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Incra vai a justica para reaver 'lote de luxo'

OESP, Nacional, p.A10
15 de Fev de 2004

Incra vai à Justiça para reaver 'lote de luxo'
Parte de um assentamento em Pernambuco foi vendida por R$ 40 mil a empresário português, que construiu uma grande casa no local
Ângela Lacerda
Enviada especial
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) vai entrar na Justiça para reaver uma parcela de terra do Assentamento Amaraji, em Rio Formoso, vendida irregularmente pelo parceleiro José Francisco Xavier ao empresário português Raul Fonseca. O empresário, que adquiriu a área por cerca de R$ 40 mil, está disposto a fazer um acordo com o Incra. Mas, se isso não for possível, ele vai enfrentar a batalha judicial.
A disputa é mais um capítulo na campanha de moralização dos assentamentos iniciada pelo Incra no ano passado - e que desde então não cessa de revelar irregularidades nas áreas destinadas à reforma agrária. A venda irregular de lotes é uma das mais comuns.
O empresário, que adquiriu o terreno há mais de dois anos, é sócio da Pousada Resort dos Carneiros, que fica ao lado do assentamento. Deu início à construção de uma grande casa, com piscina, baia de cavalos, muro de pedra e pequenas casas de apoio, como a do caseiro. Já na fase do acabamento, as obras foram paralisadas por causa do processo com o qual o Incra quer reaver o terreno.
O empresário investiu no local sabendo do risco, adquirindo-a sem documentação legal, já que as terras destinadas à reforma agrária pertencem à União. "Ele confiou na impunidade", diz o superintendente regional do Incra, João Farias, ao lembrar que até agora nunca houve no Estado uma retomada judicial de lote de assentamento negociado irregularmente.
Frustrante - Farias, que aguarda uma manifestação da Procuradoria Jurídica do Incra sobre o encaminhamento do caso, diz que a venda do lote ao empresário é um caso emblemático, mas não único.
Irregularidades semelhantes, de venda ou arrendamento, já foram detectadas nos três assentamentos de Rio Formoso - Amaraji, Manguito e Serra d'Água.
O superintendente acha que o esforço para se identificar irregularidades tem sido bem-sucedido. O mesmo não se pode dizer, no entanto, da recuperação dos lotes. Até agora nenhum deles foi recuperado pelo Incra.
"É frustrante", afirma Farias, que atribui o insucesso à falta de pessoal técnico. No momento ele está montando e treinando uma equipe de funcionários que vai se dedicar exclusivamente à retomada de lotes ocupados irregularmente.
O empresário português tem evitado polemizar abertamente com o Incra. Ele comenta, no entanto, que estranha o fato de não ter aparecido nenhum funcionário do instituto durante o período de quase dois em que foi construindo gradativamente a casa. Nunca recebeu nenhuma notificação de irregularidade.
Fonseca disse que aguarda ser convocado para uma reunião com representantes do Incra, quando seria negociado um acordo em torno da propriedade. Uma das alternativas, segundo ele, seria o Incra indenizá-lo pelo casarão, que fica num local paradisíaco - no alto de uma colina, com uma visão deslumbrante das Praias de Guadalupe e dos Carneiros.
Improdutivos - Embora o Incra dê ênfase à questão da ocupação irregular de lotes, que visita a região de assentamentos onde o empresário comprou a casa, logo percebe que o problema é bem mais vasto.
Muitos dos parceleiros não produzem nada no lote que receberam.
Transformaram latifúndios improdutivos em minifúndios improdutivos.
Na área de Amaraji, os assentados estimam que apenas um terço das famílias que o Incra instalou ali estejam produzindo. Como se trata de região turística, a maior parte prefere procurar emprego nas pousadas e hotéis. De acordo com os gerentes destes empreendimentos, a maioria de seus empregados é proveniente do assentamento.
É o caso de Ivanildo Silva, de 29 anos, levado há cinco anos com a família para o assentamento. Ele é garçom na Pousada Resort dos Carneiros, recebe salário mínimo e não tem intenção de se tornar agricultor.
Na parcela de Sebastião Luiz de Lima, de 59 anos, no mesmo assentamento, está vivendo o seu filho Orlando Lima, de 26. Viúvo, Sebastião foi morar com a dona de outro lote. Na quinta-feira, ao receber a visita da repórter, encontrava-se no terraço da casa com a mulher, o filho, uma irmã e sobrinhos. Conversavam e olhavam o tempo. Indagado sobre o trabalho agrícola, disse que havia plantado somente um pouco de macaxeira, para a família. E lamentou estar desempregado. Em volta dele, terra aparentemente fértil e sem uso.
José Xavier Francisco, o ex-assentado que vendeu o lote para o empresário português, hoje é dono de bar. Está instalado numa área pertencente a outro empresário, Roberto Bezerra, dono do hotel Fazenda Amaraji e um dos sócios da Pousada Resort dos Carneiros. (Colaborou Roldão Arruda)

