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A guerra no fim do mundo

OESP, Vida, p. A23
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
15 de Set de 2005

A guerra no fim do mundo

Marcos Sá Corrêa

Nem sempre somos nós, os jornalistas, que não largamos os mesmos assuntos. Às vezes são eles, os mesmos assuntos, que não nos largam, como essa história dos avás-guaranis aboletados no Parque Nacional do Iguaçu, cobrando do governo as terras que lhes prometeu, para descarregar o excedente populacional que a imigração de índios paraguaios plantou na reserva do Ocoí.
Era o tipo do problema urgente, para acabar depressa. Mas não dá para expiar da noite para o dia o pecado original do Descobrimento. E esta semana o conselho interministerial dos caras-pálidas, reunido terça-feira em Brasília, resolveu não resolver nada até a Funai saldar com os guaranis a tal dívida imobiliária. Os índios aproveitaram a trégua para se instalar no parque com ares de quem veio para ficar. Eram, no começo, pouco mais de 50. Já são quase 100. Estavam acampados em bivaques precários, cobertos de plástico. Agora ergueram barracos de madeira. E, para mostrar às autoridades constituídas quem é que manda lá dentro, puseram uma placa na unidade federal de conservação, dizendo que ela virou território indígena.
Não é mais ou menos a mesma coisa, segundo a política ambiental vigente? A resposta, por um acaso providencial, acaba de chegar ao Brasil via internet. Traz a data de 12 de setembro, o mesmo dia da reunião em Brasília. E uma assinatura pesada, a do biólogo John Terborgh. Ele entende como ninguém de florestas tropicais como a de Iguaçu. Acha que elas tendem a desaparecer do planeta até meados deste século, exceto pelas amostras que escaparam da liquidação geral no interior dos parques nacionais. Isso, é claro, se os parques nacionais forem levados a sério pelos governos que, teoricamente, os administram.
Mas em geral eles só existem no papel. E Terborgh criou, para vigiá-los, a ParksWatch, uma rede de voluntários que se espalhou por sete países da América Latina. E foi nela que caiu seu e-mail. Ele está em Cocha Cashu, uma estação biológica encravada no Parque Nacional de Manu na Amazônia peruana. A seu ver, um dos lugares mais bonitos do mundo, em grande parte porque até agora lá só se chega de barco, em dias de viagem no rio encaixado nos contrafortes dos Andes. Manu tem 2 milhões de hectares. Quase 11 vezes mais que o de Iguaçu. É tamanho de sobra para isolá-lo das ameaças externas. Mas não do perigo que mora lá dentro.
Porque esse "deriva da presença de comunidades indígenas", escreve Terborgh. São no máximo 2 mil pessoas, segregadas em cinco ou seis grupos étnicos. A metade vive em tribos ainda não contactadas, a não ser pela fricção com seringueiros, quando passou por lá a febre da borracha. E vai agora recuando para o coração do parque, à medida que, lá fora, o mercado internacional do mogno empurra madeireiros para as bordas do parque. Deslocando-se, tem escaramuças violentas com os índios aculturados que, na década passada, o governo peruano assentou lá dentro.
Como os nahuas, que em agosto mataram um índio de 15 anos nas cabeceiras do Manu. Entre outras prerrogativas que lhes foram atribuídas pela complacência indigenista, os nahuas usam armas de fogo, o que é proibido para os outros, mas tolerado para eles. Assim, Terborgh resume, a região encara neste momento "a eclosão uma guerra" tribal dentro do parque sem que os administradores tenham "a capacidade de tomar sequer as providências mais elementares para evitá-la" e "ninguém sabe o que vai acontecer". Ninguém, em termos. No livro Requiem for Nature, publicado há seis anos, Terborgh já dizia que levar índios para Manu tinha sido um grave erro político.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 15/09/2005, Vida, p. A23

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