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Globalizacao acentua as diferencas no mundo

OESP, Economia, p.B6
26 de Ago de 2005

Globalização acentua as diferenças no mundo
Os 20% mais pobres respondem por só 1% do consumo global, diz ONU
Fernando Dantas
A globalização, as reformas pró-mercado dos anos 80 e 90, a redução do Estado e a abertura financeira e comercial dos países emergentes aumentaram a desigualdade no mundo. Este é o fio condutor de um relatório de 158 páginas divulgado ontem pela Organização das Nações Unidas (ONU), A Cilada da Desigualdade, contendo dados alarmantes sobre a distribuição de renda no mundo e sobre as desigualdades em educação, saúde e representação política, em acesso à terra, crédito e outros ativos, e na exposição à violência, ao preconceito e à degradação do meio ambiente.
O documento mostra que os 20% mais ricos do mundo são responsáveis por 86% do consumo global; os 20% mais pobres, por apenas 1%. Uma parcela de 80% do PIB mundial pertence a 1 bilhão de pessoas vivendo no mundo desenvolvido. Os restantes 20% são repartidos por 5 bilhões no mundo emergente.
Roberto Guimarães, chefe de Análise Social e Política do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (responsável pelo relatório), diz que um dos objetivos básicos do trabalho é colocar a desigualdade no centro do debate mundial. Ele observa que há muita ênfase atualmente em redução da pobreza, mas pouco se fala na questão da distribuição, que tem piorado dentro dos países e entre eles. "A desigualdade se transformou numa epidemia global", diz Guimarães.
O trabalho aponta diversas medidas já propostas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros líderes mundiais, como impostos sobre movimento de capitais, vendas de armas, consumo de combustíveis e emissão de gases de efeito-estufa e uma loteria mundial. Toda a receita destes instrumentos seria usada no combate à pobreza e à fome em escala mundial.
Segundo o relatório, programas de ajuste estrutural (tipicamente, programas do Fundo Monetário Internacional, FMI) e as reformas pró-mercado moldaram o contexto econômico e institucional, no qual a liberalização comercial e financeira desenvolveu-se nas últimas décadas. Para a ONU, "estas mudanças de forma geral tiveram um impacto negativo no bem-estar dos indivíduos, grupos e comunidades mundo afora, e têm implicações negativas para o desenvolvimento futuro".
O documento mostra dados positivos, como a melhora da desigualdade global, medida pelo índice de Gini (quanto maior, pior) nas últimas duas décadas, e a proporção da população mundial vivendo na extrema pobreza (renda per capita inferior a US$ 1 por dia) caiu de 40% para 21% entre 1980 e 2000.
A melhora no Gini, porém, deveu-se ao boom da economia chinesa e, em menor escala, da indiana. Apenas na China, o número de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia caiu de 634 milhões para 212 milhões entre 1981 e 2001. Considerando a China e a Índia, o Gini mundial caiu de aproximadamente 0,58 para 0,56 de 1980 a 2000. Excluindo os dois países, subiu de 0,47 para 0,53.
Segundo o documento, em duas décadas aumentou a distância entre a renda per capita da maioria das regiões do mundo emergente em relação a dos países ricos da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE). Esta proporção, no caso da América Latina e Caribe, era 18% em 1980 e caiu para 12,8% em 2001. Na África negra, passou de 3,3% para 1,9%, e no Oriente Médio e África do Norte, de 9,7% para 6,7%. No Sudeste Asiático e Pacífico, porém, subiu de 1,5% para 3,3%.
A desigualdade dentro dos países, que caiu de forma geral nos anos 50, 60 e 70, voltou a crescer nos anos 80. O documento menciona um estudo com 73 países, que mostra que apenas 29 tinham índice de Gini acima da faixa de 0,35 a 0,40 (o limite entre o que é considerado bom e ruim) no início da década de 80. Em meados dos anos 90, aquele contingente tinha saltado para 48.
INFORMALIDADE
O relatório da ONU dedica grande espaço a questões de emprego e informalidade. Em 10 anos, até 2003, o número de desempregados saltou de 140 milhões para 186 milhões, e hoje representa 6,2% da população economicamente ativa no mundo. Como o desemprego caiu nos países desenvolvidos em geral, o aumento concentrou-se no mundo em desenvolvimento. As razões para alta do desemprego nos países emergentes, segundo o documento, são o forte crescimento da força de trabalho e "políticas focadas exclusivamente no equilíbrio macroeconômico".
Segundo o documento, "o processo de liberalização está tipicamente marcado por maior flexibilidade salarial e a erosão dos salários mínimos, a redução dos empregos públicos, proteção trabalhista declinante e o enfraquecimento das leis e regulações do emprego". O trabalho critica os emergentes que fazem uma "corrida para o piso" - isto é, que reduzem ao máximo a proteção trabalhista - para atrair investimento estrangeiro. "Para muitos países, o espaço para políticas nacionais está cada vez mais reduzido pelas políticas de liberalização que tendem a acentuar a globalização assimétrica e as desigualdades."
Os empregos informais, diz o relatório, são responsáveis por algo entre a metade e três quartos dos empregos fora da agricultura (onde a informalidade é ainda maior) na maioria dos países em desenvolvimento. A informalidade fora da agricultura atinge 51% na América Latina e Caribe e 78% na África negra. Uma parcela de 60% das trabalhadoras no mundo emergente é informal. A informalidade é responsável por 41% do PIB na América Latina, comparado com 18% nos países ricos.
Segundo o documento, uma das causas da informalidade são os ajustes econômicos, que reduzem o número de empregos no setor público e nas estatais. O relatório acrescenta também que "as crescentes pressões competitivas que acompanham a globalização forçaram as empresas e os empregadores a buscar arranjos trabalhistas mais flexíveis para cortar custos", e nota que há cadeias globais de produção que combinam setores formais na ponta mais poderosa e informais na mais humilde - caso de roupas e calçados.
Os trabalhadores informais, além de receberem menores salários, raramente têm qualquer tipo de cobertura previdenciária ou outras formas de proteção social. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2003, 1,39 bilhão de pessoas, ou 49,7% dos trabalhadores do mundo, viviam em famílias com renda per capita inferior a US$ 2 por dia. E quase 25% dos trabalhadores dos países em desenvolvimento viviam com menos de US$ 1 por dia. A maior parte desta força de trabalho é informal.

