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Investimentos sem retorno garantido

O Globo, O País, p. 3-4
24 de Mai de 2009

Investimentos sem retorno garantido
Em um ano, Petrobras repassou R$ 609 milhões, sem licitação, para entidades; fiscalização tem falhas

Dimmi Amora e Maiá Menezes

Até duas semanas atrás, uma casa pequena na Pavuna, bairro pobre na Zona Norte do Rio, ocupava crianças após o horário escolar com atividades e cursos. No portão, uma placa mostra que o projeto tinha um poderoso padrinho: a Petrobras. A maior empresa do país, de acordo com seu site, tem em vigor dois contratos somando R$ 1,1 milhão com a Organização Brasileira de Recuperação e Amparo Infantil (Obrai), que deveria estar beneficiando 150 crianças na região. Mas, sob a placa, o portão está trancado. Há 15 dias, ninguém aparece no local. Só os alunos que, segundo os vizinhos, voltam para casa frustrados.
A análise de uma amostra dos cerca de 230 contratos entre a Petrobras e organizações da sociedade civil (ONGs e Oscips) nos últimos 12 meses, disponíveis no site da empresa, mostra que a estatal está usando seu dinheiro em apoio a projetos que estão longe de realizar a transformação social pretendida. Eles somam gastos de R$ 83 milhões, sem licitação. Além dos contratos com ONGs, convênios para patrocínios, festas, congressos, entre outros, chegam a 1.100, que somam R$ 609 milhões. O GLOBO identificou, entre os maiores beneficiados pelos recursos, ONGs ligadas a petistas, ao MST e até a um centro social de vereadores. Dos 20 maiores contratos do gênero, quatro foram feitos com entidades ligadas ao partido (e dez são com entidades de universidades ou do governo).
Para a Petrobras, o contrato com a Obrai destina-se "a ampliar o atendimento educacional, nutricional e sociocultural" de 150 crianças. A ONG tem acordo com a empresa desde 2006, sendo que dois contratos estão em vigor. Cristina de Souza, vizinha do prédio, conta que o projeto já havia sido interrompido outras duas vezes no pouco mais de um ano em que esteve ali. E que era comum, quando estava funcionando, que a entidade fechasse por alguns dias sem avisar os pais e alunos, que davam de cara na porta.
- Eles cuidavam bem de umas 30 crianças por turno. Mas não sei por que pararam. A dona do prédio está cobrando aluguel atrasado deles há três meses - disse Cristina.
O investimento da Petrobras nessas entidades também pode estar se revertendo em benefício para políticos. Uma das beneficiadas é a Associação Comunitária Carlos Pontes (ACP), de Carlos Pontes, suplente de vereador em Duque de Caxias. Na eleição passada, ele teve cestas básicas apreendidas no local. Eduardo Pontes, filho de Carlos, coordena o projeto que, segundo ele, é realizado em sete comunidades há um ano, com contrato de R$ 317 mil. Mas, afirma, os 22 funcionários do projeto terão uma festa de despedida neste domingo: - Não sabemos se a Petrobras vai renovar o contrato. Mas muitos vão continuar o trabalho, que já existia antes, porque eram voluntários.
Petista diz que paga por ser do partido
O Instituto Viver de Proteção Social, criado pelo vereador de Aracaju Robson Viana (PT) e dirigido por seu irmão, César Viana, tem um contrato de R$ 240 mil em vigor com a Petrobras. Os recursos financeiros seriam para o projeto "Inclusão social através do esporte e lazer". Mas, mesmo com a existência do contrato, César Viana nega que tenha recebido dinheiro da estatal.
Em Aracaju, outro projeto beneficiado é o "Missão Criança" do Instituto Recriando, criado pela mulher do governador Marcelo Déda (PT), Eliane Aquino. Em 2006, o instituto recebeu R$ 593 mil. E em julho de 2008 teve novo contrato de mais R$ 451 mil. Na ONG, a informação é que Eliane está oficialmente afastada da direção.
Outra beneficiada, com valor de R$ 1,1 milhão, é a Organização Brasileira Para o Desenvolvimento de Ações Sociais (Obras). A ONG realiza um projeto de inclusão social na Vila Cruzeiro, favela na Zona Norte do Rio, com quatro cursos para 600 jovens ao ano, segundo Frederico Boquimpani, coordenador do programa. Ela já havia sido beneficiada com uma emenda parlamentar do deputado licenciado e hoje ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, de R$ 500 mil. O endereço oficial da entidade é o de um ex-funcionário e ex-doador de campanha do deputado, e não há registro de que ali funcione a Obras.
Já o Centro de Articulações de Populações Marginalizadas (Ceap) recebeu R$ 1,9 milhão para o projeto "Camélia da Liberdade" e é dirigido há 20 anos por Ivanir dos Santos, ex-candidato a deputado pelo PT. Ivanir afirmou que o partido não abriu as portas para ele na Petrobras: - Pago um ônus por ser petista.
A Fundação Centro de Referência, que recebeu R$ 1,5 milhão para o projeto "Quilombola Venha Ler", é dirigida pela petista mineira Cleide Hilda de Lima. Ela disse que desde 2006 tenta realizar o projeto com a Petrobras e que sua ligação com o PT não tem relação com a entidade. A Cooperativa Mista Agropecuária de Vitória da Conquista, que recebeu R$ 984 mil para o "Desenvolvimento Solidário", é presidida pelo petista Izaltiene Rodrigues Gomes. Ele afirmou que o projeto passou por todas as análises da Petrobras e que ser do MST e do PT em nada influenciou.

