Ciência Hoje, n. 244, dez., 2007, p. 50-55
31 de Dez de 2007
A invasão das monoculturas
O Desafio da Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Vincenzo Lauriola
Núcleo de Pesquisas de Roraima (NPRR), Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (NPCHS), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)
Arnaldo Carneiro Filho
Coordenação de Pesquisas em Ecologia (CPEC), Inpa
Jorge da Costa
Laboratório de Sistemas de Informação Geográfica (Siglab), Inpa
Gercimar Morais Malheiro
Coordenação do Projeto de Proteção e Vigilância de Terras Indígenas, Conselho Indígena de Roraima (CIR)
A presença de grandes plantações de arroz dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, representa o último grande obstáculo para a regularização fundiária dessa região. O governo federal demarcou a reserva em 1998, mas, na falta da homologação pelo presidente da República, protestos e ações judiciais levaram a uma revisão da decisão original e a nova demarcação em 2005, homologada em seguida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com isso, os ocupantes ilegais já deveriam ter sido retirados, mas o impasse continua. Duas questões importantes para o desfecho desse processo são a indenização a ser paga aos que entraram na área indígena de boa-fé e a compensação (descontada da indenização) pelos danos ambientais que a ocupação causou. O estudo da expansão dessas lavouras ao longo dos anos, com base na análise de imagens de satélite, pode ajudar a esclarecer muitas dúvidas e a alertar contra o pagamento de benefícios indevidos aos invasores.
Situada no extremo norte de Roraima, na fronteira do Brasil com a Guiana e a Venezuela, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com 1,7 milhão de hectares (ha) (figura 1), abriga cerca de 16 mil índios das etnias Taurepang, Macuxi, Wapixana, Ingarikó e Patamona. Essa grande área vem sofrendo, historicamente, vários tipos de ocupação por não-indígenas. Nas últimas três décadas, tais processos - que ocorrem em um contexto de indefinição fundiária geral e de conflitos particularmente ásperos ligados à demarcação dessa terra indígena - vêm se alastrando, e em alguns casos se intensificaram, apesar dos avanços registrados no processo de regularização de sua posse originária e uso exclusivo pelos povos nativos (figura 2).
Após um longo período de discussões e de estudos sobre a área a ser declarada como pertencente aos índios, o processo de regularização fundiária começou a se definir em 1998, quando a Portaria no 820, do Ministério da Justiça, demarcou a terra indígena, com extensão única e contínua de 1,678 milhão de ha. A portaria provocou reações contrárias, políticas e jurídicas, do governo de Roraima, de políticos do estado e de fazendeiros que ocupavam (e ainda ocupam) parte da área demarcada, impedindo o cumprimento da decisão.
Finalmente, em 2005, após o Supremo Tribunal Federal julgar improcedentes e anular diversas ações judiciais contra a demarcação, nova portaria no Ministério (no 534) redefiniu parcialmente os limites da terra indígena, agora com 1,74 milhão de ha. O aumento 'formal' da área, em relação à primeira portaria, é apenas aparente, pois deveu-se à maior precisão dos levantamentos geográficos. Na verdade, a área finalmente demarcada é pouco inferior à inicial, porque foram excluídos da terra indígena a sede do município de Uiramutã, equipamentos públicos (como linhas de transmissão de energia), o 6o Pelotão Especial de Fronteira do Exército e o leito de estradas estaduais e federais localizadas em seu interior. Além disso, a nova portaria prevê um regime de gestão compartilhada do Parque Nacional do Monte Roraima, localizado na divisa com a Guiana e a Venezuela. A portaria foi homologada em 15 de abril de 2005 pelo presidente da República, que estabeleceu o prazo de um ano para a retirada de todos os invasores. Esse prazo, porém, não foi cumprido.
As diversas formas de ocupação sempre geraram conflitos durante o processo de regularização fundiária. Uma das ocupações mais recentes é a expansão de monoculturas de arroz nas margens dos rios Cotingo, Surumu e Tacutu (figura 3) - os dois últimos marcam os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol a leste (com a Terra Indígena São Marcos) e ao sul (com áreas não-indígenas). Esses empreendimentos agroindustriais são responsáveis por importantes impactos socioambientais, que afetam três (Surumu, baixo Cotingo e Raposa) das quatro etnorregiões da área em questão (a quarta é Serras). Entre 2004 e 2005 os produtores de arroz (chamados de 'arrozeiros') e outros ocupantes não-índios da região promoveram inclusive agressões contra comunidades indígenas, missionários e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), que culminaram no incêndio e destruição de cinco aldeias e uma escola agrícola, técnica e ambiental, o Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, na antiga Missão Surumu (figura 4).
O prazo para retirada dos invasores terminou, mas os rizicultores continuaram ocupando áreas indígenas com suas lavouras. Tudo indica que a situação fundiária e de direito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol está finalmente resolvida, e que a retirada definitiva de todos os invasores depende apenas do tempo necessário para que as disposições legais sejam cumpridas. Entretanto, a contestação ao decreto prossegue: quando foi homologado, o governador de Roraima chegou a decretar luto oficial de sete dias, e novas ações são continuamente apresentadas à Justiça, embora as supremas cortes do país já tenham deliberado várias vezes sobre o assunto, julgando improcedentes todos os argumentos contrários. Ainda existem muitas questões em aberto no que diz respeito à retirada dos arrozeiros. Duas dessas questões, relacionadas aos aspectos jurídicos, políticos e econômicos da concessão de possíveis indenizações aos ocupantes não-indígenas da área, nos parecem relevantes: a existência ou não de 'boa-fé' nessa ocupação e o passivo socioambiental, ou seja, a compensação pelos impactos ambientais e sociais produzidos pelas lavouras durante todos esses anos.
A legislação determina que apenas os ocupantes 'de boa-fé', ou seja, os que se instalaram na área sem saber que era terra indígena, têm direito, ao ser removidos, a uma indenização pelas benfeitorias realizadas (construções, residenciais ou não, e outras instalações). A lei, por outro lado, também estabelece que, caso a ocupação não tenha respeitado as leis ambientais e/ou tenha produzido alterações e danos aos ambientes naturais e/ou às populações vizinhas, esses descumprimentos de normas e impactos devem ser compensados.
Cabe então perguntar: como esses dois aspectos da lei vêm sendo considerados no processo de remoção dos rizicultores da Terra Indígena Raposa Serra do Sol? Este trabalho teve como objetivo contribuir nesse sentido, levantando e tornando públicas algumas informações que podem subsidiar a plena aplicação das normas legais em vigor no país em Roraima, um recanto da Amazônia e do Brasil onde, infelizmente, a história passada e recente é repleta de ilegalidades cotidianas e crimes impunes.
A seguir são apresentados alguns resultados preliminares de um estudo que visa analisar e monitorar a presença de monoculturas naquela terra indígena, sua evolução no tempo e os impactos ambientais decorrentes. Para isso, dados obtidos pela análise de imagens de sensoriamento remoto (feitas por satélites) foram comparados com informações de campo fornecidas por indivíduos dos grupos indígenas que habitam a região estudada.
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Ciência Hoje, n. 244, dez., 2007, p. 50-55
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