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Halitinã, a viagem

FSP, Dinheiro
09 de Jun de 2004

Halitinã, a viagem

PAULO RABELLO DE CASTRO

Halitinã é um barracão com cobertura de sapê à margem do rio Verde. Lá fica o posto de cobrança de "pedágio" na rodovia estadual que corta a terra dos índios parecis. É uma enorme área de terra reservada aos remanescentes de poucas aldeias lá existentes, no chapadão entre os rios Verde e Papagaio.
Na barreira do "pedágio" pagam-se R$ 10 por veículo, diretamente ao cidadão indígena que segura a corrente de controle com uma das mãos, enquanto guarda na outra o talonário cor-de-rosa do respectivo comprovante de pagamento. Em Halitinã, no nortão de Mato Grosso -onde fomos parados, eu e mais dois companheiros de viagem, para pagar "pedágio" à reserva indígena-, somos também avisados de que fotos são proibidas... a menos que se pague por elas. Meu companheiro Adalberto não quis insistir em registrar uma foto daquela placa meio enferrujada, pregada num pau a meia altura, com uns dizeres do governo federal e uma faixa diagonal pintada de verde-amarelo.
Já estava escurecendo rapidamente e ainda precisávamos enfrentar o trecho mais difícil do percurso de 800 e tantos quilômetros daquele dia. O problema não era tanto morrer de flechada de índio no escuro, possibilidade remota ou descartada diante do recibo de pagamento do "pedágio", cuidadosamente guardado por Wilson em sua carteira, mas a chance de sermos esbarrados por um "biminhão", como são chamadas as modernas carretas duplas, articuladas em duas seções, que serpenteavam como lagartonas tontas ao longo do traçado daquele caminho de chão, povoado de crateras para todos os lados.
Os motoristas são obrigados a efetuar manobras radicais para tentar evitar os piores buracos, trafegando da mão para a contramão num balé de rodas incessante e alucinado, coberto pelo véu denso de poeira vermelha que se confunde com o resto de sol encarnado se pondo por trás da linha escura e triste do horizonte sem fim.
Foi impossível, naquele momento, não sentir orgulho do país que continua se fazendo e rodando, mesmo na escuridão dos seus próprios problemas. Estávamos ali compartilhando o caminho com carretas carregando milhares de toneladas de soja, milho, arroz, sorgo, milheto, algodão e madeira serrada, carnes e equipamentos agrícolas, rumo a Sapezal, cidade fundada pelo pioneirismo de André Maggi e emancipada há apenas nove anos.
Blairo, filho de André Maggi, é o dinâmico governador atual de Mato Grosso, que enfrentou um trajeto de mais de 3.000 km, em março último, até a fronteira setentrional do Estado, para conferir pessoalmente a quase absoluta carência de estradas, quase impassáveis no período de chuvas. Por incrível que pareça, a Sapezal dos Maggi não consta no "Guia Quatro Rodas 2004". Meu companheiro comentava risonho, com o restinho da alegria dos cariocas, que iria finalmente chegar a um "lugar que não está no mapa".
Mas, pelo contrário, não só Sapezal está no mapa do futuro do Brasil como já é hoje uma cidade com gente bonita, hospitaleira, com traçado planejado e equipamentos urbanos razoáveis. Sapezal é uma espécie de irmã mais nova de outras jóias da colonização bem-sucedida dessa fabulosa região que tem Sorriso, Sinop, Lucas do Rio Verde, Alta Floresta, Campo de Júlio, Brasnorte, Juína e muitas mais.
Naqueles grandes ermos conquistados penosamente por milhares de empreendedores anônimos, representados hoje por nomes como Pipino, Riva ou Maggi e, historicamente, por outros tantos da terra de Rondon, como Campos, Costa Marques, Dorileo, Garcia, Lebrinha, Ferreira Mendes e incontáveis desbravadores da terra xucra, naqueles perdidos chapadões nos quais a presença dos poderes públicos escasseia e índio cobra pedágio, nasce a possibilidade de um Brasil constituído a partir de sua própria riqueza, que provém da terra e da força da sua gente.
É essa força que está produzindo, não só milhões, mas bilhões de dólares de exportação, numa pauta diversificada de agronegócios com crescente valor agregado. Paradoxalmente, é aqui, junto aos que mais produzem, que mais se sente a falta dos ditos poderes instituídos, em geral lerdos ou ausentes. Cada morte numa estrada federal, quando uma carreta se desvia da cratera na pista e colhe uma família inteira vindo na mão oposta, é mais um registro de sangue escorrendo pelas paredes da incompetência administrativa pública.
Pior é o mal que não se vê. Cada vez que falta o crédito bancário para financiar a próxima lavoura, a próxima obra industrial, lembraremos a estrutura de juros sobre a dívida pública, que prejudica ou paralisa os negócios particulares. Os juros públicos flechando e matando a atividade privada no país inteiro. Ao fim dessas reflexões de 2.000 km de rodagem, meus dois companheiros e eu havíamos chegado à conclusão de que, comparada à carga tributária e aos juros do homem branco, pedágio de índio em Halitinã ainda dá mais retorno.

Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

FSP, 09/06/2004

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