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Guardiões da mata

O Globo, Revista O Globo - Ciência e Vida, p. 70-74
15 de Ago de 2004

Guardiões da mata

Por Ana Lucia Azevedo e Roberta Jansen

O cachorro vinagre: pequeno, mas valente. A espécie caça nas matas brasileiras em matilhas, como os lobos cinzentos e os cães selvagens africanos
O lobo e seu descendente, o cão, todo mundo conhece. Mas nos campos do coração do Brasil e mesmo em cantos esquecidos das últimas florestas do Estado do Rio vivem criaturas misteriosas, que desafiam a ciência e permanecem praticamente desconhecidas do público. São os cães selvagens do Brasil. Há seis espécies, todas essenciais ao equilíbrio do Cerrado, da Mata Atlântica e da Amazônia. E todas em risco de extinção.
Das seis, as mais conhecidas são o lobo-guará e o cachorro-do-mato. Uma das mais raras, ainda uma incógnita para cientistas, é o animal da foto ao lado, o cachorro-do-mato-vinagre, espécie de hábitos e aparência à altura do estranho nome que recebeu. Arredio, ele raramente se deixa ver, anda sempre rastejando sob a mata ou em tocas. Como quase nunca é visto, ganhou aura de lenda entre populações locais.
Agora, pela primeira vez, esses pequenos cães selvagens, munidos de nadadeiras entre os dedos e capazes de matar animais muito maiores do que eles, terão seus hábitos estudados na natureza. Uma providência urgente para evitar que desapareçam. Para espioná-los, cientistas recorreram à ajuda da tecnologia: três animais foram dotados de rádios transmissores e estão sendo monitorados continuamente

Há seis espécies de canídeos (a família dos cães) selvagens no Brasil. O maior e mais conhecido é o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), símbolo da campanha de preservação do Cerrado.
- O animal é uma vítima da expansão da agricultura no Cerrado, um dos biomas mais ameaçados do país - afirma o veterinário Ronaldo Morato, do Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação de Predadores Naturais (Cenap) do Ibama, um dos coordenadores do plano de ação de preservação dos mamíferos carnívoros brasileiros, lançado em julho com a ONG Pró-Carnívoros. Conhecer esses animais tímidos mas essenciais para a preservação de campos e florestas, frisam cientistas, é aprender mais sobre o Brasil.
Além de se alimentar de pequenos mamíferos e aves e, por isso, ser importante na manutenção do equilíbrio da cadeia alimentar, o lobo-guará come frutas e tem papel fundamental na dispersão de sementes de árvores e outras plantas. Segundo Morato, ele é vital para o Cerrado:
- O desaparecimento dessa espécie pode significar o fim do Cerrado.
Outro cão selvagem brasileiro que consta da lista do Ibama dos animais ameaçados de extinção é o misterioso cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus), que só agora começa a ser estudado na natureza.
- Ninguém sabe exatamente por que ele recebeu esse nome - explica o biólogo Valdir Ramos Júnior, da Fundação Rio Zôo, que abriga seis raros exemplares.
- Mas há algumas hipóteses: uma é que seja porque sua urina tem um cheiro semelhante ao do vinagre, outra seria em razão do pêlo de cor semelhante à do vinagre que apresenta na juventude.
Originalmente, o animal existia em praticamente todo o país, exceto no Sul. Hoje, acredita-se que esteja extinto em grande parte do território nacional. Dos cães selvagens brasileiros, é o único exclusivamente carnívoro. Também apenas ele desenvolveu a sofisticada estratégia de caçar em matilha e compartilhar alimento. Membranas entre os dedos os ajudam a nadar e a comer peixes.- Essa espécie vive em grupos familiares de oito ou dez indivíduos - explica o biólogo do Ibama Edson Souza Lima, da equipe do pesquisador Julio Dalponte, da Pró-Carnívoros, que conseguiu, pela primeira vez, colocar coleiras com rádio em animais na natureza. - Os cachorros-vinagres caçam em matilha e, por isso, matam animais maiores. Isso é certamente uma estratégia de sobrevivência.Ainda menos conhecido que o cachorro-do-mato-vinagre é o cachorro-do-mato-de-orelha-curta (Atelocynus microtis), da Amazônia. Há até dois anos, não se tinha sequer uma foto do animal. Não há nenhum indivíduo dessa espécie em cativeiro. Somente agora, uma equipe de pesquisadores brasileiros que trabalha na Amazônia peruana conseguiu localizar um grupo e colocar coleiras com rádio em alguns deles. - De todos os canídeos, esse é o menos conhecido - diz Valdir Ramos Júnior. - Há dois anos, era totalmente desconhecido.O graxaim-do-campo (Pseudalopex gymnocercus) só ocorre no Sul do país, nos chamados campos sulinos. De acordo com biólogos, só existem pouquíssimos exemplares dessa espécie em cativeiro, em zoológicos e criadouros do Rio Grande do Sul. As outras espécies são mais comuns, embora não menos ameaçadas. É o caso da raposa-do-campo (Pseudalopex vetulus), habitante do Cerrado, e do cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), que existe em quase todo o Brasil. - A maior ameaça para os canídeos brasileiros (assim como para a maior parte de nossa fauna) é a destruição de habitats. Pouco resta da Mata Atlântica e o Cerrado está indo pelo mesmo caminho - sustenta o especialista Flávio Rodrigues, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Pró-Carnívoros. - Doenças normalmente transmitidas por cães domésticos e a caça, muitas vezes em retaliação à predação de animais domésticos, são outras grandes ameaças. Muitas vezes os animais levam fama injustificada de predadores de criações.Conhecer melhor os hábitos desses animais ainda tão misteriosos é a única forma de salvá-los da extinção, destacam os especialistas. Além do plano para a preservação dos mamíferos carnívoros, há projetos específicos em andamento. Na Serra da Canastra, em Minas Gerais, a Pró-Carnívoros estuda o comportamento do lobo-guará na natureza. Os estudos do grupo de Julio Dalponte sobre o cachorro-do-mato-vinagre também visam à preservação.- Para pensarmos em conservação, precisamos conhecer ecologia, dieta do animal, área que ocupa - justifica Edson Souza Lima.Atualmente, existem 30 vinagres em cativeiro, número ainda muito baixo, segundo os biólogos, para uma estratégia paralela de preservação.- Necessitamos aumentar o número de animais cativos para pelo menos 300, fazendo cruzamentos independentemente dos parentescos - defende Valdir Ramos Júnior.

