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Floresta: só para inglês ver?

Jornal Pessoal-São Paulo-SP
Autor: Lucio Flavio Pinto
03 de Set de 2003

O governo Lula diz que vai mudar a cultura do desmatamento pela cultura da floresta na Amazônia. Mas na hora de levar a sério esse compromisso, os órgãos do governo federal preferem ficar atrás do papel e da retórica. O desafio, se não for respondido, vai provocar nova explosão neste verão.

Acreditam alguns técnicos que ainda há 45 bilhões de metros cúbicos de madeira na floresta nativa amazônica, com seus 285 milhões de hectares, dos quais 246 milhões de hectares são considerados produtivos. Esse notável estoque, que representa um terço da madeira tropical do planeta, daria ao Brasil condições de dominar o comércio internacional de madeira tropical neste século, desbancando o domínio asiático.

Nas últimas duas décadas, a produção madeireira na Amazônia deu um salto espetacular: de 24% da produção nacional nos anos 80, pulou para 90% de toda a madeira extraída no Brasil atualmente. Todos os anos saem da região 100 mil metros cúbicos de madeira, tendo São Paulo como seu principal mercado. A atividade emprega quase 600 mil pessoas. Mas é uma atividade precária, ou, como diz o jargão do dia, "insustentável". A grande maioria dessa extração é feita de forma ilegal e sem obedecer a normas técnicas. Contribuiu para que, nas quatro últimas décadas, 15% das florestas amazônicas desaparecessem. Ou mais de 500 mil quilômetros quadrados.

A continuar assim, um dia vai faltar madeira na Amazônia. Mais grave ainda: vai faltar floresta, que, como hoje se sabe, está muito longe de ser apenas uma concentração de madeira sólida. A floresta é o núcleo da biodiversidade amazônica. Sem ela, desaparece a incrível diversidade de vida na região, que, segundo alguns, representa um ativo de sete trilhões de dólares. Acaba, portanto, a própria Amazônia, ou o elemento que a define como tal. E o seu futuro.

O governo Lula promete, no Programa Amazônia Sustentável, substituir a cultura do desmatamento, que está ameaçando destruir a região, pela cultura da floresta,.estimulando e impondo a utilização racional da riqueza florestal, para que seja uma atividade sustentável. Ou seja: que produza madeira - e muitos outros produtos de origem florestal - sem com isso destruir a riqueza que utiliza. O nome dessa forma de uso é "manejo florestal". Todos sabem que o único caminho válido é esse, embora pouco percorrido e insatisfatoriamente estudado. Das 2,5 mil empresas madeireiras instaladas na Amazônia, apenas 1,5% fazem manejo e possuem certificação pelo Conselho de Manejo Florestal, o FSC (Forest Stewardship Council, em inglês). O manejo florestal costuma ser definido como um conjunto de técnicas adequadas, que são utilizadas para garantir a extração dos recursos florestais, incluindo a madeira, causando o menor impacto possível.

O manejo florestal requer um investimento inicial maior (para poder ser explorada, a propriedade tem que ser zoneada, com a definição das áreas de floresta que podem ser exploradas e as áreas de preservação permanente, que precisam continuar intocadas), mas a médio e longo prazo o retorno tem sido compensador.

A Cikel, uma das raras empresas que faz manejo no Pará, administra 318 mil hectares de florestas com baixo impacto ambiental e mantém um índice de reflorestamento anual de 300 mil árvores nativas. A Mil Madeireiras, a primeira indústria certificada do país a trabalhar e lucrar com manejo empresarial, garante que a árvore manejada cresce 5,5 vezes mais do que a derrubada com corte raso e predatório.

Esses exemplos mostram, juntamente com outras experiências e pesquisas, que a madeira certificada não é mais cara do que a explorada predatoriamente; e que há mercado para ela. Um dos mais interessados é o das indústrias de móveis de luxo, cada vez mais propensas a adquirir madeira certificada da Amazônia para moralizar e legitimar a compra da matéria-prima florestal da Amazônia.

Apesar da demonstração da rentabilidade econômica do manejo e das perspectivas crescentes de mercado para a madeira certificada, o compromisso retórico do atual governo ainda parece muito distante dos fatos. Em primeiro lugar, porque a maioria dos madeireiros prefere continuar a recorrer ao comércio clandestino. Em segundo lugar, porque há ainda muita margem de manobra (e, por conseguinte, de manipulação) para o manejo fraudulento. E também porque o próprio governo não assume uma postura decidida e sólida para colocar em prática a promessa de substituir a cultura do desmatamento pela cultura da floresta. O Pará é, atualmente, o exemplo vivo e dolorido desses impasses.

Tanto em área quanto em proporção, o Estado é um dos mais prejudicados pelo desmatamento. É também um dos alvos preferenciais da grilagem de terras, da especulação econômica e dos conflitos sociais, em grande parte causa e conseqüência da concentração da propriedade rural. O acúmulo de problemas acabou explodindo quando o prosseguimento da atividade madeireira entalou no gargalo da legalidade. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) não quis mais ser o avalista da destruição e da clandestinidade, exigindo um brusco enquadramento do setor em todas as normas legais. Suspendeu a aprovação de 60% dos projetos de manejo florestal que lhe foram apresentados e condicionou o reinício da tramitação dos processos ao cumprimento das exigências.

