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Fiscais sao executados

O Globo, O Pais, p.3-5
29 de Jan de 2004

Fiscais são executadosSueli Cotta e Bernardo de la PeñaBELO HORIZONTE e BRASÍLIA.Numa afronta sem precedentes ao Ministério do Trabalho, três auditores fiscais e um motorista foram assassinados com tiros na cabeça durante uma operação contra o trabalho escravo em fazendas no Noroeste de Minas Gerais. Erastótenes de Almeida Gonçalves, de 42 anos, Nélson José da Silva, de 52, e João Batista Soares Lages, de 50, foram emboscados e mortos numa estrada de terra que liga os municípios de Unaí e Garapuava. O motorista, Ailton Pereira da Silva, mesmo baleado, conseguiu dirigir 15 quilômetros para buscar socorro. Ele foi levado para o Hospital de Base de Brasília, onde acabou morrendo. O presidente em exercício, José Alencar, determinou a criação de uma força-tarefa para investigar o crime. Nélson, que estava lotado na Delegacia Regional de Paracatu, já tinha sido ameaçado de morte por um fazendeiro e por um homem que recruta trabalhadores ilegais. As ameaças aconteceram em junho do ano passado e foram comunicadas ao Ministério Público do Trabalho. Foi formada uma comissão, com a participação do próprio Nélson, para vistoriar fazendas da região. A procuradora do Trabalho Adriana Augusta de Moura Souza afirmou que dois agentes da Polícia Federal de Brasília, quatro fiscais do Trabalho e dois procuradores fizeram operações em fazendas de Paracatu, mas as investigações não foram adiante. Segundo ela, os fazendeiros têm uma rede de informações sobre a movimentação de policiais e fiscais: quando sabem que vai acontecer algum tipo de operação, eles tiram os trabalhadores em situação irregular das fazendas. — Os fazendeiros têm um elo econômico e jurídico. É uma região complicada para se fiscalizar, porque a infração cometida lá é típica, trata-se da precarização do trabalho e da falta de registro do trabalho. Por isso, a fiscalização é rotineira — disse a procuradora. Fiscal não levava a sério as ameaças A procuradora contou que participou de algumas operações na região, mas que nunca achou que corria risco. Nélson, segundo ela, também não levava a sério as ameaças e continuava fiscalizando as fazendas, muitas vezes sozinho. O ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, o secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e a subprocuradora da República Maria Eliane de Faria foram a Minas acompanhar as investigações. Dois helicópteros decolaram de Brasília levando delegados e agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal para a região. Ontem mesmo a PF sobrevoou a área em busca de pistas. Um dos delegados disse que não há dúvidas de que foi uma execução. Esses brasileiros foram vítimas de insanidade e violência inadmissíveis num país que cultua os valores do direito e da liberdade. Essa brutalidade não ficará impune, pois todos os recursos foram mobilizados para a identificação dos criminosos”, disse Alencar, em nota divulgada ontem. Após reunir-se com Berzoini, Nilmário, e com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o presidente em exercício pediu prioridade na investigação. Era de Brasília, era de Brasília” Enquanto era socorrido, o motorista Ailton, única testemunha da emboscada, contou aos policiais que dois homens, num Fiat Strada branco com placa de Brasília e parado à beira da estrada, fizeram sinal para que ele parasse. Pensando ser um pedido de ajuda, Ailton parou. Os assassinos anunciaram um assalto e chegaram a tomar o celular de um dos fiscais, mas, em seguida, deram um tiro na cabeça de cada um. Outro carro, um Marea, foi visto por trabalhadores rurais nas proximidades do local do ataque. No chão, próximo ao ponto da emboscada, foram encontrados cartuchos de pistola calibre 380. — Era de Brasília, era de Brasília — repetia Ailton aos policiais. Os fiscais já tinham passado por Paracatu, como fora determinado pela Delegacia Regional do Trabalho. A delegada interina, Denise Déia, disse que eles estavam com uma ordem de serviço para fiscalizar diversas fazendas da região. Eles dormiram em Unaí e iam para Buritis, quando foram mortos. — Era uma fiscalização de rotina, já que, nesta época do ano, acontece a contratação, muitas vezes irregular, de trabalhadores para a colheita de feijão. Não havia sinal de que poderia acontecer qualquer tipo de violência — disse Denise, que ocupa o lugar do delegado Carlos Calazans, que está de férias.
Mortes chocam até quem convive com ameaçasBELO HORIZONTE. O assassinato dos fiscais deixou estarrecidos os funcionários da Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais (DRT-MG). Mesmo os que estão acostumados com ameaças, comuns em algumas regiões. Em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, o fiscal Mauro Jaime convive com pressões desde que assumiu o posto, em maio do ano passado. A casa dele foi invadida três vezes e houve cinco tentativas de invasão. A delegada regional do Trabalho interina, Denise Déia, disse que a Polícia Federal já foi informada da situação, mas nenhuma medida foi tomada para garantir a integridade física do fiscal. Denise disse que a partir de agora, nas regiões onde a situação é mais tensa, a delegacia vai pedir que a PF acompanhe os fiscais. Em nota da DRT-MG, é levantada a suspeita de que o atentado de ontem tenha sido uma retaliação às ações dos auditores fiscais contra o trabalho escravo. A delegacia informa que está acompanhando os desdobramentos da perícia e acionou organizações internacionais de trabalho para que acompanhem as investigações. O fiscal Juarez Coelho estava revoltado com a morte dos colegas. Para ele, os quatro se tornaram alvo fácil, já que as ameaças foram feitas e nenhuma providência foi tomada. — Lamentavelmente, na administração pública, as pessoas ocupam cargos por um tempo limitado, ao sabor de conveniências políticas, e não atendem às reivindicações dos funcionários. Quem padece com isto é a sociedade e os trabalhadores, principalmente os do governo. Trabalhei com Nélson José da Silva (uma das vítimas) e desconhecia que ele sofria ameaças de morte — reclamou Coelho. Foi decretado luto oficial na Delegacia Regional do Trabalho, que ficará dois dias com as portas fechadas. (S.C.)

