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Índio é assassinado a facadas

A Crítica, Especial, p.A12-A13
12 de Jan de 2004

Índio assassinado a facadas
Crime aconteceu ontem ao pé da Serra Pacaraima, em Roraima. Outro Macuxi também foi atacado e saiu ferido

Gerson Severo Dantas
Enviado especial

Calma voltou a Boa Vista, mas na região próxima à reserva indígena Raposa Serra do Sol a situação ainda é de medo
Por volta de meio-dia de ontem, o índio macuxi identificado apenas como Conrado foi assassinado a facadas e Francisco Macuxi saiu ferido depois de uma discussão com um homem conhecido como Didi, que fugiu após praticar os crimes. As duas vítimas seriam ligadas ao grupo denominado Aleidicir, contrário à homologação em área contínua da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, no Nordeste do Estado de Roraima. Segundo um funcionário da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) que transportou Francisco Macuxi para ser medicado em Boa Vista, o conflito teria sido causado por disputa de cachaça. Com isso, aumentou a tensão nos municípios e pequenas localidades dentro da reserva indígena.
A tranqüilidade só voltou a Boa Vista, depoIs de sete dias de confrontos entre as pessoas favoráveis e as que são contrárias à homologação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em uma área contínua de 1,75 milhão de hectares, equivalente a 7,7% da área total do Estado. A última frente de confronto ria capital, a ocupação do prédio da Fundação Nacional do Índio (Funai), terminou no sábado à noite, quando aproximadamente 300 índios favoráveis à homologação em áreas descontínuas deram por encerrada esta fase do protesto e retomaram às aldeias.
A tensão foi provocada pela declaração do ministro da justiça, Márcio Thomaz Bastos, de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologará a reserva que ainda permanece em aldeias localizadas dentro de municípios que terão de desaparecer, com a retirada total dos que não são índios. Em Uiramutã, por exemplo, são mil pessoas que terão de sair de terras habitadas por ancestrais há quase cem anos. A retirada dessas pessoas criará problemas, principalmente para os idosos, que não sabem como vão se adaptar à nova vida onde quer que seja, e famílias, muitas constituídas a partir da união de indígenas com migrantes de outros Estados.
Lamento
No último caso é tocante a situação da macuxi Adelaide Cavalcante, 29, há oito anos casada com o piauiense Francisco Valdnar Lima dos Santos, 40, com quem tem os filhos Raphaele, Reneres e Camille. Com lágrimas nos olhos, ela diz que vai seguir com o marido, mas sua vida ficará destruída porque não andará mais pelas regiões onde nasceu, se criou e não poderá mais mostrar aos filhos. Sempre emocionada, ela lembra ainda que não verá mais uma série de parentes, avós, tios, primos e sobrinhos, que ficarão na reserva. "Falam em indenização, mas como é que se paga um sentimento? Para mim, esta situação é semelhante a de um desmame de criança, que nunca mais terá o peito da mãe para se alimentar", disse ela. A família inteira não tem planos e apenas espera os acontecimentos.
Adelaide, por exemplo, conta que saiu de Uiramutã, completou o ensino médio em Boa Vista e voltou para sua cidade visando ajudar na formação dos irmãos índios, mas agora não sabe se poderá se adaptar à vida em uma cidade maior. "O mais engraçado nesta história toda é que eles (os favoráveis à homologação em terras contínuas) falam que têm de expulsar os brancos, mas quem são os representantes deles? Padres, estrangeiros e gente ligada a ONGs", critica. "Falam que nós somos manipulados por produtores rurais, mas será que eles também não estão sendo manipulados pelos padres e pelas ONGs?", questiona.