Seguiu-se o caos. Na verdade, o funcionamento da indústria madeireira se baseava na premissa de que a lei foi feita para inglês ver. Poucas empresas estão em condições de se ajustar às exigências do Ibama a tempo de aproveitar o verão, cumprir seus contratos, manter sua estrutura e escapar à falência. A permanecer a situação atual, a safra deste ano estará quase toda perdida e muitas empresas irão quebrar. Haverá desemprego, mais tensão social e, inevitavelmente, a multiplicação e o agravamento dos conflitos que já ocorreram.

A saída é deixar tudo como estava para ver como é que fica? Naturalmente, não. Mas se os dirigentes dos órgãos públicos do setor continuarem atrás de suas escrivaninhas à espera de que os empresários se ajustem às novas disposições administrativas, com certeza receberão o impacto da explosão social inevitável. As normas põem em prática os dispositivos legais, a começar pelos que emanam da Constituição. Mas se a preocupação é meramente formal e retórica, de exigir o cumprimento da lei, e de imagem (fazendo de conta para o mundo que as coisas mudaram no tratamento do meio ambiente), então os efeitos poderão ser funestos.

Se não era mais tolerável o faz-de-conta do manejo para inglês ver, a impossibilidade de tornar factível um procedimento sério e conseqüente desestimulará os que querem entrar nessa nova e necessária etapa da exploração econômica dos recursos florestais da Amazônia e levará quem ficar no mercado a voltar a uma fase ainda mais primitiva: a da total clandestinidade.

Ela está prestes a se estabelecer, como mostram alguns acontecimentos recentes, absolutamente inéditos, como assaltos a sedes do Ibama (inclusive em Belém) para o roubo de processos e de ATPFs, as autorizações para o transporte de produtos florestais, que se transformaram em autênticas moedas no interior da região. Essa é a clandestinidade que se assumiu definitivamente criminosa, à sombra da limitação, da incompetência, da incapacidade ou da inapetência das autoridades.

Há formas mais sofisticadas, que consistem em burlas bem feitas. Os planos de manejo florestal são os mais correntes. Dados do Núcleo de Sensoriamento Remoto do Ibama revelam a concentração dos novos planos em dois municípios paraenses: Novo Progresso, na região sudoeste do Estado, e Porto de Moz, no vale do Xingu, onde estão agindo algumas das mais agressivas frentes de expansão da fronteira agrícola e da exploração florestal na Amazônia. Números do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) confirmam que os municípios de Novo Progresso e Porto de Moz, em conjunto, perderam quase 240 mil hectares de florestas nos últimos cinco anos.

Os planos de manejo, nesses casos, servem apenas para esquentar a pura e simples extração de madeira. Essa pirataria é consumada através de vários outros ardis. Um dos mais importantes é o uso de laranjas, que cedem seus nomes para que uma única pessoa requeira vários lotes contíguos, formando uma propriedade muito maior do que o limite constitucional para a alienação de terras sem consulta ao Senado, que precisa dar sua aprovação sempre que a transação envolver mais de 2.500 hectares.

Uma das decisões anunciadas pelo Ibama foi não aceitar mais as manobras que permitiam a alienação de lotes sucessivos através de prepostos. Formalmente, o instituto está coberto de razões. Mas sua atitude pode ter como conseqüências incrementar a mera grilagem, induzindo a indústria de falsificação de títulos. Mesmo que não mais houvesse o uso de laranjas e todos se enquadrassem na bitola legal, pergunta-se: qual manejo empresarial, feito com seriedade, se tornaria viável numa área de 2.500 hectares?

Certamente se pode alegar, que a saída seria, então, apoiar o manejo comunitário. Como hipótese de trabalho, sem dúvida. O Ibama até aprovou, recentemente, mais quatro manejos desse tipo, dois deles no Pará, um no Amazonas e outro no Acre, comprometendo-se a repassar-lhes 1,7 milhão de reais num período de três anos. Eles integram o Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável (ProManejo), iniciativa conjunta do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, como parte do PPG7 (o programa de proteção de florestas tropicais, financiado pelos sete países mais ricos do mundo).

O ProManejo pretende promover o manejo da floresta a partir de ações de extensão, fomento, assistência técnica e fortalecimento das organizações comunitárias, para que elas funcionem como catalisadores de mudanças nas suas regiões ou em sistema de produções afins. Seu principal mérito seria manter em pé as florestas nativas, a despeito da extração de madeira, feita de tal maneira a não colidir com os demais usufrutos ambientais proporcionados pela floresta. Tais comunidades rurais, na maioria das vezes marginalizadas economicamente, ocupariam um terço das florestas da região e somariam seis milhões de pessoas, segundo avaliação de alguns técnicos.

