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Indefinição do governo sobre bolsas de permanência ameaça indígenas e quilombolas na universidade

Sul 21 https://www.sul21.com.br/
Autor: Fernanda Canofre
07 de Jun de 2018

Quando Ruan Marco Trindade, 17 anos, se matriculou para cursar Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no início do ano, ele calculou que teria auxílio-moradia, passagens de ônibus e uma bolsa de R$ 900 para se manter. Todos os auxílios previstos no Programa de Bolsa Permanência (PBP), criado pelo governo federal em 2013, para ajudar indígenas e quilombolas a seguir no ensino superior.

A abertura para as inscrições, porém, atrasou. Primeiro, foi adiada de janeiro para março. Depois, o governo parou de falar em novas datas. Seis meses depois, Ruan, assim como outros milhares de estudantes que deveriam ser abrangidos pelo programa, seguem sem qualquer definição do Ministério da Educação (MEC) sobre quando poderão contar com o auxílio. Morando na Casa do Estudante, ele conta com ajuda para se manter.

"É difícil. Tem que recorrer, na maioria das vezes, aos pais ou à própria galera daqui mesmo. A gente se ajuda, faz mutirão. Nosso único recurso é ir para fora, outras cidades, para fazer apresentações, para ver se consegue alimentos também", conta ele.

Natural do Paraná, Ruan mora desde os 6 anos em Porto Alegre, na Terra Indígena Fágnhin, na Lomba do Pinheiro. O primo dele, de 21 anos, que havia começado a cursar Medicina no início do ano, sem a bolsa, acabou desistindo do curso depois de dois meses. "Final de semana, como o dinheiro era curto, já tinha pouco auxílio, ficava sem comer nada", diz Ruan.

Na semana passada, em uma audiência de estudantes indígenas e quilombolas de todo o país com o novo ministro da Educação, Rossieli Soares, foi anunciado que para este ano seriam disponibilizadas 800 bolsas. Porém, segundo movimentos, a cada ano, há entre 4 e 5 mil estudantes indígenas e quilombolas ingressando no ensino superior em todo o país. Além disso, o governo propõe que os próprios estudantes criem critérios para determinar quem teria direito à bolsa.

"Não aceitaremos isso, jamais. A ideia do governo é que briguemos internamente para decidir quem deve receber ou não a bolsa, nos tornando fracos e desunidos. É impossível escolher entre os oprimidos quem é o mais vulnerável. Todos estão no mesmo nível de vulnerabilidade e precisam do subsídio da mesma forma", diz a estudante de Psicologia Charlene Bandeira, da Universidade Federal de Rio Grande (FURG).

Charlene pertence ao Quilombo dos Macanudos, a única comunidade quilombola de Rio Grande. Para ela, a bolsa representa uma garantia de permanência dentro da universidade para toda essa população. Ela conta, porém, que atrasos de pagamentos são constantes. Alguns quilombolas que integram o Coletivo Quilombola FURG, como ela, chegaram a ficar um ano sem receber os depósitos.

Colega dela no coletivo, Bruna Farias, também estudante de Psicologia, vem da comunidade quilombola de São Manuel, em Piratini, a cerca de 150 km de distância de Rio Grande. Ela e o irmão estão entre os primeiros do lugar a entrar no ensino superior.

"Acho que estar na universidade reflete a constante luta que temos. Antes desse processo, eu não me via estudando porque o gasto é imenso. O deslocamento se torna caríssimo, mais alimentação e itens básicos. Eu vivo só da bolsa porque meu pai não recebe muito", relata.

Política de governo
"É um jogo de forças e nós estamos perdendo", diz Marcos Kaingang | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para o estudante de Direito da UFRGS, Marcos Vesolosquzki Kaingang, a oferta de apenas 800 vagas é "um tapa na cara" de indígenas e quilombolas e uma "migalha". Ele lembra que o Programa de Bolsa Permanência (PBP) ainda funciona como decreto, o que facilita para que o governo que estiver no poder jogue com números de pessoas atendidas e datas-base de pagamento.

"Anterior a isso, a evasão era muito grande, era muito difícil a permanência no ensino superior. Ela ainda continua, porque entre os fatores de evasão está assistência estudantil, racismo institucional, entre outros. Mas um dos fatores principais é o quesito financeiro, por não ter onde morar, como se alimentar", diz ele, que é natural da Terra Indígena Nonoai, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, próxima a Chapecó.