Em 2003, fiscalização libertou 4.932 trabalhadores de regime escravoGeralda DocaBRASÍLIA. As ações da fiscalização do Ministério do Trabalho libertaram no ano passado 4.932 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. No ano anterior, 2.306 foram retirados destas mesmas condições de trabalho pelas ações dos auditores fiscais. Em todo o país, existem 2.871 auditores do trabalho que fiscalizam desde o cumprimento da legislação até as condições de trabalho. De acordo com levantamento do Ministério do Trabalho, as principais ações ocorreram nos estados do Pará, Mato Grosso e Maranhão. A secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, que ontem foi a Unaí acompanhar a apuração do assassinatos dos fiscais, atribui o crescimento do número de trabalhadores resgatados da escravidão ao reforço na fiscalização. Também aumentou o volume de denúncias. Rio também tem trabalho escravo Segundo Ruth, a pecuária é o setor agrícola em que se concentra a maior parte das denúncias. O Ministério do Trabalho também constatou casos de trabalho escravo em estados que não costumavam freqüentar os registros oficiais. Foram denunciadas atuações de fazendeiros em Tocantins, Rondônia, Bahia e Rio de Janeiro. Para 2004, o governo contará com R$ 3,9 milhões para custear as ações de fiscalização em todo o país. São R$ 2,8 milhões a mais do que o disponível no ano anterior. Nas operações de fiscalização, os técnicos do Ministério do Trabalho chegaram a encontrar, em uma só área em Mato Grosso, 272 trabalhadores submetidos a trabalho escravo. A empresa dona da área foi autuada e obrigada a pagar indenização aos trabalhadores. No Pará, em uma única fazenda foram libertados 261 trabalhadores.

Motorista faria 23 anos no ministérioBELO HORIZONTE. Dos quatro servidores assassinados numa emboscada ontem em Minas Gerais, o mais antigo no no Ministério do Trabalho era Ailton Pereira de Oliveira, de 51 anos. No dia 2 de fevereiro, ele completaria 23 anos a serviço da Delegacia Regional em Belo Horizonte. Tanto Ailton quanto os três auditores fiscais assassinados sempre trabalharam em Minas Gerais. João Batista Soares Lage, de 50 anos, começou a trabalhar como auditor fiscal em 1995. Um ano depois, foi a vez de Eratóstenes de Almeida Gonçalves, de 42 anos, ser contratado pelo ministério. Já Nelson José da Silva, de 52 anos, entrou para a DRT em março de 1999. Atualmente, ele estava lotado na Delegacia Regional do Trabalho em Paracatu, Noroeste de Minas Gerais, região onde aconteceu o atentado.