Morador diz ter saudade da paz
Filho do primeiro "homem branco" a pôr os pés na região de Uiramutã - o guarda de fronteiras Severino Mineiro com a índia macuxi Vitória -, o aposentado Olavo Pereira dos Santos, 83, está triste com a situação de conflito estabelecida na região. Ele lembra que tudo era paz neste canto do Brasil, com índios e não índios vivendo em parceria e guarnecendo o território do País. "Esta situação foi criada pelos padres há pouco mais de dez anos, p,pis antes tudo era tranqüilidade. Eu mesmo morava na fronteira, conhecia e me dava bem com os índios de todas as etnias. Vi, ao lado de meu pai, o marechal Rondon passar por estas áreas", conta.
Praticamente expulso da fronteira, na década de 90, Olavo voltou a viver na sede do Município de Uiramutã, onde passou a cultivar uma roça de subsistência e a trabalhar com tanques de piscicultura, onde cria tambaquis, cará-açu, aracu, branquinha e dois impagáveis surubins, batizados de Rômulo e Romero.
Os surubins têm mais de 2 anos e não foram parar na panela por terem se tornado bichos de estimação de Olavo, que chama os dois pelos nomes na hora de dar a ração. Surpreendentemente, os peixes atendem ao chamado do aposentado e saem de onde estiverem no tanque para receber os afagos do homem que só viu a "cidade grande" de Manaus em 1942, quando o principal divertimento da tropa (Batalhão de Caçadores) onde servia era passear no longínquo bairro de Flores, Zona Centro-Oeste de Manaus. "Era muito longe, meu filho", ressalta, sem ter a menor idéia de que hoje Flores está quase no Centro da cidade.
Preocupação
0 mais velho habitante da região, o aposentado José Júlio Pereira da Silva, o "Maçaranduba", 105, foi tuxaua dos macuxis por longo período e também vê com tristeza a cisão entre os grupos favoráveis e os contrários à homologação da reserva em área contínua. "Vejo que a presença do município e das estradas aqui em Uiramutã é boa para nós e fico preocupado com o possível fim do município", diz, acrescentando que uma homologação justa vai acomodar os interesses de todas as partes. "Isso pode acontecer".
Neta de "Maçaranduba", Lúbia Silva Pereira, 38, afirma que a vontade do povo de Uiramutã deveria ser levada em conta na hora de se tomar uma decisão tão importante. Ela lembra que, hoje, os descendentes de índios e os próprios indígenas são cidadãos brasileiros, votam em eleições e até ajudaram a criar um município. "Quando retiraram as fazendas de gado, a situação ficou difícil para nós. Agora querem tirar os arrozeiros e os municípios. Como ficaremos?", analisa Lúbia.
A preocupação com o futuro também afeta a dona de casa Valdiza Queiroz da Silva, 56, que teme ser jogada na periferia de uma cidade maior. "Não sei para onde vão me botar, eles (Governo Federal e os índios favoráveis à homologação em área contínua) precisam respeitar os velhos, pois minha vida e minha honra estão aqui. 0 que será de mim em outro lugar?", questiona.

Belezas podem ficar escondidas
A homologação em área contínua dos 1,75 milhão de hectares da reserva Raposa/Serra do Sol vai privatizar uma das regiões mais belas do Norte brasileiro, nos Municípios de Uiramutã e Pacaraima. Chega perto de ser crime o fato de, em nome dos erros cometidos pelos brasileiros do passado, os brasileiros de hoje não puderem conhecer regiões onde estão cadeias de montanhas e serras belíssimas, onde nascem rios como o Cotingo e o Uiracuera, excelentes para a exploração do ecoturismo e do turismo de aventura.
A beleza das corredeiras do Cotingo, em Uiramutã, equiparam-se em esplendor aos melhores cartões postais do rio Negro em São Gabriel da Cachoeira (a 858 quilômetros de Manaus). 0 rio tem também grande potencial para a prática da pesca esportiva, mas infelizmente deverá ser fechado se a homologação de Raposa/Serra do Sol for feita em área contínua.
Esse tipo de homologação também obrigará o fechamento de estradas, como a RR-106, que dá acesso a Uiramutã e Georgetown, nas Guianas, onde um porto graneleiro poderia escoar parte da safra de grãos do Estado. Essa estrada, que corta serras muito belas, em dias de chuva deixa o visitante a poucos metros de distância de arco-íris, que em profusão colore o céu a quase mil metros de altitude. Para os que acreditam em lendas, não custa lembrar que no fim do arco-íris sempre existe um pote de ouro.
Por falar em ouro, a região toda é rica neste mineral, mas a exploração mecanizada está proibida, sobrando apenas a opção da busca com velhas bateias, como faz diariamente um grupo de dez brasileiros, comandados por Rui Pereira da Silva. Usando técnicas ainda da época da colonização, ele e os amigos juntam não mais do que três gramas por dia, o que dá uma renda de R$ 60. "Quando dá para pegar dez gramas, já vale a pena ir a Boa Vista, onde o preço alcança até R$ 35", afirma Rui.
A estrada também possibilita o acesso à cachoeira do Urucá, uma queda d'água de uns 30 metros que forma uma piscina natural de águas verdes semelhantes a das melhores praias do Nordeste. 0 percurso é só para aventureiros e corajosos em geral, pois para chegar lá é preciso subir mais de mil metros de serra, de onde se pode avistar o Monte Roraima, o segundo maior do Brasil atrás apenas do Pico da Neblina, no Amazonas.
Em seguida inicia-se uma descida do mesmo tamanho. 0 sacrifício compensa largamente, pois a beleza do lugar é fora de série.

