VOLTAR

Fronteira da ciencia

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: GRAZIANO, Xico
15 de Mar de 2005

Fronteira da ciência
Xico Graziano
Galileu Galilei foi o personagem mais citado durante a votação da Lei de Biossegurança na Câmara dos Deputados. A invocação de sua história visava a prestar homenagem à ciência. Faz sentido.
Quando, no século 17, Galileu defendeu o sistema de Copérnico, afirmando que a Terra girava em torno do Sol, e não o contrário, acabou acusado de heresia. E sofreu. O conhecimento científico havia sucumbido ao dogma religioso.
Depois, sabidamente, tornou-se impossível segurar o avanço da astronomia. A crença religiosa, conservadora, cedeu lugar às idéias iluministas. O heliocentrismo impôs sua verdade.
Os produtos transgênicos, ao serem inicialmente pesquisados, provocaram uma polêmica com forte conteúdo ético e religioso. O íntimo das pessoas acabou atingido. A engenharia genética poderia ser coisa do diabo.
Opiniões radicais induziram a opinião pública a imaginar que se fabricariam monstros, do tipo galinha com quatro pernas ou vaca com tetas de chocolate. late. A ordem natural, divina, estaria assim afrontada.
Ao relembrarem o grande físico italiano, os parlamentares brasileiros reforçavam a prevalência inexorável da ciência. Aceitavam, ao mesmo tempo, baseados na História, que novos conhecimentos, quando revolucionários, sempre causam forte reação. E o caso da engenharia genética.
Na genética convencional, altera-se a carga gênica das plantas e dos animais por meio de cruzamentos sexuados. Dessa forma, atributos vantajosos, como maior produtividade ou resistência a doenças e pragas, são transferidos de uma espécie para outra. A partir da descoberta do DNA, assim evoluiu a agronomia clássica.
Nesse processo, a galinha caipira gerou suas comadres industriais, que botam sem parar, felizes, ovo após ovo. Aliviadas que foram do choco ancestral, penáceos de granja moderna não podem, nem querem, criar pintinhos. Nem dão a mínima para o galo.
Frutas finas, que somente se produziam no inverno europeu, passaram a vicejar no oeste paulista e até mesmo na aridez nordestina. A uva Itália se abrasileirou. O arroz agulhinha, o feijão carioca, a alface lisa, o suíno sem banha, todos, absolutamente todos os alimentos não chegam à mesa das famílias tal qual descobertos pelo homem. Ao contrário, foram geneticamente modificados, hibridados, selecionados. Que bom.
Um dia, cientistas descobriram uma novidade. Observaram que certos fungos injetavam pedaços de seu DNA nas plantas que predavam, obrigando-as a produzir substâncias de seu agrado. Quer dizer, os fungos replicavam parte de seu cromossomo num outro organismo, de espécie distinta. Fenomenal.
Tal descoberta forneceu a base teórica do desenvolvimento da moderna teoria da engenharia genética. Em resumo, a nova tecnologia permite, com instrumentos e aparelhos sofisticados, escolher um pedacinho do gene de uma espécie e introduzi-lo em outra espécie. Sem nenhum cruzamento. É incrível.
Bem antes dos produtos transgênicos, é importante saber, os laboratórios já modificavam artificialmente a carga genética dos organismos. A técnica mais utilizada, aplicada desde os anos 60, é a da irradiação atômica. Milhões de sementes são irradiadas, depois germinadas, procurando-se descobrir mutações úteis, que possam ser aproveitadas. A mutagênese funciona, como se vê, como uma espécie de loteria. E preciso sorte para acabar bem. As principais variedade,, de trigo, por exemplo, consumidas no mundo apresentam essa origem.
Na transgenia a técnica é diferente. Há uma seleção prévia do segmento do gene a ser transferido para o cromossomo de outro organismo. Por isso, argumentam os pesquisadores, o processo é mais seguro e rápido. Além de não gerar monstros.
Toda tecnologia envolve riscos. Qualquer modificação genética, convencional ou transgênica, pode provocar efeitos colaterais indesejáveis. No caso dos transgênicos, sempre se supôs que a avaliação de riscos deveria ser mais rigorosa. Afinal, trata-se de um salto na fronteira da ciência.
É certo que o meio ambiente e a saúde humana exigem precauções seguras. O que os leigos pouco entenderam, e certos políticos desdenharam, é que a biotecnologia inclui, nunca despreza, a avaliação sobre suas próprias conseqüências. Ou seja, avaliar riscos faz parte da equação científica.
Sempre foi assim. E quando certas tecnologias foram utilizadas para o mal, como no caso da bomba atômica, o problema foi criado pela sociedade e seus políticos, não pela Academia. No caso da liberação de produtos transgênicos, a CTNBio, agora fortalecida pela nova lei, obriga-se a estabelecer os parâmetros necessários para monitorar impactos. Para comparação, transgênico é mais seguro que celular.
Eppur si muove. A célebre frase de Galileu vaticinou o resultado da votação na Câmara. Há cinco anos, as restrições aos transgênicos pareciam insuperáveis. Com o tempo, o assunto clareou, passou o temor. Agora, apenas 60 votos, contra 352, resistiram ao progresso científico. O resultado prestigia a ciência nacional.
A vitória da razão sobre as trevas, faça-se justiça, somente ocorreu porque os próprios cientistas vestiram seu jaleco e partiram para a briga política. Ao contrário de Galileu, que em 1633 negou suas convicções perante o tribunal, os pesquisadores nacionais não abjuraram. Foram à luta.
Expuseram-se, explicaram, conversaram com a sociedade, convenceram seus representantes políticos do acerto de seus métodos. Conquistaram a mídia e acalmaram a população. Sem medo de bruxaria.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98).

OESP, 15/03/2005, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.