'Fraudes são uma calamidade', diz superintendente
Roldão Arruda
"Uma calamidade". Essa foi a expressão usada pelo superintendente substituto do Incra do Mato Grosso do Sul, Valdir Perius, ao definir o resultado dos levantamentos que feitos no Estado para apurar irregularidades nos assentamentos agrários.
De acordo com suas informações, existem 110 assentamentos no Estado, com um total de 16 mil lotes. O Incra já vistoriou 5 mil deles e constatou que, na média, 40% estão ocupados de forma irregular. "Encontramos um assentamento em que 60% dos lotes foram negociados nos primeiros três anos do projeto", disse Perius.
Entre os assentamentos com maior grau de irregularidades ele citou os que estão localizados nos municípios de Querência, Sidrolândia e Itaquiraí.
Também disse que, embora a fiscalização no Estado tenha começado pelas áreas mais conflituosas, que acumulavam maior número de denúncias, as irregularidades são generalizadas. "Está claro para nós que existe um verdadeiro comércio de lotes no Estado."
A ação no Mato Grosso do Sul faz parte de uma campanha nacional do Incra que visa moralizar os assentamentos da reforma agrária. Na opinião de Perius, o número elevado de irregularidades pode ser atribuído a diversos fatores. "As famílias não são bem selecionadas na hora da implantação do assentamento", diz. "O modelo de reforma agrária em vigor não corresponde às expectativas de muitas delas."
Ele observa que os lotes são freqüentemente negociados por pequenos valores: "Um Corcel velho, uma Lambreta, uma casinha na cidade, tudo vale.
Muitos ficam no lote até receber o dinheiro do financiamento do Pronaf e depois somem."

Ações contra venda ilegal têm apoio de Stédile
A coordenação nacional do Movimento dos Sem-Terra (MST) considera positiva as ações do Incra que tentam moralizar os assentamentos da reforma agrária.
De acordo com um de seus principais dirigentes, João Pedro Stédile, a venda de lotes é vedada pelas normas internas do movimento - reforçando a proibição já contida na lei da reforma agrária.
Ele destaca que os casos de venda ilegal denunciados pelo Incra se localizam sobretudo nos projetos de colonização na região amazônica, que, a rigor, nem seriam parte da reforma agrária. "O censo realizado pela Esalq/USP já havia mostrado que a desistência dos lotes acontece basicamente na região amazônica, onde são distribuídas terras públicas ou terras virgens, sem estradas, sem atendimento médico, comércio, enfim, sem nenhuma condição de civilidade", diz. "Os pobres desanimam e acabam entregando a terra para os pecuaristas."
Na opinião de Stédile, isso reforça a idéia defendida pelo MST de que é preciso parar com os projetos de colonização em regiões de fronteira agrícola e distantes. "O custo da infra-estrutura é muito alto, inviabilizando o progresso e o bem-estar das pessoas."
Qualidade - Para o presidente da Sociedade Rural Brasileira, João de Almeida Sampaio Filho, as irregularidades apontadas pelo Incra confirmam as críticas que já vinham sendo feitas à política de reforma agrária - que teria privilegiado sobretudo a quantidade de assentamentos.
Ele afirma que o melhor caminho seria dar mais atenção à qualidade.
"Infelizmente, não foi isso que vi nos textos do Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado pelo Plínio de Arruda Sampaio e que o Incra quer executar", diz. "A principal preocupação continua sendo a obtenção de terras, a qualquer custo, para a criação de novos assentamentos". (R.A.)

'Assentado não é cobrado pelo governo'
Professor da USP critica política que privilegia as metas quantitativas
As vendas irregulares ou abandono de lotes da reforma agrária só vão acabar quando os assentados forem efetivamente cobrados pelo governo. Essa é a opinião do professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), que coordenou, em 2002, o estudo A Qualidade dos Assentamentos da Reforma Agrária Brasileira, encomendado pelo governo federal e considerado um dos mais abrangentes já feitos sobre o assunto.
Estado - As irregularidades divulgadas pelo Incra surpreendem o senhor?
Gerd Sparovek - Elas não são novidade para quem convive regularmente com os assentamentos ou observe as pesquisas sobre o assunto. As vendas irregulares realmente são muito freqüentes, o que é indesejável. Os primeiros assentados recebem a maioria dos benefícios (crédito, Pronaf), vendem a madeira que ainda pode ser extraída do lote e vão embora. Quem vem depois tem um caminho mais difícil. Mas mesmo assim fica no lote. Ele faz isso porque a realidade que enfrentaria fora é ainda pior. Esse argumento justifica a reforma agrária. Se mesmo mal conduzida ela atrai agricultores, imagine se andasse bem.
Estado - O elevado grau de irregularidades não seria um indicador do fracasso da reforma?
Sparovek - O impacto deve ser medido pela conversão do latifúndio improdutivo na matriz produtiva baseada na agricultura familiar. Aqueles que se beneficiaram estão, pelo menos, subsistindo com uma qualidade de vida melhor do que aquela que teriam sem a reforma. Não importa se quem está lá é o beneficiário original. O importante é que tenha melhorado de vida.
Estado - A que atribui tantas irregularidades?
Sparovek - Acho que são vários fatores combinados. A dívida assumida pelo assentado não é cobrada pelo governo. Muitos acreditam que a reforma distribui terras, quando na verdade ela financia. Por outro lado, a preocupação com o assentado diminui logo após a criação do assentamento. A conta sempre foi de entrada e não de permanência ou evolução do programa. As metas sempre foram quantitativas.
Estado - O professor Xico Graziano, outro estudioso da questão, vê nas irregularidades o resultado da ausência de uma política de reforma agrária.
Para ele, os governos correm para atender o Movimento dos Sem-Terra.
Sparovek - Concordo que há falhas de planejamento. Os resultados poderiam ser melhores. Mas discordo de generalizações. Nos assentamentos há milhares de pessoas que vivem lá por sua própria vontade, para as quais a realidade seria mais cruel se não tivessem tido acesso à terra. Com seu trabalho na terra se sustentam e mantêm as famílias unidas.
Estado - Por que o Incra está interessado em divulgar as irregularidades?
Sparovek - Imagino que desejam criar um ambiente favorável para mudanças. Os muitos que se beneficiam das práticas irregulares, que incluem parte dos movimentos sociais e de representação de classe e, eventualmente, as forças políticas dominantes nos municípios, vão se opor à moralização. (R.A.)

OESP, 15/02/2004, p.A10 (Nacional)

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