis meses, depois de termos feito todos os estudos? Mas suspendemos o processo. Seis meses depois, o Plano de Bacias ficou pronto e foi considerado algo sem precedentes no país em termos de sofisticação técnica. Aí me dizem: ''Só porque o plano é perfeito não podemos colocá-lo em vigor. Precisamos validá-lo junto à sociedade civil''.
Ziraldo - ''Vamos convocar uma assembléia!''
Ciro - Eu desconfio desse democratismo que existe por aí, resisti e tal, mas também concordei. Mais três meses. Num governo de quatro anos. O plano foi levado a debate em 18 audiências públicas, sem nenhuma participação do governo, em todos os estados da Bacia. Na última reunião, em Salvador, foi aprovado por unanimidade. Diz o Plano de Bacias: ''O Rio São Francisco tem uma vazão média, apurada na foz, periciada, de 2.850 metros cúbicos por segundo''. Ao manejar recursos naturais é preciso usar o princípio da precaução, de modo que nos interessa a vazão mínima: na pior situação, o rio tem 1.850 metros cúbicos por segundo. Há ainda uma trava de segurança, imposta pelo Ibama, de uma vazão mínima de 1.300 metros cúbicos por segundo, condicionada à liberação de água pelas barragens. Não há contestação a esses números. A outorga de água, um documento oficial publicado no Diário Oficial, é de ridículos 26 metros cúbicos por segundo. São ridículos em relação às águas do São Francisco mas são suficientes para abastecer a população de 12 milhões de pessoas.
Ziraldo - Então é pra dar água pras pessoas e pros seus animais. Não é pra irrigar as plantações.
Ciro - Na outorga incondicional, sim. Quando a barragem de Sobradinho verte, o rio passa por uma grande cheia e ficamos autorizados a tirar 36 metros cúbicos por segundo. Esta água é guardada em reservatórios, para qualquer uso. Sobradinho verte em 40% do ano. Sua enchente verte 15 mil metros cúbicos por segundo. Vamos tirar 36 metros cúbicos para que no restante do ano haja água disponível para qualquer uso. Não há mal nisso. Estamos falando em utilizar 1,4% das águas do São Francisco para dar de beber a quem tem sede.
Ziraldo - É como tirar sangue para fazer um exame!
Ciro - E controlado por torneira. Se o rio chegar por algum motivo a ficar anêmico, é só fechar a torneira. Posso usar apenas um metro cúbico por segundo. A crença das pessoas é que se vai tirar o rio de onde ele está para levar a outro canto. O nome ''transposição'' é o primeiro equívoco. O projeto do governo Lula se chama Integração de Bacia. O rio vai continuar quietinho lá.
Poerner - E quando estiver na cheia, você pode tirar mais e guardar.
Ciro - Demonstrei então a necessidade. Demonstrei que o São Francisco tem disponibilidade para esse uso. Aí vem o argumento econômico. É um argumento egoísta porém respeitável. O governador Paulo Souto, uma pessoa de bem, me diz: ''Ciro, por que vou concordar em tirar água do São Francisco, que está aqui olhando para a minha terra, para criar camarão no Rio Grande do Norte? As terras daqui não tem irrigação''. Então temos que dizer àquela população que vive acolá que, como a água é essencial para a vida, eles têm que vir morar na Bahia?! (se exalta) Não há uma família no interior do Nordeste que não esteja destruída! Nenhuma! Em 56% das famílias nordestinas a mulher é a chefe. Os maridos foram embora! Estão morrendo com 23 anos na Rocinha! Estão sendo humilhados em São Paulo! (dedo em riste) Não quero ficar na vida pública se não puder lutar por essa gente! (bate no peito) É o sentido de eu estar nessa coisa!
Poerner - Os governadores não estão certos ao defender os interesses de sua própria população também?
Ciro - Mas as populações de cada estado continuarão tendo sua água. Somando todos os projetos em licitação ou execução ou meramente imaginados, nos próximos 20 anos, de Minas, Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco, estes vão consumir 262 metros cúbicos por segundo. Isso daqui a 20 anos! Ainda sobrarão 98 metros cúbicos por segundo. Estou pedindo 26 metros cúbicos por segundo. Os aparelhos mais avançados para medir vazão de rio precisam de uma oscilação mínima de 5% para acusar um registro. Estamos falando em 1,4%. Nem será possível ver isto nos aparelhos.
