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'A gente era livre pra andar sobre o mundo, e hoje tudo tem dono': a resistência indígena na cidade

Radio Globo http://radioglobo.globo.com/
Autor: Vitor Gilard
19 de Mai de 2019

São Paulo. 12 milhões habitantes. 8 milhões de veículos. 3 milhões de casas. Os números fazem da capital paulista uma das maiores cidades do mundo.

O que pouca gente sabe é que ali, no coração da metrópole, vivem cerca de 700 indígenas guarani. A Terra Indígena Jaraguá fica na Zona Norte de São Paulo e é a menor do país: menos de 2 hectares da região foram demarcados, em 1987. O processo não considerou áreas tradicionalmente ocupadas pelos povos que vivem ali. Hoje, na Justiça, os indígenas lutam pela demarcação definitiva de toda a área, que possui 532 hectares.

A angústia de viver numa aldeia cercada por prédios e a convivência com a população urbana provocam sentimentos como ansiedade e depressão. Para os indígenas, o reconhecimento de suas terras significa liberdade. É o que explica o líder guarani Thiago Henrique Karai Djekupe.

"Nós, povos Guarani, éramos povos que não tinham delimitação de área, a gente não tinha posse sobre áreas. A gente era livre para andar sobre o mundo, e hoje tudo tem dono, tudo as pessoas tomam posse. Isso vai contra a nossa forma de vida. Tem pessoas de classe média, classe média alta que conseguem viver bem com esse modo de vida ocidental, mas nós que temos um modo de vida tradicional não conseguimos nos encaixar. E é isso que traz a depressão, traz a ansiedade, e que acaba afetando muito nossa comunidade".

Já no Rio de Janeiro, a resistência indígena em meio à cidade deu origem a uma aldeia ao lado de um cartão postal: o Maracanã. Cerca de 30 pessoas de vários povos indígenas tem como lar o antigo prédio do Museu do Índio. O espaço ficou abandonado por quase 30 anos, depois que o centro cultural foi transferido pra Botafogo, na Zona Sul do Rio. Por isso, em 2006, indígenas ocuparam o prédio. Nascia ali a Aldeia Maracanã.

No entanto, o projeto para a Copa de 2014 previa a construção de um shopping naquela área, e desde então começou uma disputa judicial. Os indígenas chegaram a ser expulsos da aldeia, mas a obra não foi adiante, e eles retornaram com a promessa de que o prédio seria revitalizado - o que ainda não aconteceu.

Atualmente, o espaço também serve de moradia temporária para indígenas que saem de suas terras e vêm estudar na cidade. O cacique José Urutau Guajajara, líder da Aldeia Maracanã, acredita que os estudos são fundamentais para que eles entendam a fundo a questão indígena. Ele define a aldeia como uma ponte entre os saberes tradicionais e o conhecimento científico.

"Esses jovens vêm para estudar para entender a questão territorial, a questão da ancestralidade feminina, dessa questão toda de cada etnia... e para entender tem que vir estudar nos grandes centros, porque não tem universidade lá que seja capaz de dar esses conhecimentos. Por isso a Aldeia Maracanã é essa ponte entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico".

As dificuldades enfrentadas por José e Thiago também fazem parte da vida de outros 315 mil indígenas que moram em áreas urbanas por todo o país. Mas será que eles saíram das florestas e vieram pras cidades ou a gente que transformou a mata em uma grande selva de pedra? A antropóloga Antonella Tassinari, que coordena o Núcleo de Estudos de Povos Indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina, tem a resposta.

"As populações indígenas estavam no Brasil percorrendo esses espaços antes de eles terem sido transformados em cidades. Então muitos dos espaços que hoje são cidades eram espaços de trânsito, de exploração de recursos naturais, dos rios. Há uma relação com esses territórios antes de eles serem cidades. Isso é importante a gente levar em conta porque muitas vezes a gente olha a população indígena na cidade e pensa 'ah, mas o lugar próprio do indígena não é a cidade', e isso não é bem assim. Ele está ocupando um local que é muito antigo".

A relação íntima com a natureza é um dos pilares do modo de vida indígena. A floresta é o chão, o teto e o sustento dos povos. Preservar é cuidar do amanhã. Na Terra Indígena Jaraguá, por exemplo, os guaranis se esforçam para proteger o pouco da mata que restou na cidade de São Paulo. De acordo com o líder guarani Thiago Henrique, esse cuidado é fruto de uma sensação de pertencimento à terra.

"Nós fazemos alguns trabalhos, como criação de abelha nativa sem ferrão; nós fazemos um trabalho de agrofloresta; nós temos bacia de evapotranspiração, que é fossa ecológica, então a gente tenta trabalhar com banheiro ecológico para não degradar, não afetar o meio ambiente. Porque a gente acredita que a terra é nossa mãe, que sem o fruto, sem a árvore, sem a água a gente não vive. Então a gente não vê nossa terra como posse. Nós pertencemos a ela e temos que cuidar para que ela cuide de nós".

É justamente para proteger as florestas brasileiras que o líder indígena Raoni foi para a Europa e se reuniu, nesta semana, com o presidente da França, Emmanuel Macron. O objetivo de Raoni é arrecadar um milhão de euros para financiar muros verdes feitos de bambu, para delinear a Terra Indígena do Xingu e evitar a entrada de invasores. Após a reunião, o governo francês afirmou que "apoiaria o projeto de Raoni".

Mas nem todas as terras indígenas foram cercadas pelas cidades. O Brasil conta com pelo menos 27 grupos que vivem isolados na floresta, sem qualquer contato externo. A Fundação Nacional do Índio ainda estuda outros 87 registros de indígenas isolados. A política de não-contato surgiu em 1987, como uma forma de garantir a autonomia desses grupos.

O coordenador-geral de índios isolados e de recente contato da Funai, Bruno Pereira, explica que o isolamento se dá a partir de uma escolha.

"É sempre fruto de uma escolha. Às vezes, uma escolha proporcionada por situações muito complexas. Às vezes, escolhas proporcionadas por massacres, às vezes frutos de guerras, frutos de perseguição, às vezes resultadas de doenças que eles tiveram no convívio, no contato com o mundo branco ou com outros grupos indígenas. Então é sempre uma decisão de autodeterminação desses povos. É uma decisão legítima deles, de um grupo que decide ficar mais distante e selecionar o tipo de relação que ele vai ter com seu entorno. Então é uma maneira, sim, de se proteger para poder viver para a posteridade".

Por isso, a Funai só faz algum contato em casos extremos, como aconteceu em março deste ano, quando houve a maior expedição dos últimos 20 anos. Agentes da fundação foram à Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, para evitar novos conflitos entre os povos Korubo e Matis. A ação foi considerada bem-sucedida e a segurança dos indígenas foi preservada.

É esse o grande desafio da Funai em relação aos povos isolados. De acordo com Bruno Pereira, identificar esses grupos é primordial para garantir sua proteção.

"O maior desafio para nós é proteger os que a gente já conhece e identificar os que a gente está pesquisando antes que seja tarde demais. E o nosso desafio maior é conseguir identificá-los, mostrar para o mundo que eles existem para que a política pública consiga alcançá-los e protegê-los. Não é em todas as regiões que nós temos essa questão dos índios isolados, mas, onde eles estão, a soberania do território, a soberania da floresta é fundamental para a sobrevivência deles".

Os pés podem estar sobre a terra ou o asfalto. O teto pode ser feito de tijolo ou palha. Em volta, pode estar a mata ou a cidade. Os modos de vida são diferentes, mas o elo que une indígenas de todo o país é um só: a resistência.

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