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Futebol cabeça

CB, Cidades, p. 30
17 de Nov de 2006

Futebol cabeça
Índios parecis, que estão no DF em encontro, celebram a inteligência de seu povo com um estranho jogo

André Bezerra
Da equipe do Correio

A cena parecia inusitada a qualquer espectador que desconhece a cultura indígena. No campo de terra seis índios com colares no pescoço e cocares na cabeça jogavam bola. Porém, ao contrário do jogo mais popular do Brasil, o futebol, não usavam os pés para mover a bola, mas sim a cabeça. Era uma partida de xikunahity, um dos esportes mais tradicionais entre os povos indígenas do Mato Grosso. À primeira vista, parece uma mistura de queimada e futevôlei, mas o jogo têm regras interessantes e cheias de significados. A pelada era apenas uma demonstração, mas chamou a atenção de quem passou pelo pavilhão de exposições do Parque da Cidade na manhã de ontem.

Traduzida para o português, xikunahity significa literalmente futebol de cabeça. O esporte é praticado tradicionalmente pelos índios pareci, iranxe, enauenês-mauês, entre outros, a maioria habitantes de terras indígenas no estado do Mato Grosso. Assim como o futebol, para se jogar, não se precisa de nada além de um bom campo, jogadores dispostos, e, obviamente, uma bola. As cabeçadas, no entanto, substituem os chutes, e o jogador que pegar a bola com as mãos durante a partida perde pontos. Os participantes se dividem em dois times, de seis até 12 integrantes. E começa o duelo.

A regra, no geral, é bem simples. Só valem toques de cabeça. Cada time se posiciona em um dos lados diferentes do campo e não pode passar de um lado para o outro. O objetivo, como no vôlei, é deixar a bola cair no campo adversário, ou impedi-lo de mandar a bola de volta. Os times pontuam quando a equipe adversária não consegue pegar a bola ou a deixa escapar pela linha de fundo.

Nas aldeias onde se pratica o xikunahity, os jogos acontecem para celebrar momentos especiais ou grandes cerimônias, como a primeira colheita das roças, os ritos de iniciação dos jovens, a caça, a pesca e a coleta de frutas silvestres e alguns rituais religiosos.

Tradição viva
"O xikunahity é ensinado pelos nossos ancestrais. Estamos tentando manter a tradição acesa entre os jovens do nosso povo", conta o índio pareci Giovani Kezokenaece, 23 anos, um dos participantes da partida. O jogo fez parte da programação cultural da 1ª Mostra Nacional de Saúde Indígena, que ocorre até hoje no pavilhão do parque. Quatro índios da etnia pareci e dois da etnia iranxe jogaram animados para demonstrar como é o esporte em sua terra de origem.

A cada ponto conquistado, aplausos e gritos bem altos para comemorar os gols. Ou melhor, Wihaore!, na língua falada pelos parecis, o aruaque. "Quando fazemos pontos, não gritamos gol, mas pedimos nossos prêmios", explica Kezokenaece. A cada jogo de xikunahity, a tradição é que os times recolham prêmios para serem entregues durante a partida aos jogadores, a cada ponto conquistado. Esse é o significado do grito. Em geral, podem ser dados como prêmios penas, colares, cocares ou flechas. Hoje em dia, depois do contato com o homem branco, também podem ser usados sabonetes, espelhos, caixas de fósforo, isqueiros e outros objetos de uso pessoal. O esporte é estritamente masculino, e as crianças só podem praticá-lo depois que passarem pelos ritos iniciáticos.

Na demonstração, os índios mostraram agilidade, garra, força e preparo físico. Às vezes, para impedir que a bola tocasse a terra, alguns jogadores se lançaram ao chão, num mergulho, cabeceando a bola quase no nível do solo. "Tem que ter muita força mesmo. E não pode ter medo de se jogar no chão. Faz parte do jogo", afirmou Evandro Ulunazokae, 19, um dos jogadores. Por ser um campo improvisado, os parecis não ficaram muito à vontade para jogar. "Não deu para jogar muito bem. O campo estava com a terra mole e tinha muita pedra", reclamou Ulunazokae.

Para os índios pareci, o xikunahity é uma das principais tradições culturais de seu povo. Segundo suas lendas, o jogo foi ensinado nos primeiros dias do povo pareci, pelo Wazare, um ser mítico ligado à religiosidade desses índios. Os mitos contam que a entidade um dia veio à terra, e antes de ir embora para o mundo dos deuses, fez uma grande festa. Nesse momento, ensinou que a cabeça é a parte mais importante do corpo, porque reúne a inteligência, mas também a força. Por isso, o uso da cabeça é essencial no jogo, que teria sido ensinado pelo próprio Wazare.

Giovani e Evandro moram numa aldeia de aproximadamente 160 pessoas na terra indígena Rio Formoso, no município de Tangará da Serra (MT). O primeiro é professor e o outro trabalha no plantio, uma das principais atividades econômicas da aldeia. Ao longo do contato com a cultura branca, o xikunahity foi sofrendo influências de outras modalidades e adotou o formato do campo, além de ter algumas semelhanças com o futebol e o vôlei. Mesmo assim, além de ser um patrimônio cultural, o jogo continua sendo um dos esportes favoritos em muitas aldeias. "A cada vez que jogamos o xikunahity, firmamos nossos laços de amizade com os nossos irmãos e os nossos vizinhos de outras aldeias. É um ensinamento muito antigo, e, se continuarmos ensinando para os mais novos, nunca será esquecido", resume Kezokenaece.

AGENDA
Hoje, a partir das 13h30, haverá outra demonstração do xikunahity no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade. Mais informações no site www.funasa.gov.br/1mostra.

Para saber mais
Esportes indígenas

O xikunahity é apenas um dos vários jogos, esportes e brincadeiras praticados pelos povos indígenas do Brasil. Além dele, nas aldeias, é comum a prática de modalidades como arco e flecha, o cabo-de- guerra, a canoagem, o arremesso de lança, a zarabatana, a corrida com toras, entre outros. A preferência e os significados de cada jogo variam de acordo com a etnia. Os xerentes e apinajés de Tocantins, por exemplo, são exímios carregadores de toras. A madeira é um símbolo dos deuses, e a corrida é feita em festas para divindades ou para celebrações ligadas à colheita.

Ontem, na mostra de saúde indígena, pela manhã e pela tarde, puderam ser vistas modalidades como arco e flecha, por diversas etnias, e a corrida de tora de buriti, realizada pelos xavantes. Há 10 anos, foram criados os Jogos dos Povos Indígenas do Brasil, uma espécie de olimpíada para incentivar a preservação dos esportes tradicionais e da diversidade, além de promover a confraternização entre os povos. A última edição aconteceu em Fortaleza (CE), no ano passado, e a próxima será no ano que vem, em cidade a ser definida.

CB, 17/11/2006, Cidades, p. 30

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