Eles até podem fazer alguma companhia ao homem, mas nunca se renderam à escravidão da domesticação, como seu parente o cão doméstico. Os canídeos selvagens da América da Sul têm uma história natural própria e nela não está incluída a submissão à espécie humana.
- Os índios usam vários animais silvestres brasileiros como animais de estimação, inclusive cachorros-do-mato e outros carnívoros. Mas não se trata de domesticação propriamente dita. Eles pegam alguns filhotes e criam como animais domésticos, mas é só - conta Flávio Rodrigues, da Pró-Carnívoros e professor do Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Estudos realizados pelo grupo do geneticista Eduardo Eizirik, da PUC do Rio Grande do Sul e da Pró-Carnívoros, revelam que os canídeos brasileiros descendem de espécies ancestrais de cães que surgiram na América do Norte, entre 7 milhões e 10 milhões de anos atrás.
- Na verdade, a evolução dos canídeos da América do Sul não é bem conhecida. Na PUC-RS começamos estudos genéticos sobre a origem dos carnívoros e temos feito pesquisas sobre os canídeos sul-americanos em especial - diz Eizirik.
Análises de DNA conduzidas pelo grupo de Eizirik indicam que os canídeos de forma geral são o grupo mais isolado de mamíferos carnívoros. Eles surgiram há cerca de 50 milhões de anos, mas sofreram numerosas extinções e todos os canídeos atuais descendem de animais originados na América do Norte há não mais que dez milhões de anos.
- De lá, eles partiram para conquistar o mundo. Todos, do lobo europeu (e seu descendente, o cão doméstico) aos cães selvagens da África e da Austrália, originaram-se de animais da América do Norte. O mesmo vale para cães e lobos sul-americanos - diz Eizirik.
Segundo ele, o lobo-guará e o cachorro-do-mato-vinagre, que não se parecem em nada, podem ser espécies irmãs, muito próximas.
O DNA oferece informações valiosas para proteger os cães selvagens. É por isso que cientistas estudam a diversidade genética das populações selvagens brasileiras. Nessa linha de estudo, Eizirik trabalha com Sandro Bonatto e Paulo Prates, da PUC-RS, e Thales Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para estudar o lobo-guará; e com Ligia Tchaicka, numa pesquisa sobre o cachorro-do-mato

Cachorro-do-mato-de orelha-curta: Raras vezes observado na natureza, é o menos conhecido dos canídeos. Pesa cerca de dez quilos, chega a 30 centímetros de altura e, claro, tem orelhas curtas.
Lobo-Gurará: O maior dos canídeos brasileiros pode ter até dois metros de comprimento e 80 centímetros de altura. Tem orelhas largas, membros alongados e coloração vermelho-dourada
Cachorro-do-mato-vinagre: Diferente dos outros canídeos, tem orelhas arredondadas e muito curtas. Sua cabeça e pescoço são castanho-claros, mas o pêlo se torna mais escuro nas costas e cauda.
Raposa-do-campo: Parecida com o cachorro-do-mato, tem até um metro de comprimento e pesa cerca de 3 quilos. A pelagem é curta, cinza-amarelada. As orelhas e patas são avermelhadas.

Cachorro-do-mato: O mais conhecido dos canídeos brasileiros também é chamado popularmente de raposa. Chega a ter um metro de comprimento. O pêlo é acinzentado e castanho.
Graxaim-do-campo: Com pêlo cinza e cauda e orelhas longas, o graxaim ocorre somente no Sul. O animal, parecido com uma raposa, pesa de quatro a seis quilos e tem 60 centímetros de comprimento.

O Globo, 15/08/2004, Revista O Globo - Ciência e Vida, p. 70-74

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