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Kenarik Boujikian: Cardozo não se porta à altura de um ministro de Estado

Viomundo - http://www.viomundo.com.br/
Autor: Conceição Leme
21 de Mai de 2013

Ministra Gleisi Hoffmann:"Concordo que ela [a Funai] não tem critérios claros para fazer a mediação de conflitos [entre índios e agricultores], pelo envolvimento do órgão com a questão". E a Embrapa e o Ministério da Agricultura não têm envolvimento direto com o agronegócio e os ruralistas?

O governo da presidenta Dilma está em débito com os povos indígenas.

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a quem está subordinada a Fundação Nacional do Índio (Funai), ilustra a situação. Ele diz que o Ministério da Justiça cuida dos indígenas e a Funai não será esvaziada.

"Se cuidasse, não teríamos em 2011 apenas duas demarcações de terras indígenas", rebate a desembargadora Kenarik Boujikian, desembargadora no Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD). "É o menor número da última década."

Em 4 dezembro do ano passado, os dois lados se encontraram em Brasília, na Câmara dos Deputados.

Cardozo participava de audiência pública na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Representantes de povos indígenas, na Comissão de Direitos Humanos. Em seguida, estes iriam entregar ao Executivo, Legislativo e Judiciário uma petição com 20 mil assinaturas, pedindo o cumprimento da Constituição Federal e respeito a seus costumes, línguas, crenças, tradições e terras.

Antes que entrassem na sala, Cardozo saiu com esta:

Eu me recordo que é da tradição os ministros da Justiça dizerem que tratam da toga à tanga. E é verdade. Já, já, nós teremos aí a questão indígena que pertence ao Ministério da Justiça, a Funai.

"Ao se referir, em tom jocoso, aos povos indígenas como os de 'tanga', José Eduardo Cardozo revela preconceito e não se porta à altura de um ministro de Estado", critica Kenarik. "O ministro não teve coragem de dizer isso na frente dos indígenas. Se o fizesse, o colocariam no devido lugar. Eles foram exigir o que está na Constituição, não foram pedir nenhum favor. Essa fala mostra por que a demarcação das terras indígenas não avança."

Aliás, a demarcação pode se complicar. A Funai, segundo os funcionários, está em processo de sucateamento e desmonte.

No dia 8 de maio, a ministra da Casa Civil, Gleise Hoffmann, compareceu à Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, para "prestar esclarecimentos acerca de identificação e demarcação de terras indígenas no Brasil".

Após ouvir deputados ruralistas chamarem a Funai de criminosa, vigarista, fraudulenta, incompetente, desonesta, Gleisi disse que há falhas no processo de demarcação de terras, colocando sob suspeição a competência da instituição naquilo que é sua atribuição. Durante a audiência, repetiu várias vezes que a Funai é o órgão protetor dos índios.

"É errado dizer que a Funai é criminosa, mas concordo que ela não tem critérios claros para fazer a mediação de conflitos [entre índios e agricultores], pelo envolvimento do órgão com a questão [com os indígenas]", afirmou a ministra durante a audiência convocada pela bancada ruralista. "Estamos construindo com vários órgãos do governo, em especial com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], um sistema de informação para prevenção e gestão de conflito. Para tomar decisões em relação à demarcação de terras, vamos ouvir e considerar nos estudos, além da funai, o Ministério da Agricultura, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério das Cidades, entre outros órgãos."

"Queremos um mapa cartográfico sobre a ocupação do território. Queremos saber qual a produtividade na área, por quanto tempo os produtores tomaram crédito do governo, há quanto tempo há presença indígena porque os processos estão mais tensos agora sobre áreas antropizadas", declarou Gleisi, candidata ao governo do Paraná nas eleições de 2014, primeiro Estado a ter as demarcações suspensas após parecer da Embrapa.

A ministra anunciou ainda que até o final deste semestre será definido um novo marco regulatório para os processos de demarcações das terras indígenas.

Era tudo o que os ruralistas queriam ouvir.