Ziraldo - Mas ainda não salvou o rio!
Ciro - Vou chegar lá. Ainda vou citar outro argumento sobre a disponibilidade das águas. O rio vem... (desenha o trajeto no mapa) passa por Três Marias e quando chega a Sobradinho vira um grande mar. É uma barragem tão volumosa que tem agasalhado todas as cheias. Nos últimos sete anos não sangrou nenhuma vez. Pode segurar sete anos de estiagem do rio. De Sobradinho em diante, não interessa se antes o rio pulsava a 15 mil ou a 600, agora são as turbinas da Chesf que determinam o fluxo. Chegando em Itaparica, outra barragem e o mesmo processo. Onde são os pontos de captação do projeto de integração de bacias? Entre Sobradinho e Itaparica (marca no mapa que desenhou). Além de captar apenas 1,4% da água, os dois pontos ficam entre duas barragens gigantescas, onde a água que passa nada tem a ver com a natureza do rio, só com o regime de gestão da Chesf. Não tem efeito nenhum sobre o restante do rio. A Chesf pode perfeitamente liberar a partir de Sobradinho 2.850 metros cúbicos, mais os 26 metros cúbicos por segundo.
Ziraldo - De todos os que você citou, qual é o argumento mais poderoso contra o projeto?
Ciro - Eu até gostaria de conhecer um argumento realmente poderoso, porque quero debater este projeto. Ficam me acusando de não ter debatido. Passei cinco horas na CUT debatendo o projeto com delegados do país inteiro. Fizemos debates na OAB, no MST, na Contag, na Fiesp, no Clube de Engenharia do Rio... peraí! Lamento que a imprensa não tenha dado a atenção necessária a um projeto desta envergadura, mas nós realizamos debates. Fizemos 29 audiências públicas, algumas das quais impedidas por liminares impetradas por estes mesmos que nos acusam de não querer o debate. Fui cinco vezes ao Congresso ser questionado em sessões de até seis horas. Em setembro do ano passado pedi um debate na CNBB, para o qual este bispo foi convidado, mas não compareceu.
Ziraldo - O que você sentiu com a greve de fome do padre?
Ciro - Isso nos assustou, porque o projeto é para a vida e não para a morte, muito menos a morte de um bispo. Ficamos perplexos. Pelo meu estilo pessoal eu desceria até lá e pediria uma chance de explicar, mas disseram que pareceria provocação. Mandamos vários emissários pedindo um encontro mas não teve conversa. O sobrinho dele, que é juiz na Bahia, pessoa séria, me procurou com um pedido: ''O senhor aceita ir falar com o tio?''. ''Agora mesmo. Mobilizo um jato e vamos os dois agora. Só preciso que D. Luiz diga que aceita, porque não quero afrontá-lo''. Ele ligou para Cabrobó: ''O ministro aceitou ir''. Quando ouviu a resposta do outro lado, ficou completamente constrangido e disse que não era para eu ir. Percebi então que tinha alguém intrigando o bispo. Lamento isso.
Poerner - Você não definiu um argumento mais poderoso, mas quais são os argumentos contrários mais recorrentes?
Ciro - Classifico os argumentos em três blocos. Um deles é o juízo da reserva de valor. Água no futuro será sempre um problema. Como os políticos não querem confessar que não querem ceder nem um gota de água, inventam mirabolâncias. ''Estão tirando daqui água que em algum momento do futuro vai me fazer falta.'' Pelos números que citei aqui, vocês já viram que isto não tem fundamento.
Poerner - Quais são os outros blocos?
Ciro - Uma é muito protagonizada por certa igreja minimalista, fazendo juízo de conveniência e oportunidade: ''Se você tem essa montanha de dinheiro para esse projeto, não seria melhor repartir isso em pequenas obras, com cisternas, poços e mandalas?''. Isto é um equívoco. Este dinheiro não está aqui ouvindo a conversa. No Brasil do conflito distributivo e do drama fiscal, é a excelência do projeto que gera pressão por recursos. No passado havia a disponibilidade de recursos mediante a qual se podia decidir como aplicá-los. Agora não.
