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Histórias do sertão para o século 21

OESP, Vida, p. A21
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
16 de Jul de 2008

Histórias do sertão para o século 21

Marcos Sá Corrêa

A fazenda fica no Distrito Federal, a 30 e tantos quilômetros do Palácio da Alvorada. Estava ali quando a cidade nasceu. Pertence a uma empresa de engenharia que lhe deu o nome: Real. Manteve fora de suas porteiras tanto a onda da soja e outras febres agrícolas, que engoliram a vastidão aparentemente sem fim do cerrado, quanto a metástase urbana, que favelizou a perder de vista o contorno do Plano Piloto.

Estava reservada a investimentos que sempre ficaram para depois. E, assim, chegou mais ou menos incólume até hoje, rendendo o necessário para não levar o selo de propriedade improdutiva, mas poupando pela inércia a vegetação nativa que, a seu redor, virou cinza há muito tempo. Seus quase 2 mil hectares tinham virado um ácido abacaxi imobiliário quando um herdeiro se dispôs a descascá-lo, antes que a bagunça tomasse conta das terras.

Levou quatro ou cinco anos de muita briga. Pelo menos uma vez suas cercas foram franqueadas pelo salvo-conduto de delegado, marcando dia e hora para a manifestação "ordeira" da Mitra, um braço dos sem-terra (leia-se, ocupação). Encontrar uma vocação compatível com o bom estado das terras exigiu até pesquisas de subsolo. A Real tem boas nascentes. Mas a água que corre em suas grotas é tão cristalina que, a rigor, mal dá para classificá-la como mineral. Sua leveza só tem fregueses garantidos na indústria da perfumaria.

REFÚGIO

Entre um projeto e outro, o cerrado foi retomando seu lugar, ajudado pelo plantio de mudas nativas. O administrador sabe ser paciente e obstinado. Tem 30 e tantos anos de fotografia submarina pelas costas. Ajudou o País a descobrir paisagens submersas em Fernando de Noronha, Abrolhos, Ilha Grande e até na boca da Baía de Guanabara, onde participou da criação de unidades de conservação. Degredado no Planalto Central, Carlos Secchin passou a fotografar as florações típicas do cerrado, como parte do esforço de prospecção que ia redefinindo a fazenda num refúgio natural, às portas de Brasília.

E o resultado é que seus lírios-do-campo, pequis, paineiras, ipês, paus-de-leite, pacaris e canelas-de-ema acabam de florescer no Rio, com uma exposição no Jardim Botânico. É uma pequena amostra dos arquivos de Secchin. Mas tem cores, formas e argumentos de sobra para curar o descaso de quem acha que o cerrado não passa de um lugar seco e monótono.

E Secchin não está sozinho. Saiu agora também Quixadá, Terra dos Monolitos, do arquiteto e fotógrafo de natureza Miguel von Behr. O livro trata de como e, sobretudo, por que sobrou ali um pedaço da caatinga cearense, com fauna, flora, música, artesanato, literatura de cordel e outros dons inalienáveis da tradição sertaneja. A página 278 o resume, numa fotografia aérea.

Ela mostra, simplesmente, caatinga. Mas nem parece a mata branca e desfolhada que lhe valeu o nome indígena e o desdém dos caras pálidas. Parece, à primeira vista, que outra coisa, muito verde, tomou seu lugar em Quixadá. Mas o que se vê lá embaixo é a fazenda Não Me Deixes, que a escritora Rachel de Queiroz preservou em vida e legou à posteridade como Reserva Particular do Patrimônio Natural. É um exemplo de "cobertura vegetal de caatinga arbórea densa, típica da região semi-árida nordestina", segundo o laudo do Ibama que lhe deu o registro em 1998. Se o que é típico nos espanta, o Brasil deve andar meio estranho.

É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 16/07/2008, Vida, p. A21

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