Petrobras: auditorias externas fiscalizam dados da área social
Em 2007, gastos feitos no setor foram de R$ 248,6 milhões, segundo informa a companhia

Os últimos dados disponíveis sobre o investimento da Petrobras na área social são de 2007: R$ 248,6 milhões. Os referentes ao ano passado estão sendo consolidados, segundo a companhia, que informa ainda: os dados são "auditados todos os anos por consultorias externas". A Petrobras disse ainda que "patrocina projetos que atendam às diretrizes e ações estratégicas da Companhia e que proporcionem visibilidade à marca. Cada área (social, ambiental esportiva e cultural) possui diretrizes específicas para a realização dos patrocínios".

Os dois contratos com a Obrai, na Pavuna, segundo a Petrobras, "indicam como resultados provisórios a melhora no desempenho escolar, o reforço nutricional e a mudanças de hábitos de higiene e saúde pessoal, a melhora no relacionamento familiar com a formação de vínculos afetivos e resgate da autoestima".

O objetivo do patrocínio à Associação Comunitária Carlos Pontes, segundo a companhia, é "promover a inclusão social de 1.100 jovens e adolescentes, de 6 a 17 anos, em risco social, através da prática de oficinas de esporte, cultura e reforço escolar". Já com a Organização Brasileira para o Desenvolvimento de Ações Sociais (Obras), a verba é para "promover o desenvolvimento de 600 jovens e adultos em condições de pobreza e vulnerabilidade da comunidade de Vila Cruzeiro, no bairro da Penha".

De acordo com a Petrobras, os projetos são escolhidos "segundo as diretrizes e ações estratégicas da companhia". Na área social, patrocínios são feitos por seleção pública nas áreas de geração de renda, oportunidade de trabalho, educação para a qualificação profissional e garantia dos direitos da criança e do adolescente.

Em relação ao MBC, a Petrobras afirma que tem uma "cadeia direta e indireta de fornecedores que serão impactados pelo programa, que já foi concluído em Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Rio de Janeiro".

Verbas para festas
Bahia está no topo da lista de repasses

Na lista de festas patrocinadas pela Petrobras, a Bahia está no topo. O maior repasse, entre os 62 contratos que somaram R$ 13 milhões, foi para a Associação de Apoio e Assessoria a Organizações Sociais do Nordeste (Aanor), já na mira do Ministério Público do estado da Bahia. A Aanor é ligada a Aldenira da Conceição Paiva, vicepresidente do PT baiano, e a Maria das Dores Loiola Bruni, a Dorinha da CUT, candidata derrotada a vereadora de Salvador ano passado e que recebeu R$ 1,46 milhão da companhia.