Essa é uma das boas alternativas da Política Nacional de Floresta, mas não é a única, não é a que vai dar retorno mais imediato, nem a mais importante a curto e médio prazo. O manejo florestal comunitário deve ser apoiado com ênfase crescente, mas também a atividade empresarial não pode ser ignorada, embora certamente sem receber o que o governo anterior lhe prometera: o direito de explorar metade dos 50 milhões de hectares que seriam transformados em florestas públicas, à semelhança do modelo asiático, possibilitando-lhes diminuir os custos de aquisição e manutenção de terras, evitar os complicados e explosivos problemas fundiários da Amazônia e livres da contingência de recorrer a terceiros para abastecer-se de matéria prima.

Se o limite constitucional de 2.500 hectares é benéfico e se o Senado mostra-se incapaz de apreciar e decidir sobre alienações de áreas maiores (não tomou qualquer decisão a respeito até hoje), a conclusão correta não deve ser cruzar os braços e assistir à selvageria que se estabelecerá no sertão amazônico, com florestas derrubadas e sangue.

A atitude correta devia ser o governo suspender definitivamente a venda de terras públicas. Esse instituto deve ser abolido para, em seu lugar, surgirem formas de concessão, a título precário, condicionadas a contratos, através dos quais o Estado exigirá o ajustamento do empreendimento produtivo às normas ambientais e condicionará a concessão ao cumprimento do que for estabelecido, sob pena de cancelamento do contrato.

O Iterpa (Instituto de Terras do Pará) propôs ao Ibama algo que contempla essa nova situação, mas não esgota as providências que o poder público deve adotar. Não basta estabelecer a relação fundiária com o particular através de autorizações de uso, sem transferência de domínio. O governo precisa atuar também no plano silvicultural. Ao invés de elaborar o plano de manejo, o particular apenas o financiaria e o acompanharia. O agente do processo seria o próprio poder público, diretamente, através do seu serviço florestal, e indiretamente, através da contratação de terceiros. O custo dessa empreitada seria coberto pelo pagamento de uma taxa, cobrada em relação ao tamanho da área concedida para uso pelo Estado. O controle privado só se estabeleceria no momento da exploração.

Além de inserir a área específica de manejo no território estadual, verificando a compatibilidade do uso desejado com a aptidão real da área (o que exigirá macro e micro-zoneamento ecológico-econômico), o Estado estabelecerá cláusulas contratuais que obrigarão a empresa a utilizar mão-de-obra local qualificada (ou qualificável) em seu próprio projeto e associá-lo a projetos comunitários em torno, de tal maneira que seu suprimento seja em parte obtido pela própria empresa e em parte por produtores e fornecedores da vizinhança. Assim, talvez se evitem os erros e vícios do modelo asiático, que criou enormes plantios homogêneos e empreendimentos tipicamente de enclave, favorecendo a devastação ambiental e o êxodo rural.

É claro que o aparato institucional que hoje existe não é capaz de realizar essa autêntica revolução na forma de utilização dos recursos florestais da Amazônia. O Iterpa, que precisa urgentemente se modernizar, se qualificar e remunerar melhor seu quadro técnico, atuaria apenas no âmbito fundiário. O governo do Estado precisa urgentemente criar seu Instituto de Floresta, com maleabilidade burocrática e disponibilidade de recursos à altura das tarefas que o aguardam impacientemente há muitos anos. Dentre as quais está a de consolidar e regulamentar o Código Florestal do Pará.

Assim, o Estado assumirá plenamente a gestão do seu território, capaz de ordenar a ocupação do solo e controlar o uso dos recursos naturais, com o concurso da instituição federal, o Ibama. As duas instâncias deveriam partilhar competências e agir em sintonia, acabando-se com a competição e o conflito que hoje predominam em suas relações. Um duplo grau de jurisdição, quando pactuado, também evitará as distorções que o monopólio de mando invariavelmente produz, criando vícios, dependência e corrupção.

Um entendimento de alto nível desfaria o clima de frustração e desorientação, que funcionou como contrapeso à reunião que, no dia 5, em Belém, na qual o governador Simão Jatene e o presidente do Ibama, Marcus Barros, firmaram um pacto de cooperação técnica entre os governos federal e estadual para atender os interesses do Pará. A cooperação deveria ser efetivada por intermédio da Câmara Técnica Intersetorial, formada por 17 instituições estaduais, ONGs e órgãos federais). A Câmara Intersetorial deveria mediar e deliberar sobre conflitos florestais, fundiários e ambientais.

Houve na ocasião discursos emocionados de ambos os lados e promessas de se ingressar numa nova era de entendimento, mas logo depois normas e circulares baixadas pelo Ibama de Brasília restabeleceram o status quo anterior, um órgão criticando o outro e fazendo exigências impossíveis de serem atendidas ou, se cumpridas, insuficientes para mudar de fato a forma de exploração dos recursos florestais. Isto, sem considerar duas outras frentes econômicas que já são de há muito ou estão se tornando mais agressivas do que a indústria madeireira: a pecuária e a cultura da soja.

A continuar assim, o verão promete voltar a ser quente outra vez, não só no clima.

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