Marcos diz que, só no Rio Grande do Sul, a cada ano, há cerca de 180 indígenas ingressando no ensino superior. Enquanto na UFRGS, entram cerca de 10 alunos indígenas por ano; a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) registra 20. Segundo os quilombolas, apenas três universidades - FURG, UFPel e Unipampa - possuem possibilidade de ingresso especial a eles.

"É um jogo de forças e nós estamos perdendo. Em meio a isso, estão jogando com direitos fundamentais e nós estamos perdendo a chance de permanecer no ensino superior de maneira digna, com condições para isso. Tem outra questão que é pano de fundo: é do momento atual, a presença indígena no ensino superior. Esses sujeitos estão ocupando os espaços e buscando outras formas de luta. Como se corta isso pela raiz? Pela assistência estudantil", analisa Marcos.

Assim como ele, Charlene também acredita que o travamento do PBP é parte da linha política adotada por Michel Temer (MDB). "Esse governo nunca teve como prioridade a educação ou questões sociais. Essa proposta, para além de ser um desrespeito com a luta de um povo a quem esse país muito deve, é uma tentativa de retroceder nos poucos avanços de políticas públicas e de ações afirmativas".

UFRGS cria bolsa especial para calourosPara ajudar os alunos que ingressaram este ano, a UFRGS criou uma espécie de auxílio emergencial aos calouros. A universidade paga R$ 530, apenas durante o primeiro ano, até que o governo defina o que fará com a bolsa permanência.

"O MEC, desde o início do ano, tem se esquivado, diz que está pensando, que o problema é buscar recursos para poder reabrir o programa, mas até semana passada não tinha dado nenhuma posição definitiva. Nem que não iria abrir, nem que iria abrir. Há duas semanas, teve o Fórum de Pró-Reitores da Assistência Estudantil, em Brasília, onde o secretário de assuntos estudantis esteve presente e, novamente, disse que o problema era recurso e estavam buscando", relata Suzy Camey, pró-reitora de assuntos estudantis na UFRGS.

O Ministério da Educação, segundo ela, também tem empurrado para a universidade a tarefa de prestar contas aos alunos, sendo que a instituição é apenas intermediária do programa. As universidades recebem os recursos do governo federal e repassam aos estudantes do programa. Elas não têm os valores previstos em suas receitas. A pró-reitora lembra, no entanto, que com o auxílio que vem sendo prestado, o orçamento apertado e sem reajuste há dois anos, da assistência estudantil, está ainda mais sobrecarregado.

"É uma situação muito ruim e a gente, claro, teme pelo futuro desse programa. O ano passado já teve um atraso bem grande no início do pagamento das bolsas. Teve aluno que só começou a receber em outubro", lembra.

Procurado pela reportagem, o MEC confirmou a proposta de 800 bolsas e alega que "o Programa Bolsa-Permanência vem sendo executado normalmente, sem corte ou descontinuidade". O ministro estaria apenas aguardando a conclusão de tratativas com lideranças dos estudantes para definir o andamento da próxima fase. Além disso, como o programa não funciona por edital, depende de aberturas de janelas específicas.

A pasta não soube informar quantas bolsas eram oferecidas em anos anteriores, para efeitos de comparação com o número que deve ser disponibilizado este ano. O MEC disse apenas que cerca de 18 mil estudantes dependem do PBP hoje no Brasil. Também não houve resposta sobre se o próprio ministério estaria prestando ajuda temporária para quem está à espera da bolsa.

Enquanto isso, movimentos sociais e grupos, como o Coletivo Quilombola da FURG, estão se organizando junto a apoiadores para denunciar a situação e brigar pela manutenção do Programa. Várias organizações, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), assinaram uma nota lançada nesta quarta-feira (6), pedindo "permanência já".

"Não é só questão de cortar bolsa e o quanto impacta. Isso envolve o sucateamento do ensino superior, mas tu não começa sucateando a universidade. Começa sucateando as condições dos sujeitos de permanecer nela. É todo um interesse e um jogo estrutural da sociedade, mais complexo. Os sujeitos que estão no meio disso conseguem perceber facilmente", diz Marcos.

https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/06/indefinicao-do-…

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