VOLTAR

LETRA MORTA

O Paraense-Belém-PA
Autor: Lúcio Fávio Pinto
13 de Fev de 2002

Lei das águas recomenda cuidado com as barragens

Até a primeira metade da década de 80 a Amazônia não possuía qualquer significado no panorama nacional de energia. Sobrevivia de um suprimento vegetativo, através de pequenas e velhas unidades térmicas isoladas. Hoje, responde por 15% da energia firme do país e é a segunda das regiões de exportação. Sua balança energética é altamente superavitária, uma situação que deverá se ampliar nos próximos anos, transformando-a na maior província energética brasileira. As águas de cinco rios amazônicos já estão sendo usadas como fonte de hidreletricidade. No mais importante deles, o Tocantins, em seu trecho paraense, foi erguida a segunda maior hidrelétrica do Brasil, graças a um investimento que já deve ter batido, computados os custos diretos e indiretos, em 10 bilhões de dólares. Ainda neste ano a capacidade da usina de Tucuruí começará a ser duplicada, tornando-a a sexta maior do mundo. Em outubro, a Eletronorte espera iniciar a construção de uma hidrelétrica ainda maior, num novo grande rio a ser utilizado para aproveitamento energético, o Xingu. Até o final da década, quando estaria com a maioria das suas 20 gigantescas máquinas instaladas, a usina de Belo Monte subiria para o quinto lugar entre as maiores do mundo. Superaria então Tucuruí como a segunda do Brasil, abaixo apenas de Itaipu, do outro lado do país. Quando começasse a segunda década do terceiro milênio, já teria havido uma mudança completa do cenário energético nacional. A Amazônia, com metade das reservas brasileiras, já estaria respondendo por um quinto ou mesmo um quarto da produção nacional efetiva. Contribuiria decisivamente para assegurar o abastecimento de três das cinco regiões do país, cujo consumo supera a produção de energia. Essa nova realidade estaria coerente com o fato de a Amazônia dispor de 20% do sistema hidrográfico do planeta, um caudal de águas que poderia proporcionar a geração de 50 mil megawats de energia, apenas 15% menos do que a produção total do Brasil no momento. No espaço de apenas três décadas, o ingresso da Amazônia no mercado energético nacional quase provocaria a duplicação da geração. Esse desempenho realmente impressionante talvez esteja ofuscando a percepção de um fato: a especialização dos rios amazônicos na monocultura energética. O uso mais nobre dado à água, ou, freqüentemente, o único a merecer atenção especial do governo e dos empreendedores privados, é como alavanca na movimentação de geradores, transformando energia mecânica em energia elétrica. Monocultura estabelecida exatamente quando se busca um uso múltiplo desse recurso vital - e com tendência crescente à escassez. Quantidade cada vez maior de cabeças pensantes da humanidade começam a ajustar seus raciocínios a essa perspectiva. A segunda conferência mundial sobre águas, realizada no início do ano passado, em Amsterdã, na Holanda, previu que em 2027 haverá um bilhão de terráqueos sem água suficiente para suas necessidades básicas. A incógnita da equação da sobrevivência será o que fazer para manter a vida. Fazer a guerra? Se for inevitável, povos guerrearão. Será inevitável se não houver planejamento. Ou dois planejamentos: um em escala mundial e outro no plano das fronteiras nacionais (este, desdobrando-se tantas vezes quantas recomendar a dimensão de cada país, alguns de tamanho continental e recursos abundantes, como o Brasil). Confortáveis como membros de uma nação que conta com depósitos de água doce sem paralelo em qualquer outra parte do globo, parecemos dispostos a prolongar a era do desperdício, da imprevidência e da estreiteza de visão. Mesmo sem que haja qualquer pressão ou punição externa, o preço dessa leniência pode vir a ser alto demais. Os rios amazônicos estão entrando na linha de montagem energética de forma estanque, individualizada, monovalente. Três hidrelétricas já se acham em atividade no vale do Araguaia-Tocantins, que drena águas em 10% do território brasileiro. Se os planos do governo forem seguidos, logo esse número estará multiplicado por cinco. E ainda que 14 usinas estejam funcionando, lá por meados da próxima década, é provável que nenhum ator estranho ao mundo fechado dos "barrageiros" se faça uma pergunta elementar sobre os outros usos da