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Kikito engajado

O Globo, Segundo Caderno, p. 1
17 de Ago de 2009

Kikito engajado
Gramado premia filmes-denúncia sobre índios massacrados e vítimas da ditadura

Rodrigo Fonseca
Enviado especial
Gramado, RS

Ao receber o Kikito de melhor filme e mais quatro prêmios na noite de anteontem, "Corumbiara", documentário de Vincent Carelli sobre a execução sumária de índios em Rondônia, encerrou em tom de política o 37o Festival de Gramado, após sete dias em que só se falou de experimentação estética, cinema de invenção e gripe suína. A divisão do Kikito de melhor diretor entre Carelli e Paulo Nascimento, que arrancou lágrimas ao reconstituir a luta armada dos anos de chumbo com "Em teu nome", ressaltou a decisão da mostra gaúcha de se reinventar pelas explosivas veredas da denúncia. Não foi à toa que o festival foi aberto com um libelo anti-imperialista, o clássico cubano "Memórias do subdesenvolvimento", de 1968.

De tons épicos, com tomadas rodadas no Chile, na França e no Marrocos, a produção de Nascimento conquistou ainda o Prêmio Especial do Júri, um reconhecimento para uma narrativa disposta a evocar o espírito de quem disse "Não!" à ditadura.

- Quando fui convidado para Gramado, eu sequer pensava em inscrever o filme aqui. Quando cheguei, senti que meu filme era uma espécie de óvni nesta seleção.

Por isso, acho a atitude do júri de muita coragem - disse Carelli ao GLOBO, ostentando ainda os prêmios de júri popular, júri dos estudantes de cinema e melhor montagem para Mari Corrêa. - Com essa vitória, "Corumbiara" pode sair do gueto dos filmes etnográficos e aumentar seu raio de alcance.
Indigenista pede fim da impunidade
Recebido com gritos de "Bravo!" e palmas caudalosas em sua apresentação, o longa-metragem de Carelli foi gestado ao longo de duas décadas. Nesse período, o diretor, responsável pela ONG Vídeo nas Aldeias, documentou a luta do indigenista Marcelo Santos para levar aos tribunais os responsáveis pelo extermínio dos habitantes da Gleba Corumbiara, em meados dos anos 1980. Os culpados permaneceram impunes, mesmo depois de os fatos registrados pelo cineasta na época do crime serem exibidos no "Fantástico" e causarem comoção pública, logo abafada, porém, pelos proprietários de terra.

- Com a dimensão que o Festival de Gramado tem, quem sabe agora o massacre em Corumbiara possa chegar às autoridades? - perguntou Marcelo Santos, cujo processo de envelhecimento é documentado por Carelli, humanizando o registro do ocaso da memória indígena. - Espero que o filme leve o poder público a apurar a violência contra os índios que está ocorrendo agora. Neste exato momento, há dois representantes dos piripicuras na fronteira da Amazônia sem garantia de terras. O mesmo acontece com tupis no norte do Mato Grosso.

Há tempos, Gramado valoriza filmes que encampam a defesa do índio, como comprovam os Kikitos de melhor filme dados a "Raoni", de Jean-Pierre Dutilleux e Luiz Carlos Saldanha, em 1979, e a "Serras da desordem", de Andrea Tonacci, em 2006. "Corumbiara", que havia competido no festival É Tudo Verdade, entre março e abril, injeta virulência nas veias de um festival que não teve grandes polêmicas.

Se faltaram conflitos à edição 2009 de Gramado, sobraram cisões entre os críticos em torno de filmes aguardados como "Corpos celestes", o segundo trabalho do paranaense Marcos Jorge, consagrado por "Estômago". Codirigida por Fernando Severo, a produção, sobre os dilemas existenciais de um astrônomo, teve que se contentar apenas com o troféu de melhor fotografia, coroando as belas imagens captadas por Kátia Coelho.

Houve rachas também nos debates sobre as escolhas formais de Paulo Nascimento na realização de "Em teu nome". Seu longa verte para o cinema as memórias do juiz do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul João Carlos Bona Garcia, obrigado a se exilar na juventude após pegar em armas contra a ditadura. O filme ganhou ainda o Troféu Cidade de Gramado de melhor trilha sonora e o prêmio de melhor ator para Leonardo Machado, um ex-peão de fazendas que interpreta o jovem Bona.

- A gente tem que cuidar da nossa História, e os filmes são fundamentais para isso. Eles imortalizam personagens. Pergunte aqui em Gramado quais são os grandes personagens do cinema brasileiro.