Ziraldo - É mais fácil arrumar dinheiro para a transposição do que para um plano de cisternas.
Ciro - Os tempos neoliberais são assim, empobrecemos tanto a nossa alma que temos que opor necessidades estratégicas, como se uma anulasse a outra. Mas isso só vale quando se trata da fragilidade política do Nordeste ou da Amazônia. Esse juízo minimalista não se manifestou quando foram dados US$ 2 bilhões para duplicar a Refinaria de Caxias. Ninguém falou: ''Não seria melhor pegar esse dinheiro e urbanizar as favelas?''. Seria melhor, só que havia essa necessidade estratégica da refinaria, além do que o dinheiro da Petrobras é para isso, e não para construir fossas em favelas. E na duplicação da Fernão Dias, ligando SP a BH? Ninguém falou: ''Não seria melhor deixar essa estrada com uma mão só? Por que não pegam esses R$ 2 bilhões e melhoram o salário dos professores?''.
Ziraldo - Mas não dá para fazer as duas coisas, tem que ser um tipo de projeto ou outro?
Ciro - Não negamos a agenda minimalista. Ela também está sendo executada. Já temos prontas 109 mil cisternas de placa, com capacidade de 36 mil litros por casa. Mais 200 mil estão autorizadas. É importante não fazer só as cisternas, tem que treinar as pessoas e ensiná-las a manejar. Então estamos de acordo que uma cisterna de placa é uma coisa legal, porém custa R$ 1.200 cada uma. Um prefeito caprichoso pode fazer 200 cisternas. Um governador mais preocupado pode fazer mil. Um projeto estruturante, só a União pode fazer! E temos aí também uma contradição: dando tudo certo, as cisternas estão instaladas. De onde vem a água? E se não chover?
Poerner - E qual é o terceiro bloco de argumentos contrários?
Ciro - O Rio São Francisco estar extremamente degradado. Nós assumimos na Missão Alencar um compromisso com a revitalização, transformando esse conceito oco num plano, que hoje está em execução: 85% do plano está voltado para o saneamento ambiental. Cerca de 250 comunidades lançam esgoto sem tratamento nas águas do São Francisco. Estamos indo de município em município vendo quais os projetos de saneamento viáveis. O resultado dessa dinâmica é que pela primeira vez temos mais projetos que dinheiro. Neste instante, 40 cidades estão sendo tratadas.
Ziraldo - Tinha que começar também a replantar as matas ciliares.
Ciro - Este é o segundo item. Em Minas, nas barbas do meu amigo José Carlos Carvalho, ainda há destruição de mata ciliar para fazer carvão, inclusive com trabalho escravo e infantil. Foram dizimadas 95% das matas ciliares às margens do São Francisco. Os 5% que restam continuam virando carvão. As matas ciliares têm o papel de retenção de água e de encostas, e onde são destruídas o rio fica assoreado. Há dois anos estou trabalhando com o Instituto Florestal de Minas, o maior expert do Brasil no assunto, financiando canteiros de mudas de mata múltipla.
Ziraldo - Mas enquanto vocês estão plantando, o pessoal está destruindo muito mais.
Ciro - Temos um programa de educação ambiental, começando por um grande entendimento com o MST e os assentamentos. Agora, isso vai demorar 20 anos, são 5.400 quilômetros de margens a serem replantadas. Outra questão dentro da revitalização são as comunidades tradicionais. Chamei os caciques dos Tumbalalá, da Bahia, e dos Truká, de Pernambuco, próximos aos pontos de captação. Dei minhas explicações e ouvi os seus pedidos. A revitalização para eles é 140 casas, um centro comunitário e uma estrada que irá escoar 70% da produção de arroz de Pernambuco. Contratei as três coisas. Para os pescadores do Baixo São Francisco, é a questão de Sobradinho reter os nutrientes quando a água passa pelas turbinas. Sem nutrientes, não tem peixe. Estamos financiando tanques-rede para criação de peixes, além de financiar ração e capacitá-los para a refrigeração e a filetagem. Organizamos cooperativas para aprimorar a estrutura de comercialização. Mapeamos uma praga de esquistossomose no Baixo São Francisco. Então, para alguém a revitalização do São Francisco é acabar com a esquistossomose. Para outra pessoa é restaurar a navegação com as obras de dragagem. Temos um barco em Penedo mapeando os bancos de areia e isso vai virar um projeto de engenharia de desassoreamento.