Dois dias depois, o ministro José Eduardo Cardozo reafirmou a decisão.

Em nota, a Comissão Pastoral da Terra repudiou a fala de Gleisi Hoffman: "afronta a Constituição", representa a "submissão aos interesses do agronegócio" e "acaba por legitimar toda a violência empreendida contra os povos originários no país".

Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o governo cede à pressão dos ruralistas: "A raposa no galinheiro".

"A Embrapa e o Ministério da Agricultura - com atuações direcionadas para o fortalecimento do agronegócio - têm legitimidade para isso [demarcação de terras]?", questiona o Cimi. "Quem vai ser a instituição que vai analisar as contribuições de todos os órgãos e dar a palavra final sobre a demarcação da terra?."

Em tempos de Comissão Nacional da Verdade (CNV), impossível não lembrar aqui do Relatório Figueiredo, desaparecido até o final do ano passado.

Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, foi quem o achou. Desde 2012, ele investiga os crimes cometidos contra os índios na ditadura.

"Fui ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, pesquisar nos seus arquivos uma cópia do filme Arara, de Jesco Puttkamer. Queria denunciar uma cena escabrosíssima sobre tortura, que prova a existência no país de escolas militares que ensinavam essa prática na época da ditadura", conta Zelic ao Viomundo. "No meio da busca, funcionários do Museu me chamaram para mostrar 50 caixas de documentos que receberam em 2008. Ao abrir uma delas, descobri o Relatório Figueiredo. Durante muito tempo, achou-se que ele havia sido destruído num incêndio criminoso no antigo Serviço de Proteção ao Índio, subordinado ao Ministério da Agricultura. Felizmente, não foi."

"Embora todos os arquivos dessa caixa tenham sido inventariados em 2010, a relação do conteúdo com tão importante Relatório não foi estabelecida à época", diz Zelic. "Mas, ao abri-la, de cara, identifiquei a assinatura de Jader de Figueiredo Correia logo nas primeiras páginas. A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) solicitou então oficialmente uma cópia digital de toda a documentação. Auditamos. Era mesmo o Relatório Figueiredo. Foi emocionante."

Parêntese: A imagem a que se refere Zelic é esta abaixo. Sugere que os indígenas eram ensinados a torturar durante a ditadura. Esta cena é da cerimônia de formatura da primeira turma da guarda indígena, em Belo Horizonte (MG), em 1970. Fechado parêntese.

Prossegue a nossa entrevista com Zelic.

Viomundo - Afinal, o que é o Relatório Figueiredo?

Marcelo Zelic - É um documento oficial produzido pelo Estado brasileiro entre novembro de 1967 e março de 1968. Ele é resultado de uma Comissão de Investigação do Ministério do Interior (CIMI), que foi presidida pelo procurador federal Jader de Figueiredo Correia. Daí se chamar Relatório Figueiredo. É um dos principais documentos sobre as violações de direitos indígenas no Brasil tanto em relação aos direitos humanos quanto às usurpações patrimoniais e territoriais.

Viomundo - O que motivou essa investigação?

Marcelo Zelic - Em 1963, ainda no governo do ex-presidente João Goulart, teve início no Congresso Nacional uma CPI para apurar denúncias contra o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que era um órgão do Ministério da Agricultura.

"O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados que lhe impuseram regime de escravidão e lhe negam um mínimo de condições compatíveis com a dignidade da pessoa humana", diz o Relatório Figueiredo. "O Serviço de Proteção ao Índio se degenerou a ponto de persegui-los até o extermínio."

O procurador Jader de Figueiredo verificou que a CPI do SPI havia debruçado sobre um período curto - anos 1962/1963 - e apenas parte da Amazônia e do antigo Estado de Mato Grosso. Decidiu então ampliar a investigação de modo que pudesse percorrer as várias regiões do país.

No início dos trabalhos, um incêndio criminoso atingiu a sede do SPI no Ministério da Agricultura, queimando quase a totalidade da documentação ali reunida. Essa foi uma das razões pelas quais as investigações passaram a priorizar as visitas às regiões em busca de depoimentos e documentos.