Maioria apóia decisão, do governo
Um grande conflito entre índios de mesma etnia poderá acontecerem Roraima por conta da decisão de homologarem área contínua, com o fim de Uiramutã e o fechamento das estradas. 0 administrador em exercício da Funai em Boa Vista, Gilberto Tavares, favorável ao projeto do governo, diz que o Conselho Indigenista de Roraima (CIR) congrega hoje mais de 10 mil índios, contra pouco mais de 3 mil associados em grupos favoráveis à homologação em áreas descontinuas. 0 outro lado inverte a ordem destes números. "Oitenta por cento dos índios do Estado estão conosco" diz o tuxaua da comunidade Santa Creuza, em Uiramutã, Pedro Celson da Silva. Seja para que lado for, pode ser deflagrada uma briga gigante entre estes índios, que contam com apoios de grupos que há muito têm interesses conflitantes: católicos, protestantes e produtores rurais. Os índios ligados ao CIR, à Funai e à Igreja Católica têm apoio nacional, no Congresso e no Executivo por meio dos movimentos sociais ligados aos partidos de esquerda, hoje no poder. Isso favorece a mobilização da Polícia Federal e do Exército em defesa deles, por exemplo. Por meio da igreja eles também conseguem apoios internacionais importantes e capazes de pressionar o governo brasileiro. Assim que começou a crise da semana passada, por exemplo, as informações correram o mundo nas ondas da rádio Vaticano, que alcança cem países, dentre os quais alguns que têm negócios vitais para o Brasil, como a Espanha, um dos que mais investem no Brasil. Os índios favoráveis à homologação em áreas descontínuas têm nas mãos o apoio da quase totalidade da população roraimense, principalmente de Boa Vista. A força deles, contudo, vem da parceria com rizicultores (plantadores de arroz), cuja maior plantação se encontra justamente dentro da Raposa/Serra do Sol, e com igrejas evangélicas, a mais praticada por este grupo de índios.
Tuxaua da comunidade Flexal de maioria batista, Lauro Barbosa, 47, alega que sozinhos eles não vão conseguir sobreviver na Raposa/Serra do Sol e, se for preciso, vão radicalizar na defesa dos interesses que, conforme ele, é de brasileiros e não de índios e "arrozeiros": "Nós aqui não estamos sendo manipulados, como eles acusam. Agora, do outro lado só tem ONGs e padres estrangeiros, onde está a manipulação?" , indaga. 0 mesmo argumento é repetido por índios que habitam a comunidade de Socó, na entrada de Uiramutã, onde d produzido o feijão que abastece o município e cujo excedente é vendido para Boa Vista gerando renda para a comunidade. Em Contão, onde vivem cerca de mil índios macuxis, o tuxaua Genival Costa da Silva, afirma que a briga deu um tempo, mas se os interesses dos favoráveis à homologação em terras descontinuadas não forem respeitados, haverá derramamento de sangue. "Não vamos aceitar pacificamente uma minoria chegar aqui e dizer como devemos viver" ameaça.

Ligações com o Amazonas
0 Estado de Roraima tem uma forte ligação com Manaus e concentra algumas histórias muito curiosas. Diz-se em Boa Vista, por exemplo, que Manaus está para o Estado como Miami, nos Estados Unidos, está para os novos ricos brasileiros. Os endinheirados locais, e até mesmo os nem tanto, aproveitam feriados prolongados para conhecer os lugares da moda da capital amazonense e assistir a shows de artistas nacionais que se apresentam nos finais de semana. "Em sete horas estamos lá, assistimos o show e voltamos ainda com tempo de descansar antes de voltar a pegar no batente", diz o assessor parlamentar Roberto "Xuxa", que tem vários amigos em Manaus e devolve a gentileza da hospedagem quando eles vêm à capital roraimense a em eventos como o "Boa Vista Folia", o carnaval fora de época.
No campo das histórias curiosas, existem pelo menos três. A primeira é a do Monte Caburaí, que destronou Oiapoque, no Amapá, do posto de ponto mais ao Norte do Brasil. A descoberta do Caburaí obrigou o desmonte de uma das expressões mais usadas pelos brasileiros para se referir a algo que é nacionalmente sabido ("do Oiapoque ao Chuf' todo mundo sabe).
Em Roraima, mais precisamente na Vila Pereira, localidade fundada pelo armador amazonense João Pereira da Silva para servir de entreposto comercial, teria vivido o lendário fugitivo francês Papillón (borboleta), história imortalizada pelo cinema no filme "Papillón", do diretor Alan J. Pakula e com Steve McQueen no papel principal. De acordo com habitantes do lugar, lá viveu por mais de 20 anos um certo Renê Scher, que alguns defendem ter sido o Papillón. A principal evidência para isso é de que Scher jamais foi visto sem camisa para não mostrar a tatuagem de borboleta que lhe emprestou o apelido. Outros, contudo, defendem que Renê Scher foi na verdade um dos prisioneiros que fugiram com Papillón, que teria morrido na Venezuela usando seu nome de batismo, Henri Charlier.
Outra história curiosa diz respeito ao "herói sem caráter", que supostamente seria o símbolo do brasileiro, Macunaíma, criação genial do modernista Mário de Andrade. Segundo o livro, Macunaíma, que não teria nascido (quem já leu o livro ou viu o filme sabe do que se fala aqui) veio ao mundo na cabeceira do rio Uraricuera, um dos mais bonitos do Estado. Por último, e ainda no campo literário, diz-se por aqui que foi no Monte Roraima, o segundo maior do Brasil, que o inglês Arthur Conan Doyle criou o também clássico livro "Viagem ao Fim do Mundo".

