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Idéias subnutridas

OESP, Notas e Informações, p. A3
15 de Abr de 2008

Idéias subnutridas

Se a ONU quiser mesmo combater a fome e a alta de preços da comida - dois fatos nem sempre associados -, terá de basear sua política em algo muito mais sério que a pregação do sociólogo suíço Jean Ziegler, relator de assuntos vinculados à alimentação. Ele volta agora à cena, classificando como crime contra a humanidade a produção de biocombustíveis. Além disso, acusou o FMI de haver obrigado países do Terceiro Mundo a produzir para exportação, desviando esforços da agricultura de subsistência. Uma das afirmações mostra falta de discernimento. A outra é grotescamente inepta. Nenhuma das duas seria relevante, se Ziegler não ocupasse um posto numa organização multilateral e não dispusesse, portanto, de um poderoso microfone para difundir seu falatório.

Primeiro fato: a alta das cotações agrícolas vem elevando a inflação em todo o mundo e isso prejudica uma parte da população, mas o chamado 'desastre humanitário' só ocorre nos países muito pobres e importadores líquidos de alimentos, aqueles dependentes, tipicamente, de doações e de programas especiais de auxílio.

Os afetados são muitos milhões e são encontráveis principalmente na África, nas zonas atrasadas da Ásia e, em muito menor proporção, em algumas áreas do Caribe e da América Latina. A maior parte desses grupos vive na miséria há muito tempo e assim continuaria, mesmo sem o encarecimento das commodities. Esses pobres habitam principalmente países deixados no atraso e na miséria pelas velhas potências coloniais européias, presentes até há poucas décadas em grande parte dos territórios menos desenvolvidos. Jean Ziegler menospreza esse detalhe.

Segundo fato: parte da alta dos preços de alimentos é atribuível, sim, à decisão americana de produzir etanol de milho e, em menor proporção, à tentativa européia de produzir biocombustíveis. Nos Estados Unidos e na Europa essas atividades só são possíveis, economicamente, com pesados subsídios. Mas subsídios integram as políticas agrícolas americana e européia há muito tempo e não se conhece nenhuma campanha de Jean Ziegler por uma reforma.

Se a agricultura nos países pobres continua subdesenvolvida, isso se deve em grande parte às distorções criadas no mercado internacional pelos subsídios e pelo protecionismo do mundo rico. Numa perspectiva mais longa, melhores preços para as commodities teriam estimulado o desenvolvimento agrícola nesses países. Preços deprimidos pelas políticas do mundo rico foram causadores de pobreza e não de bem-estar. Esse foi desde o início um dos temas centrais da Rodada Doha de negociações comerciais. Também esse fato parece ter passado despercebido para Jean Ziegler.

Terceiro fato: quando se fala da produção de biocombustíveis é preciso distinguir a atividade tal como praticada no Brasil daquela desenvolvida nos Estados Unidos e na Europa. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, ressalta essa diferença em seus comentários. Jean Ziegler foi alertado da diferença há meses e deu a impressão, naquele momento, de havê-la entendido. Terá esquecido a informação ou sua retórica não comporta distinções dessa natureza?

Quarto fato: os países com oferta mais ampla e mais eficiente de alimentos são aqueles mais capazes de atuar no mercado internacional. Crises de abastecimento ocorreram no Brasil enquanto os preços eram controlados e as vendas ao exterior eram muito menos dinâmicas. Deixaram de ocorrer quando os produtores puderam trabalhar mais livremente e passaram a investir em tecnologia para competir na primeira linha da produção internacional. Uma das conseqüências mais importantes, e mais evidentes, foi o barateamento da comida no mercado interno. A acusação de Jean Ziegler ao FMI, de ter forçado os pobres a produzir para exportação, não se sustenta nos fatos. Se os africanos tivessem de fato desenvolvido o agronegócio, não estariam sujeitos a condições tão terríveis de miséria e de fome. Produção de subsistência não garante alimentação farta para a população de um país. Em matéria de idéias sobre agricultura a ONU está subnutrida.

OESP, 15/04/2008, Notas e Informações, p. A3

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