Poerner - A palavra tem significados diferentes conforme as necessidades de cada comunidade.
Ciro - É óbvio que a revitalização do São Francisco envolve repor as matas ciliares, mas é muito mais do que isso. E não adianta apenas querer repor as matas, tem que ter um projeto detalhado, organizar quem cria as mudas, quem planta, ter treinamento, educação ambiental, criar uma polícia que proteja as mudas... Há muito mais detalhes do que as pessoas imaginam. Em determinado momento houve uma preocupação com a ictiofauna: como será a convivência sexual dos peixes da bacia doadora com os da bacia receptora. Paramos o projeto todo e procurei o especialista em ictiologia mais qualificado do país para estudar esse impacto ambiental. Ouvi alguém dizer: ''O povo morrendo de sede e você preocupado com suruba de peixe!''. Peraí, não custa nada a gente observar essas coisas direitinho. Mapeamos 56 espécies de peixes e zeramos esse problema. Depois surgiu uma questão com a Sociedade Brasileira de Liminologia.
Poerner - É o pessoal do lodo?
Ciro - Estudam as plantas superficiais. Em alguns locais onde a água pára, forma-se uma vegetação de superfície que eventualmente pode ser tóxica. É evidente que não sei nada de liminologia, mas sei que tem alguém no Brasil que é um expert no assunto. Mandei estudar a questão. O embate então foi nesse nível. O programa de revitalização está pronto e suas primeiras ações executivas podem ser testemunhadas. Aí vem o argumento: ''Então vamos fazer primeiro a revitalização para depois fazer a integração das bacias''. Quando explico que isso vai demorar e que enquanto isso tem pessoas morrendo por falta de água, aí dizem: ''Mas quem me garante que vocês não vão fazer a integração e abandonar a revitalização?''. O senador Valadares, de Sergipe, apresentou uma emenda à Constituição propondo vincular por 20 anos uma fração do orçamento da União ao plano de revitalização do São Francisco. Isso é uma briga com interesses poderosos do conflito distributivo do país, mas a emenda já foi aprovada no Senado e está no ponto de ser votada na Câmara.
Poerner - Este é o projeto maior do Lula, o que ficará para a história como Brasília ficou para JK. Ele tinha que apoiar isso com total afinco.
Ciro - Aí entra a interdição político-eleitoral. Não por acaso os governadores antagonistas do projeto são da oposição: Paulo Souto (PFL), João Alves (PFL) e Aécio Neves (PSDB). Os governadores favoráveis são do PMDB e do PDT. Eu disse ao Aécio, de quem sou amigo há muito anos: ''Como é que Minas pode ficar contra? Quem construiu o açude de Orós, que todos consideravam algo impossível, foi um mineiro, o Juscelino''. Não acredito que Minas vá continuar contra. Só se o mundo estiver indo para o brejo, como às vezes desconfio.
Ziraldo - Por que o projeto não começa então imediatamente?
Ciro - Tivemos um obstáculo que foi a bateria de liminares judiciais, tão sem pé nem cabeça que das 19 impetradas 18 foram revogadas. Uma está sendo ajuizada no STF. Outro motivo para não ter começado é o compromisso que celebramos com o bispo de não iniciar a obra antes de exaurir o debate. Por isso marcamos um grande encontro dias 8 e 9 de novembro (terça e quarta-feira), na CNBB, a fim de que se discuta mais uma vez o projeto. Estou marcando também um outro seminário público de três dias, para esclarecer o projeto a quem estiver interessado. Dizem que estou com pressa. Pressa? Num governo de quatro anos, passei três debatendo. Agora é hora de fazer. Vai entrar mais um ciclo de secas.
JB, 06/11/2005, p. B6-B7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.