O segundo maior volume de recursos foi para a Beija Flor Produções Artísticas, uma empresa de Aracaju, em Sergipe, para a produção do São João Multicultural. O valor foi de R$ 1,3 milhão. O terceiro maior volume de recursos (R$ 1,2 milhão) foi para o Fórum de Entidades Negras da Bahia, com o projeto Bloco Afro do Brasil Carnaval 2008. Para o carnaval da Bahia, há ainda repasses num total de R$ 1,72 milhão para cinco entidades que promovem blocos carnavalescos.

Entre as entidades da sociedade civil, a que tem o maior contrato com a Petrobras nos últimos 12 meses é o Movimento Brasil Competitivo (MBC). O contrato com a Petrobras é de R$ 15 milhões para o Programa de Modernização da Gestão Pública. Pelo projeto, a empresa paga para que entidades privadas ajudem os governos a melhorar a qualidade dos seus gastos e da arrecadação. Segundo o MBC, 57 empresas já doaram recursos para este projeto, que recebeu R$ 75 milhões desde 2006. A Petrobras, que é a segunda maior doadora individual, repassou recursos para projetos em sete estados.

Presidida pela petista Clara Charf, a Associação das Mulheres Pela Paz, de São Paulo, recebeu R$ 254 mil para a "Campanha Nacional Mulheres pela Paz". A entidade surgiu em 2005, como braço brasileiro de um projeto suíço que indicou mil mulheres de mais de 150 países ao prêmio Nobel da Paz daquele ano.

Ex-mulher do guerrilheiro Carlos Marighella, ela coordenou os comitês de mulheres nas duas eleições do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 e 2006. Atualmente integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Governos do PT têm um terço de verba da Petrobras para infância
Partido recebeu aumento de 58% em repasses desde eleições de outubro

Leila Suwwan e Maiá Menezes

O PT é o principal beneficiário da verba social da Petrobras destinada a programas de proteção da infância e da adolescência. Dos R$ 30,6 milhões reservados para estados e municípios durante este ano, R$ 10,8 milhões, 35% do total, estão carimbados para administrações petistas, de acordo com levantamento realizado pelo GLOBO a partir dos contratos divulgados pela estatal. O plano de repasses do Fundo da Infância e Adolescência (FIA) é analisado e aprovado pela diretoria executiva da empresa, controlada pelo partido e atualmente sob disputa entre aliados. A Petrobras nega qualquer critério político na distribuição.

Ano passado, o valor do FIA destinado a prefeituras e estados comandados pelo PT foi de R$ 6,8 milhões. O valor foi semelhante ao recebido pelo PMDB: R$ 6,7 milhões. Porém, após as eleições de outubro passado, as contas se desequilibraram.

O PMDB - que conquistou 22% das prefeituras do país - recebeu uma fatia menor dos repasses da Petrobras: R$ 5 milhões.

Já o PT, que ficou com 10% das prefeituras, ficou com o dobro, um aumento de 58%. A análise abrange os contratos de convênios identificados com a rubrica do FIA e assinados em dezembro de 2008, quase dois meses após as eleições.

Além da média de R$ 30 milhões para estados e municípios, a Petrobras destinou R$ 10 milhões para aplicações do governo federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos.
Segundo a assessoria de imprensa da Petrobras, os repasses são reservados para regiões de "influência" de suas unidades e passam por análise dos projetos.

Ao contrário do que ocorre com convênios do governo federal, a estatal não recebe prestação de contas nem fiscaliza a aplicação de verbas. Isso caberia a conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente e ao Ministério Público. No caso de convênios com entidades sociais e ONGs, a falta de acompanhamento da Petrobras tem sido motivo de críticas do Tribunal de Contas da União.
'Não há facilidade, são bons projetos
Segundo o levantamento de repasses para estados e municípios, administrações controladas pela oposição (PSDB, DEM e PPS) ficaram com R$ 5 milhões, em boa parte alçados pelo R$ 1,7 milhão dos governos do Rio Grande do Sul da tucana Yeda Crusius e da Paraíba, firmado pouco antes da cassação definitiva de Cássio Cunha Lima.