Municípios ameaçados de extinção
A homologação de reservas indígenas em Roraima implica no desaparecimento dos Municípios de Uiramutã e Pacaraima que, juntos, têm pouco mais de 10 mil habitantes (Censo 2000). juridicamente, a situação de Pacaraima já está resolvida, pois a reserva de São Marcos foi homologada em 1995 e o Município só foi criado um ano depois, tendo agora de ser desativado, apesar de ter toda a infra-estrutura de hospital, escolas, estradas, bancos e um comércio incipiente.
A situação de Uiramutã é diferente, pois o Município foi criado em 1996 e até agora a Raposa/Serra do Sol não foi homologada. "Uiramutã existe desde 1911, quando aqui chegaram os primeiros guardas de fronteiras, mas o Município foi criado em 1996 com um plebiscito feito com a participação de todos, índios e não índios", conta a prefeita Florany Mota (PT), 30.
Até o. reconhecimento de Raposa/Serra do Sol como terra indígena é posterior à criação do Município, pois a portaria com este teor foi baixada em 1998, pelo então ministro da justiça Renan Calheiros.
Florany conta que a disputa entre os dois grupos poderia ser resolvida com diálogo, mas os favoráveis à homologação em terras contínuas estão pouco dispostos a sentar-se à mesa de negociação. Ele defende uma homologação que integre os interesses de todas as partes. "Essa situação deixa todos intranqüilos, pois administrar um pequeno e pobre município da Amazônia já é difícil, imagine administrar numa situação de conflito", declara.
A prefeita conta que já conseguiu recursos da Caixa Econômica Federal para a construção de 200 casas de alvenaria, mas o Conselho Indigenista de Roraima FCIR) entrou com um recurso na justiça e até hoje o dinheiro não saiu. A mesma coisa aconteceu com recursos do Orçamento da União destinados à urbanização do Município. "A emenda foi aprovada, mas o dinheiro não chegou por causa dos recursos do CIR", denuncia.
Buscando alternativas para o fim da pecuária na região, uma vez que fazendeiros foram retirados depois da homologação da reserva de São Marcos, Florany Mota estava tentando recursos junto à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) para o desenvolvimento da piscicultura, mas novamente o conflito atrapalhou o processo.
Os confrontos também ocasionaram desperdício de dinheiro público, pois o Estado construiu uma pista de pouso, homologada pelo Departamento de Aviação Civil da Aeronáutica (DAC), e logo após a inauguração, índios com o apoio do CIR construíram diversas casas em cima da pista e fundaram uma aldeia, hoje desativada. "Antes de desativar, a construção cumpriu com o objetivo, que foi destruir a pista", reclama Florany Mota.
Serviço
NOME: Uiramutã
Localização: Nordeste de Roraima
Área: 8.055 quilômetros quadrados
Altitude: 804 metros acima do nível do mar
População: 5.802
Distribuição: Sede e mais 30 comunidades, a maioria indígena
Eleitores: 2.276
Orçamento: Até R$ 80 mil/mês
Funcionários públicos: 130
Infra-estrutura: Hospital, duas escolas e uma unidade - militar, o 6o Batalhão Especial de Fronteira
Fronteira: Está a três quilômetros da Guiana inglesa, cujo limite natural é o rio Maú
Fonte: IBGE

A Crítica, 12/01/2004, p. A12-A13.

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