Viomundo - Quais as principais revelações do Relatório?

Marcelo Zelic - O Relatório Figueiredo aponta nove tipos de crimes. Eu vou destacar apenas os relacionados aos direitos humanos: assassinatos de índios - individuais e de tribos; prostituição de índias; sevícias (torturas); trabalho escravo; usurpação do trabalho do índio; apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena; e dilapidação do patrimônio indígena.

Neste último item, incluem-se: venda de gado, madeira, castanhas e outros produtos de atividade extrativista, artesanato indígena, veículos, doação criminosa de terras..

Diz Jader de Figueiredo Correia em seu Relatório, "citaremos, entre outros as chacinas do Maranhão, (índios Canelas) onde fazendeiros liquidaram toda uma nação, sem que o SPI opusesse qualquer ação. O episódio da extinção da tribo localizada em Itabuna, na Bahia, a serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas as denúncias de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do Governo. Mais recentemente os Cintas-Largas, em Mato Grosso, teriam sido exterminados por dinamite atirada de avião e extricnina adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de "pi-ri-pi-pi (metralhadora). Os criminosos continuam impunes..."

Viomundo - Essas ações aconteceram antes ou durante a ditadura?

Marcelo Zelic - O Relatório Figueiredo apresenta casos do começo dos anos 1960 até 1968. O golpe militar aprofundou a situação de vulnerabilidade dos indígenas brasileiros e elevou a ocorrência de violações de direitos.

Por exemplo, o major aviador Luis Vinhas Neves, nomeado pelo general Castelo Branco como diretor do SPI, é apontado como responsável do extermínio de duas aldeias Pataxós na Bahia, para beneficiar políticos de expressão nacional à época. Em função dessas investigações, o SPI foi extinto.

Viomundo - Essas violências foram cometidas pelos próprios funcionários do SPI?

Marcelo Zelic - Por eles, mas também por fazendeiros. O SPI fazia vista grossa aos crimes cometidos contra os povos indígenas.

Viomundo - Além da extinção do SPI, teve outros desdobramentos?

Marcelo Zelic - Sim, tanto no Legislativo federal como no Judiciário. Só que as ações acabaram abortadas pela edição do AI-5, em 1968. Os crimes praticados pela ditadura a partir da criação da Funai ainda estão em estudos. Sobre esse período ainda pesa um silêncio profundo.

Viomundo - Essas questões serão tratadas na Comissão Nacional da Verdade?

Marcelo Zelic - Cópia do Relatório Figueiredo e dos autos do processo com mais de 7 mil páginas foi enviada à Comissão e hoje faz parte do estudo que ela realiza.

Cabe-nos estudar e sistematizar todas as denúncias contidas nesse documento. Pelo menos 33 pessoas citadas (várias funcionárias do SPI) tiveram envolvimento com violações graves de direitos humanos, que acabaram acobertadas pelo regime militar. Essas denúncias nunca foram apuradas nem os processos judiciais concluídos.

Viomundo -- Semana passada a ministra Gleisi Hoffmann disse que a demarcação de terras indígenas serão tratadas não apenas pela Funai, mas também pela Embrapa, Ministério da Agricultura, entre outras instituições. O que acha disso?

Marcelo Zelic - Caso se confirme o desmonte das prerrogativas constitucionais da Funai, será um enorme retrocesso. Questão indígena tratada por órgãos ligados ao agronegócio não dá certo. O índio sai perdendo. É voltar ao passado. O Relatório Figueiredo é um alerta.

Seria interessante que a ministra Gleisi Hoffmann e o ministro José Eduardo Cardozo lessem-no. O Relatório completo tem mais de 7 mil páginas. Mas existe uma síntese com apenas 68. Foi elaborada pelo próprio procurador Jader de Figueiredo. O Viomundo é o primeiro veículo a publicar a íntegra da síntese do Relatório.

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