Piauí (Wellington Dias), Bahia (Jaques Wagner) e Sergipe (Marcelo Déda) somaram R$ 3,8 milhões para o PT. O PSB está logo atrás, com R$ 2,4 milhões do Ceará (Cid Gomes), Rio Grande do Norte (Wilma Faria) e de Pernambuco (Eduardo Campos).

Em nível municipal, as prefeituras do PT se destacam no ranking, especialmente as do interior de São Paulo, reduto do partido.

Em primeiro aparece o aliado PDT, em Campinas, seguido de Jales (SP), município com 48 mil habitantes e renda per capita de R$ 11 mil. Segundo o prefeito, Humberto Parini (PT), os R$ 583 mil serão usados no entorno da cidade, local de muita necessidade. E disse que a verba é fruto de um bom projeto.

- Não há facilidade para o partido. Os projetos são bons e passam pelo crivo de uma comissão qualificada. Temos pessoas habilitadas e capacitamos nossos servidores. Assim, conseguimos trazer recursos - disse ele, afirmando haver 120 crianças no Programa Sentinela, vítimas de violência sexual, e 19 no abrigo da cidade.

Das 20 cidades com o maior aporte de recursos - de R$ 240 mil a R$ 660 mil - apenas três têm à frente a oposição.

Das 17 restantes, 11 são PT, entre elas Guarulhos, Diadema, Sumaré, Embu e Hortolândia, todas em São Paulo.

Além dos recursos do FIA, a Petrobras também firma convênios variados com estados e municípios para ações que variam de projetos sociais à construção de estradas. Nessa modalidade, nos últimos 12 meses, os partidos aliados também foram beneficiados.

Em meados do ano passado, Duque de Caxias (RJ), sob o comando de Washington Reis (PMDB), recebeu R$ 38 milhões para obras no anel viário e recuperação ambiental. Logo a seguir na lista está Cosmópolis (SP), que, com apenas 55 mil habitantes, amealhou R$ 13,5 milhões para construção de uma estação de esgoto. Segundo o prefeito Dr Antonio (PT), por meio da assessoria, a obra é uma contrapartida social: - Cosmópolis é vizinha da refinaria de Paulínia (SP), abriga funcionários da Petrobras e sofre impacto ambiental. O partido não tem nada a ver. Estamos reivindicando ajuda há dez anos, e vamos entrar com 30%.

O terceiro maior repasse é para Nova Iguaçu, comandada por Lindberg Farias (PT), que obteve R$ 12,5 milhões para restauração da mata atlântica. Outros exemplos incluem obras de rodovias em Alagoinhas (BA), também do PT, ou a construção de ginásio em Casimiro (RJ), do PMDB, por R$ 1,5 milhão.

Estatal nega critérios políticos
Petrobras diz que lei não a obriga a fiscalizar verbas repassadas

Além de negar que exista critério partidário na escolha dos projetos contemplados com verbas reservadas para o Fundo da Infância e Adolescência (FIA), a Petrobras informou, por meio de nota, que a legislação não prevê sua atuação na prestação de contas nem na fiscalização das verbas.

"Não há critérios políticos no repasse de recursos do FIA. A Petrobras seleciona os conselhos dos municípios do entorno e da região de influência das suas unidades de negócio, ou seja, os conselhos escolhidos nos municípios em que a empresa constrói e opera refinarias, terminais etc", informou em nota a assessoria de imprensa, sem especificar qual seria esse universo. A decisão final sobre os destinos dos repasses cabe aos diretores da empresa.

"Anualmente, o plano de repasses de recursos ao FIA é submetido à apreciação e aprovação da Diretoria Executiva da Petrobras", diz a assessoria da estatal.

Os recursos, após enviados à prefeitura, devem seguir para aplicação conforme projeto do conselho municipal de proteção à infância e adolescência, em ações de prevenção ou socioeducativas. A execução de ações pode ser feita por órgãos do governo ou ONGs.

A Petrobras fez referência aos artigos 95 e 96 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina que "as entidades governamentais e não-governamentais serão fiscalizadas pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares". Além disso, as prestações de contas devem ser, por lei, apresentadas ao estado ou ao município.

O Globo, 24/05/2009, O País, p. 3-4

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