água, sobre regras estabelecidas a partir de fora, mas para serem aplicadas pelos produtores de energia. Se a história seguir o curso exclusivo de suas vontades, na essência, o rio será um escravo da geração de megawatts. Mas já era para ser diferente. A recente legislação sobre recursos hídricos exige uma visão de conjunto das bacias, multifacetada e com capacidade de antecipação aos fatos. Como de regra, porém, a boa lei parece letra morta. Quem toma as decisões sobre o aproveitamento das águas é quem constrói grandes barragens para uso energético. Não há, acima de sua cabeça, nenhuma agência de desenvolvimento para impor-lhe controles e regulamentos, impedindo a monocultura dos megawatts. Ainda que apenas para efeito de produção de energia, os caudalosos rios amazônicos apresentam dois complicadores naturais. Um deles é sua baixa declividade. Os locais de interesse não oferecem ao engenheiro grandes quedas. É preciso criá-las através de represas artificiais, de concreto. A de Tucuruí, no rio Tocantins, tem mais de 70 metros de altura (mais do que um prédio de 20 andares). A de Belo Monte, no virgem (energeticamente falando) Xingu, mais a oeste, deverá ter 90 metros. Para serem transpostas pela navegação, essas barragens exigirão as construções das maiores e mais caras eclusas do mundo. A de Tucuruí, um quarto de século depois de iniciada, ainda não foi concluída. A possibilidade de tal projeto ser executado em Belo Monte é mais remota ainda.
Vazão variável - A outra restrição natural dos rios amazônicos é a diferença de vazão entre o verão e o inverno. No pique da estiagem o Tocantins verte 60 vezes menos água do que no auge do inverno. É por isso que a potência da usina de Tucuruí baixará de 8,2 mil MW, o máximo da capacidade instalada com a duplicação em curso, para 3,3 mil MW de potência firme, aquela energia que ela poderá gerar sempre. Com o acréscimo de 11 máquinas às 12 já em atividade no momento, no período mais seco do ano várias delas permanecerão paradas por falta de água, embora a usina conte com o segundo maior lago artificial do Brasil, ocupando 2.850 quilômetros quadrados, com estoque de 55 trilhões de litros de água. A situação se repetirá, com cores um tanto mais dramáticas, no Xingu. Dos 11,2 mil MW que poderá gerar com suas 20 enormes máquinas, cada uma podendo abastecer todos os 6 milhões de habitantes do Pará (excluída a fábrica de alumínio da Albrás), a usina de Belo Monte só terá 4,6 mil MW de potência firme. Durante quatro meses do ano a imensa casa de máquinas terá a aparência de um museu, sem atividade. Somente funcionará a plena carga em metade do ano. A primeira "solução" para essa violenta depleção seria construir mais reservatórios de água a montante (no curso superior) do rio represado. O custo dessa alternativa é inundar mais terra e mais floresta, além de desabrigar mais gente. Talvez para evitar o desgaste dessa iniciativa, o "barrageiro" dificilmente antecipa tal providência. Tucuruí seria aproveitamento único a partir do curso médio do Tocantins, que tem dois mil quilômetros de comprimento. Essa história está ficando para trás por causa da necessidade de mais água na usina. Mas ainda não entra no prospecto de Belo Monte, apresentada como a única hidrelétrica a partir do curso médio do Xingu. Quando ela tiver vencido as resistências e se consolidado é que deverá começar a ladainha sobre mais um represamento de montante, que, se vier, terá uma amplitude muito maior do que os 400 quilômetros quadrados de reservatório da primeira usina, dimensão exibida, hoje, como seu maior atrativo. A outra "solução" só está sendo apresentada agora, na onda do sentimento de insegurança diante dos riscos de colapso no fornecimento de energia e seu irmão siamês, o "apagão". A Eletronorte decidiu acoplar à hidrelétrica de Belo Monte uma térmica com 15% da capacidade da usina de fonte hidráulica, elevando em 750 milhões de dólares (por enquanto, ao menos) o orçamento inicial da obra, de US$ 3,8 bilhões. A térmica supriria a queda de geração da hidrelétrica no período crítico de estiagem, funcionando em paralelo. A criatividade dos "barrageiros" precisa, agora, do esforço disciplinador e multiplicador dos que já se acham imbuídos da consciência sobre um uso mais amplo e rico desse recurso tão vital.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.