Defasagem de renda do Brasil é a maior do mundo
O relatório sobre desigualdade da ONU informa que o Brasil tem a pior defasagem de renda do mundo, com a renda per capita dos 10% mais ricos superando em 32 vezes a dos 40% mais pobres. Em dois outros países latino-americanos mencionados no levantamento, Uruguai e Costa Rica, a proporção é de 8,8 e 12,6 vezes, respectivamente. O documento diz ainda que a abertura comercial no Brasil e México levou os salários a cair.
O estudo procura caracterizar a desigualdade como algo que vai muito além das simples diferenças de renda, e inclui acesso à educação, saúde, poder político, segurança, meio ambiente etc. Segundo o documento, todas estas dimensões estão inter-relacionadas, e têm de ser abordadas conjuntamente para se superar o problema.
O trabalho é mais uma edição de uma série de documentos bianuais da ONU sobre a "situação social no mundo". Os temas centrais variam a cada publicação. Na abertura do atual documento, a ONU afirma que o compromisso global de superar a desigualdade, assumido na Cúpula de Desenvolvimento Social de Copenhague, em 1995, e reforçada pela Declaração do Milênio, está esmaecendo. "Ignorar a desigualdade na persecução do desenvolvimento é perigoso", alerta a ONU.
O documento critica a privatização de programas sociais e elogia os sistemas de aposentadoria. "Os benefícios para as pessoas idosas freqüentemente estendem-se para a família toda, já que o dinheiro e outros recursos que eles possuem invariavelmente são repartidos com os descendentes e dependentes mais jovens", diz o relatório, acrescentando que "os governos deveriam, portanto, identificar mudanças de políticas que sejam necessárias para sustentar e apoiar os idosos, em vez de tentar cortar custos".
O relatório observa que estão ausentes dos debates internacionais temas muito importantes para os países em desenvolvimento, como mobilidade internacional de trabalhadores, facilidade de remessas e coordenação de políticas macroeconômicas entre os países ricos para evitar turbulências na economia global.
A ONU diz que os gastos militares mundiais provavelmente passaram de US$ 1 trilhão em 2005 - 20 vezes mais do que a ajuda dos países ricos para os pobres . .

OESP, 26/08/2005, p. B6

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