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A floresta vira soja

Veja, Especial, p. 114-115
26 de Mar de 2008

A floresta vira soja
Mato Grosso é o estado que mais desmata.
A contrapartida é o notável vigor do agronegócio

José Edward, de Nova Ubiratã

De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Mato Grosso abriga dezenove dos 36 municípios que mais desmataram áreas da Floresta Amazônica no último semestre. O governador do estado, Blairo Maggi, diz que essa informação se baseia em um levantamento fajuto, mas o argumento não ofusca uma verdade irrefutável: o desmatamento da porção mato-grossense da Amazônia já extrapolou todos os limites. Nas duas últimas décadas, 129.000 quilômetros quadrados da floresta - mais de um terço da devastação total ocorrida no período - desapareceram naquela região. Cerca de 40% da cobertura florestal do estado já foi eliminada, o dobro do índice global de desmatamento da Amazônia. Essa situação ficou evidente em sobrevôos feitos por VEJA no mês passado ao longo de vários trechos. Em lugar de clareiras abertas no meio da floresta, o que se vê do alto são pequenas ilhas de mata espalhadas ao longo de imensas áreas de pasto e de plantações de soja.
Ao contrário do que se vê no Pará, a ocupação da porção amazônica de Mato Grosso está longe de ocorrer em clima de faroeste. Ela é resultado da expansão da fronteira agrícola, que, a partir da década de 1970, transformou as regiões de cerrado do Centro-Oeste no principal celeiro de produção de alimentos do país e, nos últimos anos, extrapolou para o interior da floresta. No norte do estado, é possível identificar os primeiros resquícios do bioma amazônico. A vegetação rala e de arbustos típicos do cerrado é aos poucos substituída por árvores mais altas e frondosas até a formação da mata densa. Nesse pedaço da Amazônia - que os especialistas chamam de "floresta de transição" e a população local, de "cerradão" -, pelo menos 20% das espécies ainda são típicas do cerrado. Essa característica, aliada ao fato de que grande parte da região tem relevo plano e clima favorável para lavouras de grãos, tem feito com que a fronteira agropecuária avance rápido.
Essa é a área mais desenvolvida entre as demais dos nove estados da Amazônia. Ali estão concentrados mais de 90% da soja e um terço do rebanho bovino da região. Assim como ocorreu no cerrado, a Amazônia mato-grossense está sendo ocupada basicamente por produtores rurais. Boa parte deles é descendente dos migrantes do Sul que desbravaram a região e imprimiram um ritmo empresarial ao chamado agronegócio. O sotaque, os cabelos loiros e os olhos azuis, os sobrenomes de origem alemã e italiana são marcas da colonização sulina. Ao contrário do que aconteceu no Pará, onde a devastação da floresta se deu mais na marra, com invasões e grilagens de terras públicas, a maior parte dessa região foi ocupada por meio de projetos de colonização desenvolvidos a partir da década de 1970 por cinco grandes empresas privadas. "Esse processo permitiu que as cidades da região crescessem de forma mais organizada e se desenvolvessem mais", afirma o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, cuja família fez fortuna na região.
Como o governador Maggi, vários produtores rurais entraram para a política e muitos administram hoje os municípios que, nas duas últimas décadas, brotaram no meio das vastas plantações de soja, nas bordas da floresta. Alguns deles - como Sorriso, Sapezal e Lucas do Rio Verde - são verdadeiros oásis no interior da selva. A região concentra nove dos dez municípios com maior índice de desenvolvimento humano (IDH) da Amazônia. É ali também que o PIB mais cresce. Na maior parte desses municípios, grandes áreas da floresta já foram substituídas por plantações de soja. Em compensação, se é que se pode falar assim quando o assunto é desmatamento, são cidades bem estruturadas, com ruas asfaltadas e uma ampla rede de serviços, que nada ficam a dever às localizadas no Sul e no Sudeste do país. Emancipado há apenas catorze anos, o município de Sapezal, localizado a 464 quilômetros de Cuiabá, é um bom exemplo do desenvolvimento obtido a partir da substituição da floresta por plantações de soja. Planejada, a sede do município é simétrica e quase toda asfaltada. Esgoto sanitário e água tratada chegam a todas as casas. A cidade dispõe também de uma ampla rede de telefonia de fibra óptica. Na zona rural, as plantações de soja, milho e algodão asseguram que o município seja um dos que mais recolhem impostos no estado.
Outro exemplo que ressalta a diferença do processo de devastação da porção mato-grossense da Amazônia está no fato de que cerca de 40% dos proprietários de terras do estado já se cadastraram em um sistema de monitoramento criado pelo governo de Mato Grosso através do qual é possível fiscalizar quase em tempo real o processo de desmatamento nas fazendas. Trata-se de uma situação impensável em outras partes da Amazônia, como no Pará. Além disso, vários produtores rurais da região estão fazendo parcerias com ONGs para melhorar as práticas ambientais em suas propriedades. Uma das experiências mais bem-sucedidas nessa área é um projeto desenvolvido pela ONG Aliança da Terra com cerca de 100 pecuaristas que, juntos, têm cerca de 1,5 milhão de hectares de terras nas proximidades do Parque Indígena do Xingu. Como já desmataram mais de 50% de suas áreas de floresta, eles abriram as porteiras das fazendas para que a ONG faça um diagnóstico socioambiental da área. Todos assinaram um termo pelo qual se comprometem, entre outras coisas, a recuperar áreas de proteção ambiental e a não utilizar trabalho escravo nas fazendas. O próximo passo será a criação de um sistema de certificação socioambiental que valorizará as mercadorias produzidas nessas fazendas.

Orgulho por desmatar 100 000 hectares

Dono de nove fazendas em São José do Xingu e arredores, no norte de Mato Grosso, onde cria um rebanho de 40 000 cabeças de gado, o pecuarista Carlos Alberto Guimarães, o Carlito, de 59 anos, se orgulha de ter sido "um dos dez homens que mais desmataram a Amazônia". Pelas suas contas, em quatro décadas de atuação no Pará e em Mato Grosso, ajudou a derrubar 100 000 hectares da floresta. Natural de Goiás, o pecuarista faz parte de uma leva pioneira de aventureiros que foi para a Amazônia incentivada pela política nacionalista de ocupação da região idealizada pelo governo militar. "A gente desmatava tudo. Só parava onde era brejo", conta Carlito, que garante não guardar nenhum remorso. "Eu me considero um produtor de alimentos, não um desmatador", ele justifica.

Veja, 26/03/2008, Especial, p. 114-115

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