Dificilmente você ouvirá muitos nomes. Mas se perguntar sobre grandes personagens do cinema americano... Cadê Macunaíma? Cadê os personagens que, como Bona, estiveram na luta armada? - questionou Machado.
Críticas à ditadura sob ótica popular
Atacado ferozmente por parte da crítica, Nascimento comemorou seus Kikitos como o triunfo de um cinema que tenta enxergar os opositores do regime militar como heróis românticos: - A minha primeira vitória aqui em Gramado foi ver "Em teu nome" ser comparado a "Pra frente Brasil", de Roberto Farias, que expôs a questão da tortura. No dia em que meu filme passou, Farias estava no Palácio dos Festivais e veio me procurar dizendo que voltaria a esse tema. Se ele voltar, vamos conseguir algo essencial: fazer com que a discussão sobre a ditadura volte ao cinema sob uma ótica popular, que chegue direto ao público. Por isso, eu fiz as escolhes que fiz - disse Nascimento.

Para Nascimento, o destaque dado pelo júri de Gramado (formado pela jornalista Léa Maria Aarão Reis, o ator franco-argentino JeanPierre Noher e os cineastas Rui Simões, de Portugal, e Liliana Sulzbach, radicada no Rio Grande do Sul) a "Em teu nome" e "Corumbiara" consolida duas abordagens para um mesma indignação: - No fundo, nós dois estamos falando sobre injustiças. Carelli denuncia a injustiça contra os índios.

Eu denuncio a injustiça que os militares cometeram com uma geração - disse Nascimento.

Houve ainda um prêmio da crítica para "Canção de Baal", de Helena Ignez, laureado ainda com um troféu de direção de arte. Já "Quase um tango..." rendeu o Kikito de melhor roteiro a seu diretor, Sérgio Silva, e outro (merecidíssimo) de melhor atriz para Vivianne Pasmanter.

O desempenho de Vivianne em quatro papéis deixou Gramado de queixo caído no primeiro dia do festival, em que Silva ressaltou a importância do melodrama na cinematografia nacional: - Às vezes um filme de um determinado gênero faz sucesso no país, e as pessoas acham que esse filão é o único caminho. Mas há espaço para uma diversidade que vai da comédia ao filme experimental.

Os prêmios de Gramado para "Quase um tango..." consolidam mais um caminho: o melodrama.

Na leva de filmes estrangeiros em competição, o mais premiado foi o drama peruano "La teta asustada", de Claudia Llosa, ganhador dos Kikitos de melhor filme, direção e atriz, para Magaly Solier. Previsto para estrear dia 28, o longa ganhou o Urso de Ouro em Berlim em fevereiro e inicia seu trajeto na trilha para o Oscar.
O repórter viajou a convite da organização do festival

Os premiados

Competição nacional
Melhor filme: "Corumbiara", de Vincent Carelli.

Melhor Diretor: Vincent Carelli, por "Corumbiara", e Paulo Nascimento, por "Em teu nome".

Melhor Ator: Leonardo Machado, por "Em teu nome".

Melhor Atriz: Vivianne Pasmanter, por "Quase um tango...".

Melhor Roteiro: Sérgio Silva, por "Quase um tango...".

Melhor Fotografia: Katia Coelho, por "Corpos celestes".

Melhor Diretor de Arte: Fabio Delduque, por "Canção de Baal".

Melhor Trilha Musical: Andre Trento e Renato Muller, por "Em teu nome".

Melhor Montagem: Mari Corrêa, por "Corumbiara".

Prêmio Especial do Júri: "Em teu nome", de Paulo Nascimento.

Prêmio da Crítica: "Canção de Baal", de Helena Ignez.

Melhor Filme do Júri Popular: "Corumbiara", de Vincent Carelli.

Melhor Filme do Júri de Estudantes de Cinema: "Corumbiara", de Vincent Carelli.

Competição internacional
Melhor Filme: "La teta asustada", de Claudia Llosa.

Melhor Diretor: Claudia Llosa, por "La teta asustada".

Melhor Ator: Horacio Camandule, por "Gigante", e Matías Maldonado, por "Nochebuena".

Melhor Atriz: Magaly Solier, por "La teta asustada".

Melhor Roteiro: Adrián Biniez, por "Gigante".

Melhor Fotografia: Guillermo Nieto, por "Lluvia".

Prêmio Especial do Júri: "La próxima estación", de Fernando E. Solanas.

O Globo, 17/08/2009, Segundo Caderno, p. 1

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