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A grande travessia

FSP, Mais, p. 9
Autor: LOPES, Reinaldo José
17 de Jul de 2005

A grande travessia
Estudo sugere que grupo de 70 pessoas vindo da Ásia há 13 mil anos responde por todos os nativos atuais da América

Reinaldo José Lopes

Quando a jornada aconteceu, ainda demorariam milênios antes que o primeiro ser humano sonhasse com a escrita capaz de registrá-la, e os bardos e xamãs que talvez tenham contado a história viraram pó há muito tempo. Mas a memória coletiva dos primeiros seres humanos que ousaram fazer a travessia entre a Ásia e a América sobrevive, em parte, no DNA de seus descendentes. Segundo dois novos estudos, esse testemunho indica que um bando minúsculo de exploradores, com menos de 70 adultos, embarcou nessa aventura -literalmente, aliás: eles teriam remado pela costa do Pacífico e pelos rios que a banham para colonizar o Novo Mundo.
Os dois trabalhos estão longe de ser definitivos e levantam uma série de outras questões, mas colocam no lugar peças intrigantes do quebra-cabeças do primeiro povoamento da América. E se encaixam de forma coerente com a diversidade genética encontrada hoje entre os povos nativos da América, que ainda suscita uma série de interpretações divergentes, apesar de décadas de estudo.
Como qualquer pesquisa que tenta entender como populações se desenvolvem ao longo do tempo, ambos os trabalhos exigem uma bela dose de matemática. O do geneticista de populações Jody Hey, da Universidade Rutgers do Estado de Nova Jersey (EUA), trabalha com a idéia de tamanho efetivo da população -mais ou menos equivalente ao número de pessoas na idade adulta e capazes de se reproduzir. "Na prática, os antropólogos genéticos costumam supor que o tamanho de uma população num censo pode ser umas três vezes maior que o tamanho efetivo", explica Hey, cujo trabalho está na edição do mês passado da revista científica "PLoS Biology" (www.plosbiology.org).
Colonização simulada
O pesquisador desenvolveu um modelo computacional que tenta explicar a atual distribuição de uma série de variantes genéticas dos nativos das Américas por meio da história dessas populações e da separação delas de sua "população-mãe" -muito provavelmente grupos do nordeste da Ásia. É importante pegar genes que não estejam proximamente ligados, ou seja, que não estejam perto uns dos outros no DNA.
Nesse caso, a tendência é que eles sofram mutações separadamente, dando uma idéia melhor do que acontece no genoma inteiro. "Se você tem vários genes diferentes, então a probabilidade de [obter] todos aqueles dados é igual ao produto da probabilidade de cada um dos genes", afirma Hey.
A simulação foi posta para rodar, e o pesquisador obteve uma série de resultados interessantes além do número de 70 pioneiros. É bastante provável, por exemplo, que eles representassem menos de 1% da população asiática da qual provieram. Segundo Hey, os dados também sugerem uma chegada bastante recente, dificilmente mais antiga que 14 mil anos -o que, pelo menos por enquanto, concorda bem com o que a arqueologia diz.
No mundo altamente hostil do fim da Era do Gelo, o estilo de vida caçador-coletor muito provavelmente deve ter empurrado pequenos grupos como esses para a frente, em busca de novas fontes de comida -e, sem o saber, eles puseram os pés num novo continente.
Barcos no mar gelado
A pergunta que fica no ar, no entanto, é de que jeito os 70 nômades e suas famílias teriam feito a travessia, e é aí que entra o antropólogo Alan G. Fix, da Universidade da Califórnia em Riverside. Durante décadas, os estudos sobre o povoamento da América postulavam uma entrada terrestre, pelo chamado corredor livre de gelo -uma passagem entre as calotas glaciais que preenchiam boa parte da América do Norte até uns 10 mil anos atrás.
A idéia funcionava bem à beça quando se achava que os primeiros humanos pisaram no continente há cerca de 12 mil anos -afinal, o corredor "se abriu" um pouco antes disso. Mas, com a descoberta de sítios como Monte Verde, no Chile (com 12,5 mil anos), ficou claro que a migração é mais antiga. Isso levou muita gente a postular uma viagem marítima, mas ninguém tinha verificado que impacto isso teria na distribuição atual da população indígena.
Fix se pôs a estudar a relação entre uma possível migração costeira e os cinco tipos de mtDNA que existem hoje entre os índios da América do Norte. Essa forma de material genético existe apenas nas mitocôndrias, as usinas de energia das células, e só é transmitida de mãe para filho ou filha. Por isso é que os estudiosos da história das populações costumam adorar o mtDNA: ele não se mistura com outras partes do genoma e, portanto, permite traçar a história da linhagem materna de pessoas ou povos com relativa precisão.
Fix simulou computacionalmente o que aconteceria se os migrantes asiáticos entrassem por barco na América, carregando os cinco tipos de mtDNA (apelidados com as letras A, B, C, D e X) em proporções quase iguais. A simulação estipulava que a população crescesse até um máximo de 175 mulheres e depois se bifurcasse, colonizando o território costeiro adjacente.
Mesmo com uma taxa de crescimento populacional baixíssima, o povoamento de toda a costa norte-americana estaria completo em poucos milhares de anos. "E todos os cinco grupos se espalhariam por todo o continente", diz Fix. O trabalho deve sair numa edição futura da publicação científica "American Journal of Physical Anthropology" (www3.interscience.wiley.com/cgi-bin/jhome/28130).
Migrações mais antigas?
É bom lembrar que ambos os pesquisadores não examinaram diretamente a possibilidade de uma migração anterior, feita por povos não-ligados aos indígenas de hoje. Estudos feitos por antropólogos como o brasileiro Walter Neves, da USP, sugerem que os mais antigos americanos tinham crânios com forma que lembra mais os africanos e australianos atuais, não os índios modernos.
"Eu sou agnóstico quanto a isso, embora seja certamente possível que uma onda anterior tenha sido varrida por novos migrantes", diz Fix. Seja como for, é bem provável que ambos os povos tenham seguido o mesmo caminho: o do mar.

FSP, 17/07/2005, Mais, p. 9

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