Berzoini: Não é possível atentar contra o Estado sem haver reaçãoLisandra Paraguassú e Bernardo de la PeñaUNAÍ (MG) e BRASÍLIA.O ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, e o secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, disseram ontem não ter dúvidas de que o assassinato de três fiscais e um motorista da Delegacia Regional do Trabalho em Minas Gerais foi uma reação à fiscalização contra o trabalho escravo. Berzoini prometeu reforçar a segurança dos fiscais. —Vamos trabalhar para que as operações desse tipo sejam feitas em outras condições para proteger a segurança dos servidores. Mais do que isso, para deixar claro para aqueles que cometem crimes como esse que não é possível atentar contra o Estado e contra os servidores sem haver reação objetiva por parte do Estado — disse o ministro do Trabalho. Delegado da PF diz que foi serviço de profissional” O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desembarcou ontem em Genebra, onde hoje terá encontros com empresários, também prometeu que o governo reagirá ao atentado. — Estou a dez mil quilômetros de distância, mas sei que a Polícia Federal está atrás, o Ministério do Trabalho está lá e a Secretaria de Direitos Humanos também. Vamos apurar quem fez isso — disse. Ontem, os investigadores da Polícia Federal (PF) já tinham indícios de que os assassinatos não foram resultado de uma tentativa de assalto. — Foi serviço de profissional — disse um dos delegados que participam da investigação. Os quatro servidores foram mortos com tiros à queima-roupa. Os corpos de dois fiscais serão levados para o Conselho Regional de Engenharia de Minas, em Belo Horizonte, e o terceiro vai para Juiz de Fora. O corpo do motorista está em Brasília. Ontem à noite, Nilmário e Berzoini voltaram ao Planalto para contar ao presidente em exercício, José Alencar, o que viram na região onde houve o atentado. Segundo Nilmário, a polícia ainda não tem suspeitos, mas vai analisar os relatórios das vistorias feitas pelos fiscais: — Eles tinham dinheiro, relógios e máquinas fotográficas e nada disso foi levado. Entidades e associações de magistrados, procuradores e trabalhadores rurais reagiram ontem aos assassinatos. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Grijalbo Coutinho, pediu a Berzoini, num ofício, uma rápida e profunda apuração do caso que classificou como chacina. Para a associação, os responsáveis por essas mortes são pessoas interessadas em manter trabalhadores em regime de escravidão. A chacina de hoje, que provocou o brutal desaparecimento de quatro trabalhadores envolvidos na atividade de fiscalização do trabalho, mostra que muito há por fazer, sob pena de não conseguir o Estado mostrar à nação brasileira e à comunidade internacional que consegue proteger o seu próprio povo de assassinos que não temem enfrentá-lo”, disse a diretoria, em nota. Também em nota, o Ministério Público do Trabalho pediu apuração minuciosa do caso. A procuradora-geral do Trabalho, Sandra Lia Simón, designou o procurador Luis Antônio Camargo de Melo, para acompanhar as investigações. Segundo a procuradora, a morte dos três auditores aconteceu num momento em que o Brasil vem intensificado a luta pela erradicação do trabalho escravo. Caso fique provado que a emboscada aconteceu como retaliação ao trabalho dos auditores, terá sido mais que um atentado contra a vida, um atentado contra o próprio povo brasileiro”, disse Sandra. Contag quer punição e que fiscalização prossiga A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) disse que os fiscais estavam realizando inspeções na região, desde segunda-feira, para averiguar as denúncias da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais sobre o descumprimento dos direitos trabalhistas e previdenciários na região. O presidente da Contag, Manoel dos Santos, pediu a punição exemplar dos envolvidos no crime e exige que o Ministério do Trabalho mantenha as fiscalizações programadas para a região.
COLABOROU Evandro Éboli

O Globo, 29/01/2004, p. 3-5

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