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Governo peruano põe limite em diálogo

FSP, Mundo, p. A20
14 de Jun de 2009

Governo peruano põe limite em diálogo
Ex-premiê de Alan García, Jorge del Castillo diz que consulta com indígenas sobre leis amazônicas não é "vinculante"
Para congressista, modelo governista de investimento na selva tirará população da pobreza e trará autonomia em petróleo e gás ao Peru

Flávia Marreiro
Da reportagem local

Acossado por dois meses de protestos indígenas, o governo de Alan García no Peru teve de pactuar a suspensão no Congresso de parte de seu pacote legal pró-investimento na Amazônia. Sinaliza, porém, que está disposto a ceder pouco na questão, turvando o horizonte político imediato do país.
Jorge del Castillo Gálvez era presidente do Conselho de Ministros, ou premiê do Peru, quando as leis foram criadas. Hoje no Congresso, ele é o símbolo da convicção de Lima sobre o modelo de desenvolvimento para a selva peruana.
Estrela do governista Apra (Aliança Popular Revolucionária Americana), ele enfatiza que o governo criou um "mecanismo de consulta" com as comunidades nativas para o tema.
A falta de consulta prévia para legislação que envolve suas terras é o carro-chefe das reclamações dos representantes de 330 mil índios. A regra está prevista na Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) adotada pelo país.
Questionado se a suspensão de parte dos decretos é um reconhecimento de um erro político, o ex-premiê disse à Folha: "Bom, pode-se ver assim". Emendou: "Mas a consulta não é vinculante. Eles podem dizer que não, e temos os decretos".
Para o braço-direito de García -que caiu com todo o gabinete em outubro de 2008 por conta de irregularidades em negociações com petroleiras-, "as consultas são supercomplicadas". "No Peru há um montão de etnias [cerca de 60]. No Brasil deve haver mais, não [cerca de 170]? Como consultar, se não tem organização confiável?"
Castillo e o governo dizem que a Aidesep (Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana), que tem 30 anos de existência, perdeu legitimidade pela "autoria intelectual" das mortes de 24 policiais em confronto com manifestantes no norte, em 5 de junho. Ao menos 9 civis morreram, mas manifestantes falam em 30.
Lima ensaiou alijar a Aidesep de um fórum para discutir um plano amazônico, mas recuou.

Banco de ouro
O ex-premiê diz que a crise com os indígenas é fruto de um erro de comunicação aliado à manipulação política da oposição. Afirma que os decretos garantem a posse de terras indígenas -"tanto tituladas como não tituladas"- e respeito a critérios ambientais.
A meta, diz, é criar uma lei que promova o investimento a longo prazo na selva, criar uma indústria madeireira, "como a do Chile". Argumenta que o país não pode gastar US$ 2 bilhões por ano importando petróleo se tem reservas.
"O que não pode acontecer é dizer: "estou sentado em um banco de ouro e não toco nele porque o meio ambiente não permite". Isso é condenar à pobreza nossos povos", diz.
Ele não vê problema na sobreposição entre área indígena e lote de petroleiras no país. "Quem tiver a concessão tem a obrigação de se entender com quem vive em cima. Os acordos são diretos. Geralmente as empresas conseguem fazê-los. O Estado supervisiona."

Crise expõe autoritarismo e desigualdade no país

Claudia Antunes
Da sucursal do Rio

A persistência de uma cultura política autoritária, após décadas de regimes militares seguidos pela guerra ao terrorismo do Sendero Luminoso, e uma desigualdade que resistiu a sete anos de crescimento econômico "asiático", de em média 7%, são o pano de fundo do atual confronto entre o governo peruano e os indígenas da Amazônia, dizem especialistas.
"Há forte rejeição no interior à visão centralista, limenha, do governo de [Alan] García", diz Rubén Quiroz Ávila, professor de filosofia na Universidade de San Marcos, em Lima.
Eleito em 2006, García usou o poder de legislar por decreto a ele conferido pelo Congresso -a fim de adaptar leis ao Tratado de Livre Comércio com os EUA- para baixar o contestado pacote que facilita a exploração dos recursos florestais e minerais na selva amazônica.
Ele argumentou, na época, que as riquezas precisavam servir ao proveito de todo o país. Mas, diz Quiroz Ávila, além de não terem sido consultados, os povos da Amazônia enxergaram nas empresas estrangeiras as principais beneficiárias.
A desconfiança tem origem no fato de o crescimento recente, impulsionado por investimentos externos, não ter se traduzido em benefícios sociais.
Em 2006, último ano para o qual a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) tem dados disponíveis, os 20% mais ricos da população ficavam com 54% da renda nacional, contra 3,9% para os 20% mais pobres. A concentração caiu um pouco desde o auge em 2002 (58%), mas ainda é maior do que nos anos 80, quando os números eram de 50,4% e 5,6%, respectivamente.
Com isso, a popularidade de presidentes eleitos se esvai mal passada a festa da posse, repetindo-se com García o que já havia ocorrido a seu antecessor, Alejandro Toledo (2001-2006). É o fenômeno que o cientista político chileno Francisco Rojas Aravena, secretário-geral da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), define como "paradoxo peruano".
"As pessoas apoiam a democracia, mas não estão satisfeitas com seus resultados. O Peru não consegue lidar com a questão social. As elites não querem pagar mais impostos [para distribuir a renda]", diz.
Bernard Sorj, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coautor de "O Desafio Latino-Americano" (Civilização Brasileira), cita três causas desse paradoxo:
1) O fato de os investimentos estrangeiros estarem voltados para setores como a mineração, com impacto pequeno na geração de empregos.
2) A fragmentação do sistema partidário tradicional, que implodiu ao final do primeiro governo de Alan García (1985-1990), dando origem à eleição do "outsider" Alberto Fujimori (1990-2000).
3) A estrutura pouco desenvolvida do Estado, incapaz de gerir gastos sociais efetivos.
A Apra (Aliança Popular Revolucionária Americana), agremiação de Alan García, sobreviveu à implosão dos partidos. Mas Sorj compara o atual governo aprista ao de Carlos Menem na Argentina (1989-1999), que aderiu à letra do neoliberalismo, rompendo com a tradição nacionalista do peronismo.
García, que em seu primeiro mandato chegou a nacionalizar os bancos, voltou em versão que "desconhece problemas sociais e ambientais", diz Sorj.
O peruano Quiroz Ávila, descendente de nativos quéchuas, vê aí um padrão histórico, em que uma "elite branca e mestiça" controla o poder em Lima de costas para o interior. A separação produz um quadro político pulverizado, com poucos movimentos de base nacional.
O maior adversário político de García, Ollanta Humala, próximo ao presidente venezuelano Hugo Chávez, é mais forte no interior do que em Lima. Para Sorj, o quadro faz do Peru o "elo frágil" latino-americano, onde uma virada política que não pode ser descartada aumentaria o peso regional do projeto bolivariano liderado por Caracas.

FSP, 14/06/2009, Mundo, p. A20

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